Água [Dicionário Global]
Água [Dicionário Global]
A água suscita um sem-número de abordagens (cf. BOCCALETTI, 2022, passim), desde a mitologia, a religião ou a literatura, passando, entre outras áreas, pela ciência, pela geografia, pela política ou pela ecologia.
Sobre o modo como se originou o mundo, ou cosmogonia, Homero, seguindo uma tradição cosmogónica de tipo aquático, presente entre os povos do Mediterrâneo oriental, indicava a união de Oceano e Tétis, duas divindades aquáticas (cf. ANTUNES, 2012, 226). Como observa Manuel Antunes (2012, 227), sendo a presença do mar dominante na Jónia, “era natural que Homero o mistificasse fazendo da água o duplo princípio – masculino e feminino – de onde todos os seres derivam”. Mais tarde, Tales de Mileto, filósofo da escola jónica, coloca a água como “princípio originário e constitutivo de todos os seres” (ANTUNES, 2012, 227). Para Tales de Mileto, “tudo vem da água, tudo é constituído por água, tudo, finalmente, se resolve em água” (cf. ANTUNES, 2012, 342).
Na religião (cf. ORSENNA, 2008, 39 ss.), avulta, desde logo, o Livro do Génesis: “A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas” (Gn 1, 1-2).
O Direito tem também, naturalmente, o seu papel e o seu lugar. E tem-no cada vez mais intenso e com plúrimas abordagens ou enfoques, em função das várias áreas do Direito.
Na história da ciência, Erik Orsenna (2008, 15-16, 41 ss.) dá-nos nota da apologia da água potável e do seu abastecimento à cidade de Paris, no século XVIII, no limiar da Revolução, feita por Lavoisier, na sequência da opção do município pela reconstrução da Ópera, em detrimento da construção de um aqueduto, que iria permitir abastecer a cidade de água potável, livrando, assim, os cidadãos da água poluída do Sena: “Ce sont d’elles, en effet, que dépendent la force et la santé des citoyens, et si les premières [les eaux médicinales] ont quelques fois rappelé à la vie quelques têtes précieuses de l’État, ces dernières [les aux potables], en rétablissssant continuellement l’ordre et l’équilibre dans l’économie animale, en conservent tous les jours un beaucoup plus grand nombre. L’examen des eaux proprement minérales n’intéresse donc qu’une petite portion languissante de la société. Celui des eaux communes intéresse la société toute entière et principalement cette partie active dont les bras sont, en même temps, et la force et la richesse d’un État”.
Na literatura do século XX, destacamos a obra A Um Deus Desconhecido, de John Steinbeck, na exaltação da chuva como fonte de vida, da qual retiramos o seguinte trecho: “‘Mas a terra está a morrer’, gritou Joseph subitamente. ‘Reze para haver chuva, Padre. Já o fez?’” (STEINBECK, 2017, 262).
Nas letras lusas, destacamos António Vieira, na descrição do ciclo da água, feita no “Sermão VI. Assegurador”: “Tudo isto, que parte vemos, parte não vemos, consiste em um movimento circular, e perpétuo, com que o mar dá a água à terra, a terra torna a dar a água ao mar, e o mar outra vez a torna a dar à terra” (VIEIRA, 2014, 230). O mesmo António Vieira ilustra, singela e cruamente, no “Sermão do Mandato”, a água como fonte de vida e a ausência dela como sinónimo de morte: “nos campos dos Hebreus as nuvens choviam água, e nos dos Egípcios choviam raios” (VIEIRA, 2013, 326).
Sendo um quase lugar-comum a afirmação de que a água é fonte de vida, ela pode ser também caminho de morte. As chuvas torrenciais, as cheias, as inundações provocadas pela fúria das águas, as quebras de diques e de barragens, são disso exemplo.
Neste breve texto, o nosso enfoque, que é jurídico, está na água destinada a uso humano, em especial a água potável. Fala-se num direito à água. Sem prejuízo de, por ser essa uma expressão frequente, a usarmos também, cremos que será mais preciso falar em direito a água, ou direito ao consumo de água, ou direito de acesso a água, expressões menos absolutas que a primeira e que colocam o enfoque na água enquanto bem indispensável, básico, para a vida humana, da pessoa enquanto ser vivo.
De referir, porém, que, como observa Helena Telino Neves (2023, 77 ss.), o facto inquestionável da necessidade vital de água para o ser humano não permite concluir pela existência de um direito a água potável. Como bem frisa a autora, “reconhecer um direito é mais do que autonomizá-lo”. E ainda: “É garantir meios de tutela” em ordem à sua viabilização (NEVES, 2023, 79). Numa perspetiva de direito internacional público, sustenta a autora que aquele ramo do Direito “tem contribuído significativamente para que haja um reconhecimento do direito de acesso à água potável nos ordenamentos estaduais” (NEVES, 2023, 80-81). Afinal, a autora caracteriza “o acesso à água potável” como direito humano, direito que classifica como um direito social que os Estados devem respeitar, proteger e cumprir (NEVES, 2023, 523).
