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    Ângelo, Carolina Beatriz

    Médica, feminista, ativista republicana (Guarda 16.04.1878 – Lisboa 3.10.1911), filha de Viriato António Ângelo e de Emília Barreto Ângelo, é a segunda dos quatro filhos do casal. Cresceu num ambiente familiar liberal, sendo o seu pai jornalista e apoiante do Partido Progressista, permitindo-lhe estudar e lutar por uma vida independente.

    Em 1902, tendo sido uma das primeiras mulheres a fazê-lo, concluiu o curso de Medicina, em Lisboa, casando com o médico e ativista republicano, seu primo, Januário Barreto, que vem a falecer precocemente, vítima de tuberculose, deixando uma filha em comum, de nome Maria Emília Ângelo Barreto. Iniciou a sua atividade profissional como médica, tendo sido a primeira cirurgiã portuguesa e a primeira médica que operou no Hospital de São José, especializando-se, mais tarde, em Ginecologia. Fruto de um ideário político democrático, defendendo um Estado reestruturado e a construção de uma sociedade pautada pela igualdade de direitos, independentemente do sexo, cor da pele, estado social ou riqueza, a luta pelos direitos das mulheres, que a tornassem autónoma e independente, com base na educação e no trabalho, constitui um pilar fundamental da sua intervenção social e política. Com efeito, defensora dos ideais republicanos e dos valores feministas, complementou a sua atividade profissional com uma intervenção cívica e política na defesa da cidadania no feminino e no melhoramento da condição social da mulher, assente na sua autonomia e independência, mediante a educação e a construção de uma cultura cívica, conducentes à sua emancipação e libertação.

    Em 1906, aderiu ao Comité Português da Associação francesa La Paix et le Désarmement par les Femmes, com Adelaide Cabete, cujo principal objetivo era promover uma solução para os conflitos internacionais assente na paz, acabando por demitir-se em 1909, ao comungar das ideias de Ana de Castro Osório, que defendia o serviço militar obrigatório para as mulheres, assim como o direito ao voto feminino restrito.

    Aderiu à Maçonaria em 1907, integrando a Loja Humanidade, tendo sido venerável, adotando o nome simbólico de Lígia, e o seu nome permanecerá ligado à mesma, dando lugar, após a sua morte, ao Grémio Carolina Ângelo, em sua memória.

    Defensora da entrada das mulheres na esfera pública, contrariando o domínio masculino, integrou a Liga Portuguesa da Paz, com o propósito de sensibilizar para o pacifismo, para a igualdade de direitos entre homens e mulheres, asseverando que as mulheres deveriam poder eleger e ser eleitas para, consequentemente, poder discernir sobre a paz e a guerra. O voto seria uma forma de melhorar o estatuto social, político e económico das mulheres e promover a sua participação no espaço público, até então vedada.

    Ainda em 1907, integrou o Grupo Português de Estudos Feministas, fundado por Ana de Castro Osório, no sentido de difundir os ideais feministas e promover a igualdade de direitos entre homens e mulheres, incentivando a educação das mulheres, com vista à sua emancipação. Aumentar a escolaridade da mulher permitir-lhe-ia um reposicionamento socioprofissional, podendo exercer novas profissões, ter capacidade reivindicativa e independência económica, colocando em causa a imagem da mulher tradicional, assente, em exclusividade, nos deveres domésticos e familiares.

    Foi impulsionadora de um projeto de criação de uma escola de enfermagem laica (LOUSADA, 2011, 675). Desempenhou um papel de especial relevo na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP), sendo eleita vice-presidente em 1910, envolvendo-se, com Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete e Maria Veleda, em práticas de propaganda e de sensibilização, em prol da educação e formação das mulheres, e na discussão das leis, no que diz respeito aos seus direitos. O direito ao voto assume uma esfera da sua atuação particular, primeiramente no âmbito da LRMP e, mais tarde, na Associação de Propaganda Feminista, fundada com Ana de Castro Osório, em maio de 1911, demarcando-se relativamente ao voto restrito ou voto amplo das mulheres, assim como em matéria de ordem religiosa. Considerou que o voto restrito seria um incentivo para que a mulher estudasse e trabalhasse para a sua autonomia e independência (ESTEVES, 2014, 477).

    De facto, o Partido Republicano Português tornou possível a participação ativa das mulheres, nas sessões organizadas nos centros republicanos, sendo convidadas a secretariar comícios, como forma de protesto ao regime monárquico, e, inclusivamente, a costurar a bandeira republicana hasteada em Lisboa, a 5 de outubro de 1910, no edifício da Câmara Municipal, atividade na qual Carolina Beatriz Ângelo marcou presença. No entanto, uma vez que as promessas do governo republicano não haviam sido satisfeitas, na medida em que apenas os cidadãos maiores de 21 anos, residentes em território nacional, alfabetizados e chefes de família, podiam votar, Carolina Beatriz Ângelo posicionou-se, reagindo, na prática, contra a incapacidade geral em cumprir promessas, por parte da força política. Aproveitou a ambiguidade da lei, relativamente ao termo “cidadãos”, na medida em que o masculino poderia assumir uma forma universal, integrando os dois sexos, masculino e feminino, levando a LRMP a delinear uma estratégia em conformidade, ao deliberar que Carolina Beatriz Ângelo e Ana de Castro Osório requeressem a sua inclusão nos cadernos de recenseamento eleitoral. A única que decidiu avançar com o requerimento foi Carolina Beatriz Ângelo, considerando que reunia as condições de eleitora, uma vez que era médica e chefe de família, por ser viúva e ter uma filha que sustentava através do seu trabalho, o que veio a resultar numa recusa, tendo tido repercussões ao nível da discussão do sufrágio feminino na imprensa nacional. Ao ver negado, pelo poder político, o seu requerimento, inconformada, ousou fazer valer o seu direito de eleitora e prosseguiu para o tribunal, onde o caso foi apreciado pelo pai de Ana de Castro Osório, juiz, cuja decisão se demonstrara favorável, ordenando que o seu nome fosse inscrito nos cadernos eleitorais. Seguiu-se, assim, a sua inscrição no recenseamento eleitoral, votando, a 28 de maio de 1911, na Assembleia Eleitoral de Arroios, onde se encontrava recenseada com o número 2513 (MARIANO, 2022, 170), tornando-se a primeira mulher portuguesa a exercer o direito de voto nas eleições para a Assembleia Constituinte, tendo sido um facto com repercussões marcantes a nível nacional e internacional. O seu gesto foi alvo de registo fotográfico e largamente noticiado pelos jornais O Século, O Tempo, A Vanguarda e A Capital, bem como divulgado pela imprensa internacional (BARROSO, 2017, 78).

