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    Antigos e Modernos

    Enunciar o tema dos Antigos e Modernos remete diretamente para a querela seiscentista que teve como figuras antagónicas e centrais Charles Perrault (1628-1703) e Nicolas Boileau (1636-1711). É certo que essa correlação previsível não predetermina o confinamento da temática ao caso restrito da querela. Pode, no entanto, enviesar o seu desenvolvimento encaminhando-o para a construção de análises culturais excessivamente cingidas a sujeitos e idiossincrasias, com prejuízo da conceção globalizante que integra a complexidade do tema dos Antigos e Modernos em toda a sua extensão e profundidade. Se dúvidas houvesse quanto à teia de sentidos diversos e mesmo contraditórios em que se enredam os termos do que é moderno e modernidade, bastaria percorrer as páginas da obra de Henri Meschonnic intitulada Modernité Modernité (1988). O título, com formulação duplicada, quer precisamente afirmar que não há só uma modernidade, de tal modo as modernidades transcendem o ser moderno. Se da modernidade se pode dizer que é combate e rutura, com mais força e pertinência se dirá também que é “faculdade do presente”, “invenção de formas de vida”.

    Dada a profusão e complexidade de sentidos possíveis, importa indagar quais as componentes etimológica e semântica dos vocábulos que entram no binómio Antigos e Modernos. É no contexto de passagem das instituições do Império Romano para o novo quadro civilizacional trazido pelo cristianismo que aparece pela primeira vez, ao findar o século V, o neologismo latino modernus, formado a partir de modo (agora mesmo, há pouco), tal como de hodie procede hodiernus (de hoje, atual). Por falta de efetiva consciência histórica e ausência de prática de compartimentação periodológica em épocas, os antigos romanos só muito tarde começaram a pedir emprestado ao vocabulário grego o termo latinizado neoterici, neotéricos. O facto de se estar a fazer a experiência intervalar de um mundo que dá sinais de estar a chegar ao fim, e de outro prestes a começar, ainda que envolto em contornos vagos, terá acentuado o sentimento de atualidade do momento novo, por isso moderno, que se estava a viver. Na verdade, “Modernus não quer dizer simplesmente ‘novo’, mas ‘atual’” (JAUSS, 1978, 163). Quando tomamos o termo no sentido de “atual”, ele concentra em si a referência de oposição ao passado e ao futuro. Ao conceber-se como experiência de distanciamento em relação ao que se tornou antigo, e como aceitação do novo que, estando já presente, continua ainda em construção, há nele como em Jano dois rostos, um que olha para trás e outro para a frente. A consciência de modernidade é, cronologicamente falando, bipolar com orientação retrospetiva e prospetiva. Vai ser através das transformações históricas e das mudanças civilizacionais que a perceção do que significa ser moderno e ser modernidade se desenvolve e desdobra. Vemos isso em especial nas múltiplas aceções que toma no decorrer dos séculos o binómio “antigo” e “moderno”. Nesta matéria ganhou grande realce na história das ideias o dito de Bernard de Chartres transmitido em meados do século XII por João de Salisbúria no Metalogicon: “nós somos como anões aos ombros de gigantes para conseguirmos ver melhor e mais longe do que eles, não por causa da agudeza da nossa visão nem do tamanho da nossa estatura, mas porque somos levantados e erguidos até à altura de gigantes” (apud ARMOGATHE, 2001, 829). Há nessas palavras certa ambiguidade, apesar de mais frequentemente elas serem interpretadas como afirmação do maior poder de visão dos modernos, donde a sua superioridade sobre os antigos. Porém, no mesmo texto também se pode ler o reconhecimento do grande valor que têm os antigos. Verdadeiros gigantes são eles, porque, sem os antigos, não passariam os modernos de limitadíssimos anões. Ao falarmos aqui de ambiguidade, estamos a mostrar que tanto a relação de Antigos e Modernos como os dois polos dessa relação comportam uma dimensão de polissemia bem patente desde a Idade Média. Nos séculos XII e XIII, aos antigos, que são os escritores pagãos, gregos e latinos, contrapunham-se os modernos, isto é, os Padres da Igreja e os escritores cristãos. Aos filósofos identificados como sábios pagãos da antiguidade contrapunham-se os modernos, que são os mestres cristãos coetâneos desses dois séculos. Com a difusão da lógica aristotélica assiste-se à oposição da logica nova do moderno Abelardo à logica vetus do antigo Boécio. Se pode haver antiqui, os Padres da Igreja, e moderni, os teólogos e filósofos escolásticos, os quais distam séculos uns dos outros, também podem grandes mestres do pensamento cristão, separados em Antigos e Modernos, estar apenas há distância de uma ou duas gerações. É o que sucede com o mestre parisiense do século XII, Pedro Lombardo, tratado como antigo pela geração dos modernos Alberto Magno, Boaventura e Tomás de Aquino que floresceram à volta de meados do século XIII (ARMOGATHE, 2001, 807-808 passim). Em contexto histórico diferente, já no decurso do século XV, assiste-se com frequência, tanto no campo da filosofia como no da espiritualidade cristã, ao confronto entre uma via moderna e uma via antiqua. Dir-se-ia que então as práticas religiosas do cristianismo tradicional acusavam alguma fadiga, com clérigos mal preparados ou simplesmente ignorantes, e ordens religiosas pouco cumpridoras do espírito regular. Os que tinham consciência da situação não se conformavam, apelando para a reformatio, procurando renovar a vida cristã sob a forma da chamada devotio moderna.