Na doutrina estrangeira, Fernández de Castro (2019, 24) sustenta ser esse “um direito de grande transcendência jurídica no mundo atual devido ao interesse social, cultural, económico e político que suscita para os cidadãos, para as empresas e para o Estado, em especial por ser um recurso com valor económico e indispensável para saciar uma necessidade humana básica”.
O direito a água potável no quadro internacional
A nível internacional (cf. TESTELLA, 2021, 32 ss.), sem prejuízo das múltiplas conferências e foros sobre a água e o direito de acesso à água (cf. FERNÁNDEZ DE CASTRO, 2019, 42 ss.), importa dar sobretudo nota dos documentos de hard law ou de soft law mais relevantes.
A nível de hard law, cumpre referir, em primeiro lugar, os arts. 22.º (“[…] e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis […]”) e 25.º (“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar […]”) da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na medida do seu reconhecimento como manifestação de um costume internacional (FERNÁNDEZ DE CASTRO, 2019, 56-58). Não será de menos frisar que a Declaração consagra e enfatiza a dignidade humana (art. 1.º) e o direito à vida (art. 3.º). O direito a água potável não tem aí previsão expressa, podendo conceber-se uma previsão implícita.
Em termos mais próximos, há que considerar, em primeiro lugar, o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) (GOVERNO DE PORTUGAL, 1978). Ora, no n.º 1 do art. 11.º, os Estados Partes reconhecem “o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem com a um melhoramento constante das suas condições de existência”. Por sua vez, no n.º 1 do art. 12.º, os Estados Partes “reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir”. Sendo embora certo que nem no art. 11.º nem no art. 12.º é feita específica alusão a um “direito a água”, o mesmo é tido por integrado no direito “a um nível de vida suficiente para si e sua família”, até porque a referência a “alimentação, vestuário e alojamento suficientes” surge em termos exemplificativos (NEVES, 2023, 81; cf. PALOMBINO, 2023, 36; FERNÁNDEZ DE CASTRO, 2019, 60-61). Ademais, é reconhecido que a não inclusão do direito à água no texto decorreu de razões conjunturais, como explica Helena Telino Neves (2023, 81-82): “Nos debates prévios à preparação do Pacto, a proposta de incluir a água na listagem exemplificativa foi considerada, embora não tenha logrado êxito, pois não havia a perceção da escassez do recurso que se tem atualmente, a disponibilidade era dada como garantida e a natureza essencial da água tornava redundante sua menção expressa”.
Fulvio Maria Palombino identifica e resume, em sede de natureza jurídica do direito à água, várias teses: (i) as que negam a existência de um de uma norma consuetudinária; (ii) as que sustentam a progressiva emersão ou existência de uma norma consuetudinária autónoma; (iii) as que reconduzem o direito à água no âmbito do princípio consuetudinário de soberania permanente sobre os recursos naturais; e (iv) as que consideram o direito à água objeto de um princípio geral de direito (cf. PALOMBINO, 2023, 63 ss.).
Em ordem, por um lado, a colmatar a não expressa referência ao direito à água nos arts. 11.º e 12.º do Pacto e, por outro, de modo a densificar o conteúdo desse direito, o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (Comité DESC) das Nações Unidas, através do seu Comentário Geral n.º 15 (2002), aprovou um importantíssimo texto com o título “O direito à água (arts. 11.º e 12.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais)”, texto esse cuja natureza jurídica é palco de discussão e debate (cf. NEVES, 2023, 114 ss.; MITRE GUERRA, 2012, 253 ss.). Como diz Fernández de Castro (2019, 59 ss.), o comentário n.º 15 “constitui o documento jurídico internacional mais especifico e concreto produzido sobre o direito à água”. Destacamos os seguintes traços essenciais:
(i) A afirmação (item 1) de que a água, fonte natural limitada e um bem público, “é essencial à vida e à saúde”, mais sendo dito ser a mesma indispensável para se levar uma vida digna, constituindo, ademais, condição prévia à realização de outros direitos humanos.
(ii) Lê-se no item 2 que o direito à água se traduz “num aprovisionamento suficiente, fisicamente acessível e a um custo acessível de água salubre e de qualidade aceitável para os usos pessoais e domésticos de cada um”.
(iii) Lê-se no item 3 que o catálogo de direitos referidos no n.º 1 do art. 11.º do PIDESC não é exaustivo, mas exemplificativo: “O direito à água faz claramente parte das garantias fundamentais para assegurar um nível de vida suficiente, uma vez que a água é um dos elementos mais essenciais à sobrevivência”. Mais se lê no item 3 que o direito à água deve ser considerado conjuntamente com os demais direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em especial o direito à vida e à dignidade.