    Apesar de o caminho, em matéria de sufrágio feminino, ter sido sinuoso e demorado no tempo, só tendo sido concedido em termos restritos em 1931, e de forma plena após a Revolução de 1974, sob a forma de sufrágio universal, o gesto de Carolina Beatriz Ângelo constitui um marco simbólico de uma luta pela igualdade de direitos e emancipação da mulher, sendo uma figura emblemática no que à luta feminista diz respeito. Enquanto feminista, segundo uma visão moderada, pela força da razão, aspirava mudanças de fundo na sociedade portuguesa relativamente à situação das mulheres, em matéria de direitos e dignidade, sem colocar em causa a ordem pública ou o próprio funcionamento das instituições políticas. Desafiou o poder político masculino ao ser defensora acérrima do voto feminino, um assunto que não foi levado a sério pelo regime e, até mesmo, pela própria imprensa, o que “permite aos humoristas algumas sátiras com uma dose de misoginia” (VIEIRA, 1999, 159), ridicularizando a possibilidade de as mulheres votarem. Um percurso de vida curto, mas intenso, tal como a mesma considerou em carta dirigida a Ana de Castro Osório a 2 de julho de 1911 (ESTEVES, 2014, 490). Envolveu-se na edificação do associativismo feminista, republicano e sufragista, de forma pacífica e centrada na razão, lutando por uma sociedade mais justa, em defesa dos direitos humanos, na qual as mulheres exercessem um papel ativo de cidadania.

    Carolina Beatriz Ângelo, a primeira cidadã portuguesa, assume-se como figura ímpar no âmbito da defesa dos direitos humanos, em particular dos direitos das mulheres, da igualdade, em matéria de valorização individual e coletiva, cruzando diversas esferas de atuação, tais como a política, laboral e familiar, matérias que continuam a ser discutidas até aos dias de hoje, no caminho para uma situação de igualdade plena entre homens e mulheres, numa sociedade verdadeiramente digna e justa.

     

    Bibliografia

    Impressa

    ARMADA, F. d’ (2010). As Mulheres na Implantação da República. Lisboa: Ésquilo.

    BARROSO, M. do S. (2017). “Carolina Beatriz Ângelo: A prática da medicina e a luta pelos direitos das mulheres”. Cadernos de Cultura – Medicina na Beira Interior. Da Pré-História ao Século XXI, XXXI (nov.), 75-80.

    ESTEVES, J. G. (1998). As Origens do Sufragismo Português. A Primeira Organização Sufragista Portuguesa: A Associação de Propaganda Feminista (1911-1918). Lisboa: Editorial Bizâncio.

    LOUSADA, I. (2011). “Pela pátria: A cruzada das mulheres portuguesas (1916-1938)”. In 100 Anos do Regime Republicano: Políticas, Rupturas e Continuidades. Actas do XIX Colóquio da História Militar (667-688). Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar.

    MARIANO, F. (2022). Às Urnas. A Reivindicação do Voto Feminino na Península Ibérica (1821-1934). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

    SILVA, M. R. T. (2013). Carolina Beatriz Ângelo (1878-1911) (2.ª ed.). Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Presidência do Conselho de Ministros.

    VIEIRA, J. (1999). “O quotidiano”. In Portugal Século XX. Crónica em Imagens: 1910-1920 (128-161). Lisboa: Círculo de Leitores.

     

    Digital

    À Porta da História – Carolina Beatriz Ângelo (2015). Programa de J. Nunes, J. P. da Costa e P. da C. Teles, Produção UKbar Filmes/RTP2 (20:56), https://ensina.rtp.pt/artigo/beatriz-angelo-a-primeira-mulher-a-votar-em-portugal/ (acedido a 17-01-24).

    Câmara Clara – Ser Feminista é Querer Ser Pessoa (2011). Programa de P. M. Pinheiro e A. L. Amaral. Produção RTP2 (59:31), https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ser-feminista-e-querer-ser-pessoa/  (acedido a 17-01-24)

    ESTEVES, J. (2014). “Da esperança à deceção: A ilusão do sufrágio feminino na revolução republicana portuguesa de 19102. História Constitucional, 15 (jan.-dez.), 471-507, https://www.redalyc.org/pdf/2590/259031826016.pdf (acedido a 24-01-2024).

     

    Autora: Ana Lúcia Ferreira

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