(iv) No item 6, é reconhecido que a água é necessária para fins diversos (cf. MITRE GUERRA, 2012, 181 ss.). Não obstante, “os recursos em água devem ser afetados, prioritariamente, aos usos pessoais e domésticos, devendo, ademais, ser dada prioridade à “prevenção da fome e das doenças, bem como ao respeito pelas obrigações fundamentais resultantes de cada um dos direitos inscritos no Pacto”.
(v) De acordo com o item 11, “os elementos constitutivos do direito à água devem ser adequados tendo em conta a dignidade humana, a vida e a saúde”. Aí se dispõe também que a água “deve ser considerada como um bem social e cultural e não essencialmente como um bem económico”, devendo, ademais, ser exercido em condições de durabilidade, em termos de as gerações atuais e futuras poderem beneficiar do mesmo (cf. NEVES, 2023, 101 ss.).
(vi) O Comentário enuncia (item 12) os fatores constituintes do conceito de fornecimento (focado também no item 10) (cf. MITRE GUERRA, 2012, 183 ss.): a) Disponibilidade: a água disponível para cada pessoa deve ser suficiente e constante para os usos pessoais e domésticos; b) Qualidade: a água necessária para usos pessoais e domésticos deve ser salubre e, assim, isenta de micróbios de substâncias químicas e de riscos radiológicos; c) Acessibilidade: a água, instalações e serviços, devem ser acessíveis a todas as pessoas, sendo identificadas as dimensões da acessibilidade física, da acessibilidade económica, da não discriminação e da acessibilidade da informação.
(vii) No item 13 é acentuado caber aos Estados Partes, nos termos do Pacto, garantir que o direito à água é exercido sem discriminação e em condições de igualdade entre homens e mulheres (arts. 2.º e 3.º do PIDESC). No mesmo item é recordado o facto de o Comentário Geral n.º 9 (1990) dispor que, em tempo de grave penúria de recursos, os elementos vulneráveis da sociedade devem ser protegidos através da implantação de programas específicos relativamente pouco custosos.
(viii) É acentuada (item 14) a necessidade de uma boa afetação dos recursos: “Uma má afetação dos recursos pode conduzir a uma discriminação, que nem sempre é evidente”.
(ix) É acentuado (item 15) que, no que respeita especificamente ao direito à água, os Estados Partes “têm, em especial, o dever de fornecer água e instalações necessárias às pessoas que não disponham de meios suficientes, e de prevenir qualquer discriminação baseada em motivos interditos pelos instrumentos internacionais, relativamente ao fornecimento de água e dos correspondentes serviços”.
(x) É acentuado (item 16) que, sem prejuízo de todos terem direito à água, os Estados Partes devem prestar uma especial atenção – nos termos densificados nesse mesmo item – às mulheres, às crianças, aos grupos minoritários, aos povos autóctones, aos refugiados, aos que pedem asilo, às pessoas deslocadas no seu próprio país, aos trabalhadores migrantes, bem com aos prisioneiros e aos detidos.
(xi) Nos itens 17 a 19, o Comentário Geral n.º 15 refere as “obrigações jurídicas gerais” dos Estados Partes no sentido da realização progressiva – com avanços rápidos e eficazes – do direito à água, sem prejuízo de os mesmos terem obrigações imediatas (cf. MITRE GUERRA, 2012, 193 ss.).
(xii) Os densos itens 20 a 29 do Comentário Geral enunciam “obrigações jurídicas específicas” (cf. MITRE GUERRA, 2012, 214 ss.), frisando que o direito à água, enquanto direito fundamental, impõe aos Estados Partes três tipos de obrigações: de respeitar, de proteger e de implementar. Em termos muito sumários: a) a obrigação de respeitar impõe que os Estados Partes se abstenham de entravar, direta ou indiretamente, o exercício do direito à água; b) a obrigação de proteção impõe aos Estados Partes o dever de impedir que terceiros entravem, de qualquer modo, o exercício do direito à água; c) por sua vez, a obrigação de implantação desdobra-se nas obrigações de facilitar (através da adoção de medidas positivas para ajudar os particulares e as comunidades a exercer o direito à água), de promover (designadamente através da difusão de informação apropriada, entre outros pontos, no que respeita à utilização higiénica da água) e de garantir a realização do direito à água, quando os particulares ou os grupos sejam incapazes, por razões cujo controlo lhes escapem, de o exercer pelos seus próprios meios. Destaque-se a referência, constante do item 28, à obrigação dos Estados Partes de adotarem estratégias e programas completos e integrados, tendo em vista garantir às gerações atuais e futuras um aprovisionamento suficiente em água salubre.
(xiii) Com estreitíssima conexão com o direito à água, está o saneamento básico (cf. MITRE GUERRA, 2012, 190 ss.). No item 29, é salientado o dever dos Estados Partes de garantirem o acesso a um saneamento adequado, o qual “não só é fundamental para respeitar a dignidade humana e a vida privada, como constitui também um dos principais meios para proteger a qualidade do aprovisionamento e dos recursos de água potável”.
(xiv) Deixando na penumbra outros pontos importantes do Comentário n.º 15, cujo desenvolvimento, ainda que sumário, não cabe na filosofia deste texto (cf. NEVES, 2023, 101 ss.) – como as “Obrigações Internacionais” (itens 30 a 36) dos Estados Partes (cf. MITRE GUERRA, 2012, 228 ss.) ou as consequências do “Incumprimento das Obrigações” (itens 39 a 44) (cf. MITRE GUERRA, 2012, 241 ss.), entre outros pontos –, destacamos a enunciação, feita no item 37, das “Obrigações Fundamentais” dos Estados Partes, que tem como referência ou ponto de partida o Comentário n.º 3 do Comité DESC, de acordo com o qual os Estados Partes têm a obrigação fundamental mínima de garantir, pelo menos, a satisfação do essencial de cada um dos direitos enunciados no PIDESC. Nesta linha, o Comentário n.º 15 enuncia, com referência ao direito à água, nove obrigações fundamentais, a saber: a) garantir o acesso à quantidade de água essencial, suficiente e salubre para os usos pessoais e domésticos; b) garantir o direito de acesso à água, às instalações e aos serviços sem discriminação; c) assegurar o acesso físico a instalações e serviços que forneçam regularmente água salubre em quantidade suficiente; d) zelar para que a segurança das pessoas que têm fisicamente acesso à água não seja ameaçada; e) assegurar uma repartição equitativa de todos os equipamentos e serviços disponíveis; f) adotar e implementar a nível nacional uma estratégia e um plano de ação visando o conjunto da população; g) controlar em que medida o direito à água está ou não realizado; h) adotar programas de aprovisionamento em água relativamente pouco custosos, tendo em vista a proteção dos grupos vulneráveis e marginalizados; i) tomar as medidas para prevenir, tratar e combater as doenças de origem hídrica, em particular garantindo o acesso a um saneamento adequado.
No que tange ao valor jurídico do Comentário n.º 15, as posições da doutrina são algo desencontradas (cf. NEVES, 2023, 114 ss.), sem prejuízo do reconhecimento geral da grande importância do documento. Para Mitre Guerra – que começa por atribuir ao Comentário a natureza de soft law (cf. MITRE GUERRA, (2012, 250 ss.), o Comentário não se esgota na simples função interpretativa dos arts. 11.º e 12.º do PIDESC (cf. MITRE GUERRA, 2012, 255-257), constituindo “um desenvolvimento quase-legislativo”, na medida em que (no que acompanha Ochoa Ruiz) estamos perante uma “interpretação criadora, quase legislativa”, que impulsiona “a prática ulterior dos Estados num determinado sentido”. Nesta linha, o autor associa ao documento “certo grau de vinculação de modo indireto”.
Partindo do reconhecimento de que os comentários gerais não têm natureza vinculativa, sendo, nessa medida, soft law, Helena Telino Neves (2023, 114 ss.) sustenta ter o Comentário Geral n.º 15 ido além da “mera interpretação” das normas do PIDESC, “assumindo o carácter de um soft law potencialmente criador de um hard law” (NEVES, 2023, 117). Independentemente disso, realça a autora o facto de o Comentário ter “promovido alterações nas práticas estatais ao delimitar o conteúdo, os elementos e as obrigações do direito de acesso à água potável” (NEVES, 2023, 118).
Se bem vemos, o Comentário Geral n.º 15 não pode deixar de ser considerado um texto integrador das previsões dos arts. 11.º e 12.º do PIDESC, a nível interpretativo, tendo, assim, uma natureza que o eleva dos simples ou estritos documentos de soft law, com o efeito de potenciar um caminho argumentativo e até decisório, em situações de conflito, no sentido de impor a quem sustente a falta de pertinência ou préstimo do Comentário na interpretação e densificação dos citados preceitos do PIDESC, a necessidade natural – o ónus – de o explicar ou fundamentar.
Um passo importante no reconhecimento do direito humano à água foi dado com a resolução das Nações Unidas n.º 64/292, de 2010. No item 1, esta resolução reconhece o direito a água potável e saneamento como um direito humano essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos. Como bem observa Helena Telino Neves (2023, 119), o facto de esta tesolução não declarar, mas reconhecer, demonstra que, atento o carácter não vinculativo das resoluções da Assembleia Geral, “não houve a criação de um novo direito, mas sim o reconhecimento formal da existência do direito à água no Direito Internacional”.
De realçar também a resolução A/HRC/RES/159 (2010), do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (cf. NEVES, 2023, 121), que, entre outros pontos, recomenda aos Estados que desenvolvam mecanismos e instrumentos para a plena realização das obrigações em matéria de direitos humanos relacionados com o acesso à água potável e ao saneamento. Pela sua força, reproduzimos o considerando 3: “Affirms that the human right to safe drinking water and sanitation is derived from the right to an adequate standard of living and inextricably related to the right to the highest attainable standard of physical and mental health, as well as the right to life and human dignity”.
O direito a água potável no quadro europeu
Circunscrevendo-nos a textos-chave (cf. TESTELLA, 2021, 42 ss.), há que destacar, em primeiro lugar, a diretiva 2000/60/CE (cf. FERNÁNDEZ DE CASTRO, 2012, 74 ss.), que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água. Refere-se-lhe Belén Burgos Garrido (2021, 117) como sendo o “instrumento de referência e peça chave em matéria hídrica”. Há que realçar, à cabeça, o considerando 1: “A água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um património que deve ser protegido, defendido e tratado como tal”. O objetivo desta diretiva, nos termos do seu art. 1.º, “é estabelecer um enquadramento para a proteção das águas interiores, das águas de transição, das águas costeiras e das águas subterrâneas”, em termos de, designadamente [alínea b)] promover “um consumo de água sustentável, baseado numa proteção a longo prazo dos recursos hídricos disponíveis”.
Um outro texto-chave – que é bem mais que um simples texto –, pelo seu profundo significado e pelo impacto que teve, tem como protagonistas diretos muitos milhares de cidadãos europeus. A iniciativa de cidadãos Right2Water (“Water and sanitation are a human right! Water is a public good, not a commodity!”) nasce em 2012, iniciando uma campanha a nível europeu, que recolheu quase dois milhões de assinaturas. O objetivo foi pressionar a Comissão Europeia no sentido de propor legislação implementando o direito humano à água e ao saneamento (“HRWS – Human Right to Water and Sanitation”) (cf. VAN DEN BERGE et al., 2022), tal como reconhecido pelas Nações Unidas. O impacto do movimento foi – e continua a ser – muito significativo na política europeia em matéria de água, com o reconhecimento, feito por várias instâncias europeias, e materializado em relevantes textos, de que a água é um bem público, não uma mercadoria. Não cabendo aqui analisar esse impacto, destaque-se, tão-só, a expressa assunção, na diretiva 2020/2184, da influência do movimento.
Antes disso, importa assinalar a resolução do Parlamento Europeu de 8 de setembro de 2015 (cf. PALOMBINO, 2023, 12 ss.), que acusa e louva a iniciativa Right2Water. Esta resolução exorta e insta a Comissão Europeia a tomar diversas medidas legislativas no domínio da água do direito à água. Destacamos os considerandos B, E e Q.
(i) Considerando B: “Considerando que o direito humano à água e ao saneamento engloba as dimensões de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade, acessibilidade dos preços e qualidade”;
(ii) Considerando E: “Considerando que a água é um dos elementos fundamentais para o desenvolvimento sustentável; considerando que centrar a assistência ao desenvolvimento na melhoria do abastecimento de água potável e do saneamento constitui um meio eficaz para concretizar os objetivos fundamentais de erradicação da pobreza e a promoção da igualdade social, da segurança alimentar e do crescimento económico”;
(iii) Considerando Q: “Considerando que a água tem uma função social, económica e ecológica e que a gestão correta do ciclo da água em benefício de todos garantirá a sua disponibilidade permanente e estável no atual contexto das alterações climáticas”.
Na parte das recomendações desta resolução, destacamos os itens 62, 77 e 90. Assim:
(i) Item 62: “Observa que os Estados-Membros devem prestar uma atenção especial às necessidades dos grupos vulneráveis da sociedade e também à garantia de que as pessoas mais necessitadas tenham acesso a água de qualidade e a preços comportáveis”;
(ii) Item 77: “Reafirma que o acesso à água potável em quantidade e qualidade suficiente constitui um direito humano básico e considera que é dever dos governos nacionais cumprir essa obrigação”;
(iii) Item 90: “Salienta que a satisfação das necessidades básicas de água deve constituir um direito humano fundamental incontestável, apoiado implícita e explicitamente pelo direito internacional, por declarações e pela prática dos Estados”.
A nível de resoluções, destacamos ainda a resolução do Parlamento Europeu de 15 de setembro de 2022 sobre as consequências da seca, dos incêndios e de outros fenómenos meteorológicos extremos. Destacamos os considerandos K, AB e AC.
(i) Considerando K: “Considerando que a água é um componente essencial do ciclo alimentar, considerando que é necessário que as águas subterrâneas e de superfície sejam de boa qualidade e estejam disponíveis em quantidades suficientes para lograr um sistema alimentar justo, saudável, respeitador do ambiente e sustentável […];
(ii) Considerando AB: “Considerando que a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o direito à água e ao saneamento com um direito humano em 28 de julho de 2010; considerando que a água potável limpa é essencial para todos os direitos humanos; considerando que, em 2013, 1.884.790 cidadãos assinaram a Iniciativa de Cidadania Europeia intitulada ‘Right2Water’ sobre o direito à água e ao saneamento; considerando que, atualmente, um milhão de cidadãos da UE não têm acesso à água e 8 milhões não dispõem de saneamento”;
(iii) Considerando AC: “Considerando que a seca agrava as condições de vida das pessoas devido ao calor e à falta de água; considerando que as pessoas mais carenciadas são afetadas de forma mais desproporcionada; considerando que existe uma taxa de mortalidade excessiva nos países europeus mais gravemente afetados pela seca […]”.
Particular realce merece a diretiva (UE) 2020/2184, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2020, relativa à qualidade da água destinada ao consumo humano. Ela reveste uma importância ímpar, sendo um texto fundamental no quadro do Direito Europeu da Água, transposta para o direito interno português pelo decreto-lei 69/2023, de 21 de agosto, a que fazemos adiante referência. Os objetivos desta diretiva são identificados logo no art. 1.º. De acordo com o seu n.º 1, a diretiva “diz respeito à qualidade da água destinada ao consumo humano para todos na União”. Mais específico é o n.º 2 do mesmo preceito: “A presente diretiva tem por objetivos proteger a saúde humana dos efeitos nocivos resultantes de qualquer contaminação da água destinada ao consumo humano, assegurando a sua salubridade e limpeza, e melhorar o acesso à água destinada ao consumo humano”.
Eloquente, entre outros, o considerando n.º 2: “O quadro jurídico estabelecido pela diretiva 98/83/CE visava proteger a saúde humana dos efeitos nocivos resultantes de qualquer contaminação da água destinada ao consumo humano, assegurando as suas salubridade e limpeza. A presente diretiva deverá atingir o mesmo objetivo e deverá melhorar o acesso à água destinada ao consumo humano para todos na União. Para o efeito, é necessário estabelecer, a nível da União, os requisitos mínimos a que deverá estra sujeita a água destinada a essa utilização […]”.
O direito a água potável em Portugal
- O direito a água potável não tem, na Constituição da República Portuguesa, uma consagração específica e expressa, diversamente do que ocorre nalgumas Constituições mais recentes, sobretudo a partir do século XXI, o que não será coincidência, atento o agravamento das dificuldades de acesso à água potável nas últimas décadas, associado au aumento da demografia e às alterações climáticas.
Encontramos várias situações de consagração constitucional expressa, designadamente em vários países da América do Sul e alguns (poucos) em África (cf. FERNÁNDEZ DE CASTRO, 2012, 79 ss.; PALOMBINO, 2023, 16 ss.). Na África do Sul, dispõe o art. 27.º da Constituição, de modo inequívoco e impressivo: “Everyone has the right to have access to […] sufficient food and water”.
Na Europa (cf. PALOMBINO, 2023, 7 ss.; IANNELLO, 2013, 83 ss.), só a Constituição da Eslovénia parece ser exceção num quadro geral de alguma insensibilidade constitucional a nível de consagração específica e expressa do direito a água, consagração essa conseguida na sequência de uma iniciativa de cidadãos na segunda década do século XXI.
Outros ordenamentos há de consagração constitucional implícita e outros que remetem a consagração do direito à água para um plano infraconstitucional (cf. PALOMBINO, 2023, 16 ss.).
O caso português enquadra-se nas situações de consagração constitucional implícita, podendo aqui invocar-se a alínea b) do art. 9.º da Constituição, segundo a qual é tarefa fundamental do Estado “garantir os direitos e liberdades fundamentais”, a que acresce a alínea d) do mesmo preceito, que dispõe ser tarefa fundamental do Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo”.
Acresce o art. 66.º da Constituição – cuja epígrafe é “Ambiente e qualidade de vida” –, cujo n.º 1 dispõe que “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”. Por sua vez, dispõe o n.º 2 que, em ordem a “assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável”, incumbe ao Estado, designadamente, nos termos da alínea d): “Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações”.
Mais distante, mas nem por isso menos pertinente, é a consagração de base, no art. 1.º da Constituição, da dignidade da pessoa humana, que deve ser vista, a um tempo, como valor, como princípio e como regra (cf. ALEXANDRINO, 2008).
Ainda que se adote uma perspetiva crítica relativamente à “multiplicação” de direitos fundamentais (ASCENSÃO, 2010) – o homem “carregado de direitos” –, não poderá, seguramente, ser alijado um direito essencial, biológico, como é o direito a água, independentemente da posição que se adote relativamente ao perímetro dos direitos fundamentais.
A chamada Lei da Água (lei 58/2005, de 29 de dezembro), que transpõe para o direito interno a Diretiva Quadro da Água (diretiva 2000/60/CE), estabelece (art. 1.º) o enquadramento para a gestão das águas superficiais, designadamente as águas interiores, de transição e costeiras, e das águas subterrâneas, de modo, entre outros fins, a promover uma utilização sustentável da água, baseada numa proteção a longo prazo dos recursos hídricos disponíveis.
O art. 3.º enuncia os princípios a que a gestão da água deve obedecer, a saber: (i) princípio do valor social da água, “que consagra o acesso universal à água para as necessidades humanas básicas a custo socialmente aceitável, e sem constituir fator de discriminação ou exclusão”; (ii) princípio da exploração e da gestão públicas; (iii) princípio da dimensão ambiental da água – “nos termos do qual se reconhece a necessidade de um elevado nível de proteção da água, de modo a garantir a sua utilização sustentável”; (iv) princípio do valor económico da água – por força do qual se consagra o reconhecimento da escassez atual ou potencial deste recurso e a necessidade de garantir a sua utilização económica eficiente […]”: (v) princípio da gestão integrada das águas e dos ecossistemas aquáticos e terrestres associados e zonas húmidas deles diretamente dependentes – “por força do qual importa desenvolver uma atuação em que se atenda simultaneamente a aspetos quantitativos e qualitativos, condição para o desenvolvimento sustentável”; (vi) princípio da precaução – “nos termos do qual as medidas destinadas a evitar o impacte negativo de uma ação sobre o ambiente devem ser adotadas, mesmo na ausência de certeza científica da existência de um relação causa-efeito entre eles”; (vii) princípio da prevenção – “por força do qual as ações com efeitos negativos no ambiente devem ser consideradas de forma antecipada, por forma a eliminar as próprias causas de alteração do ambiente ou reduzir os seus impactos quando tal não seja possível”; (viii) princípio da correção – “prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e da imposição ao emissor poluente de medidas de correção e recuperação e dos respetivos custos”; (ix) princípio da cooperação – “que assente no reconhecimento de que a proteção das águas constitui atribuição do Estado e dever dos particulares”; (x) princípio do uso razoável e equitativo das bacias hidrográficas partilhadas – “que reconhece aos Estados ribeirinhos o direito e a obrigação de utilizarem o curso de água de forma razoável e equitativa tendo em vista o aproveitamento otimizado e sustentável dos recursos, consistente com a sua proteção”.
Sob a epígrafe “Princípio”, o n.º 1 do art. 14.º dispõe o seguinte: “O ordenamento e planeamento dos recursos hídricos visam compatibilizar, de forma integrada, a utilização sustentável desses recursos com a sua proteção e valorização, bem como a proteção de pessoas e bens contra fenómenos extremos associados às águas”.
Dentre as definições (art. 4.º) que confluem para parametrizar o âmbito de aplicação da Lei da Água, destacamos a de águas destinadas ao consumo humano: “toda a água no seu estado original, ou após tratamento, destinada a ser bebida, a cozinhar, à preparação de alimentos ou outros fins domésticos, independentemente da sua origem e de ser ou não fornecida a partir de uma rede de distribuição, de camião ou navio-cisterna, em garrafas ou outros recipientes, com ou sem fins comerciais, bem como toda a água utilizada na indústria alimentar para o fabrico, transformação, conservação ou comercialização de produtos ou substâncias destinados ao consumo humano, exceto quando a utilização dessa água não afeta a salubridade do género alimentício na sua forma acabada”.
Destacamos, finalmente, o art. 95.º (Responsabilidade civil pelo dano ambiental), cujo n.º 1 dispõe o seguinte: “Quem causar uma deterioração do estado das águas, sem que a mesma decorra de utilização conforme com um correspondente título de aquisição e com as condições nele estabelecidas, deve custear integralmente as medidas necessárias à recomposição da condição que existiria caso a atividade devida não se tivesse verificado”. Trata-se, manifestamente, da aplicação do princípio poluidor-pagador.
O decreto-lei 69/2023, de 21 de agosto, estabelece o regime jurídico da qualidade da água destinada a consumo humano, transpondo para o direito interno quer a diretiva 2013/51/Euratom, do Conselho, “que estabelece requisitos para a proteção da saúde do público em geral no que diz respeito às substâncias radioativas presentes na água destinada ao consumo humano”, quer a diretiva (UE) 2020/184, “relativa à qualidade da água destinada ao consumo humano”, a que acima se fez referência. O âmbito de aplicação do diploma é, assim, o das águas destinadas ao consumo humano (art. 2.º), sem prejuízo de algumas exceções, como a das águas minerais, entre outras, que são objeto de legislação especial. O conceito central é o de água destinada ao consumo humano, conceito que é definido no art. 3.º como toda a água:
“i) No seu estado original, ou após tratamento, destinada a ser bebida, a cozinhar, à preparação de alimentos, à higiene pessoal ou a outros fins domésticos, quer em lugares públicos quer em lugares privados, independentemente da sua origem e de ser ou não fornecida a partir de uma rede de distribuição, fornecida a partir de uma cisterna fixa ou móvel, em garrafas ou outros recipientes, com ou sem fins comerciais, incluindo água de nascente;
- ii) Utilizada em empresa do setor alimentar para o fabrico, a transformação, a conservação ou a comercialização de produtos, ou substâncias, destinadas ao consumo humano, bem como a utilização na limpeza de superfícies, objetos e materiais que podem estar em contacto com os alimentos, exceto quando a utilização dessa água não afeta a salubridade do género alimentício na sua forma acabada”.
Destacam-se traços de regime:
(i) O n.º 1 do art. 4.º define os objetivos e princípios do diploma: “O presente decreto-lei visa proteger a saúde humana dos efeitos nocivos resultantes da contaminação da água destinada ao consumo humano, assegurando a salubridade, a limpeza e a melhoria do acesso à água destinada ao consumo humano”.
(ii) De acordo com o n.º 1 do art. 30.º, “deve ser garantido a todos o acesso à água destinada ao consumo humano”.
(iii) De acordo com a alínea c) do n.º 3 do art. 30.º, compete aos municípios e em articulação com as entidades gestoras dos sistemas de abastecimento públicos de água em baixa “[T]omar as medidas consideradas necessárias e adequadas para garantir o acesso à água destinada ao consumo humano para as pessoas ou grupos de pessoas vulneráveis e marginalizados”.
(iv) De acordo com o n.º 1 do art. 7.º, as entidades responsáveis pela aplicação do diploma “devem adotar as medidas necessárias para garantir que a água destinada ao consumo humano é salubre, limpa e desejavelmente equilibrada”.
(v) De acordo com o n.º 1 do art. 6.º, a água destinada ao consumo humano deve respeitar os valores paramétricos contantes do anexo I ao diploma.
(vi) De acordo com o n.º 1 do art. 9.º, “O abastecimento, o tratamento e a distribuição da água para consumo humano são sujeitos a uma abordagem baseada no risco, que abrange toda a cadeia de abastecimento desde a bacia de drenagem, a captação, o tratamento, a adução e o armazenamento até à distribuição da água no ponto de verificação de conformidade […]”.
(vii) De acordo com o n.º 1 do art. 16.º, “as entidades gestoras garantem a monitorização da qualidade da água destinada ao consumo humano […], a fim de verificar se a água colocada à disposição dos utilizadores preenche os requisitos impostos” pelo diploma.
(viii) O art. 46.º do diploma dá nova redação ao art. 61.º do decreto-lei 194/2009 (Regime Jurídico dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água), passando o n.º 1 a dispor que “Os utilizadores têm o direito a ser informados de forma clara e conveniente pela entidade gestora das condições em que o serviço é prestado, em especial no que respeita à qualidade da água fornecida, à qualidade do serviço e aos tarifários aplicáveis […]”.
Muito sucintamente se conclui, vincando que o direito a água potável conhece atualmente, tal como o direito a saneamento básico, um reconhecimento internacional, ora explícito ora implícito e com diversas intensidades.
E conhece-o também a nível europeu, tendo, ainda, tutela no direito interno português, não só atenta a sua tutela constitucional implícita, mas também na sequência de legislação infraconstitucional, em especial em resultado da transposição de diretivas europeias.
Identificamos, assim, uma base normativa para a tutela jurisdicional (cf. PALOMBINO, 2023, 56 ss.) do direito a água potável, designadamente a nível da responsabilização civil, já que, sem prejuízo da sua tutela enquanto direito fundamental e, logo, do seu relevo para efeitos de responsabilidade civil no quadro da primeira variante da ilicitude prevista no n.º 1 do art. 483.º do Código Civil, identificamos normas de proteção relevantes, agora no âmbito da segunda variante da ilicitude prevista no mesmo preceito (cf. ATAÍDE, 2023, 258 ss.). Não será, se bem vemos, particularmente difícil identificarmos disposições legais destinadas à proteção de interesses alheios, cuja violação permite a atuação da responsabilidade civil.
Formulamos, a fechar, um voto: que o exemplo de cidadania Right2Water – em prol da vida e da dignidade da pessoa humana – floresça e frutifique no domínio da água destinada a consumo humano.
Bibliografia
Impressa
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Autor: Januário da Costa Gomes