    A existência de uma relação mais ou menos tensa sempre que se colocam lado a lado Antigos e Modernos procede da propensão espontânea para comparar a qualidade, valor ou mérito de uns e outros. Resulta dessa comparação o título de superioridade a atribuir através de disputas, por vezes de grande intensidade, participadas por diversos contendores, e frequentemente duradoiras. Encontramos em França, nas décadas finais do século XVII, a retumbante contenda conhecida como Querelle des Anciens et des Modernes. Na realidade, já antes desses episódios, alguns modernos defenderam posições de elogio e celebração de conquistas até então não alcançadas. Na Itália, Alessandro Tassoni (1565-1635), autor de uma epopeia cómica, La Secchia Rapita (1622) e de vários volumes de análises e comentários sobre arte, literatura, sociedade e política, coloca frente a frente duas épocas fundadoras: de um lado, a antiguidade grega e romana, do outro, os recentes mestres e autores renascentistas. Atribui grande valia a ambos os lados mas, aos olhos de Tassoni, os artistas do Renascimento sobressaem, porque entretanto o mundo foi transformado pela fé e pela doutrina cristã de inegável superioridade religiosa e moral sobre o paganismo. No confronto das duas épocas, Tassoni, sem deixar de ser sensível ao progresso e sempre irónico, não cai na celebração narcísica da grandeza dos modernos, relativizando antes os méritos de uns e outros. A relativização envolve a perceção de que a qualidade de ser antigo, também se pode dizer dos mais recentes na linha do tempo. Na Cena delle Ceneri, já Giordano Bruno tinha verificado que “somos mais velhos e possuímos maior idade que os nossos predecessores”. Esta ideia é igualmente assumida e aprofundada por Francis Bacon no Novum Organon. Nesta inversão cronológica da antiguidade, as sociedades e os homens das épocas mais recentes são afinal os que gozam de maior amadurecimento alcançado pela experiência e progresso acumulados pelas gerações passadas. Neste sentido, a consciência que temos hoje dos direitos humanos coloca-nos em patamar nunca antes atingido. A nova e mais apurada perceção desses diretos nos tempos modernos beneficia do conhecimento histórico da milenar cultura de desumanidade feita de desigualdades e escravidão, e do amadurecimento ético e jurídico que habilita a época atual para superar a imaturidade das gerações passadas. Assim acontece, como entende Bacon, se associarmos a ideia de antiguidade à velhice, idade mais amadurecida e adulta. Ora, é isso mesmo o que se passa com os homens dos tempos mais recentes que, por acumularem a experiência dos antigos, têm a maturidade que anda associada à velhice.

    Existe, aos olhos do Padre António Vieira, uma profética do tempo que vai muito para além da tese por ele defendida na História do Futuro, segundo a qual “o melhor comentador das profecias é o tempo”. Se o tempo, enquanto comentador e repositório de comentários, faz germinar e crescer novos horizontes de sentido, o mesmo tempo profetiza a plenitude de uma escatologia que já trabalha nos limites do presente. Há assim uma profética do tempo que, além da função de comentador, investe na história uma ontologia incoativa, desde já anunciadora do futuro e da plenitude a vir. Com o fluir dos tempos cresce a verdade e avança a história. A centralidade da dinâmica do futuro na hermenêutica histórica e teológica de Vieira reserva ao pensador jesuíta lugar proeminente entre os partidários dos Modernos.

    A grande polémica acima referida surgiu no seio da Academia Francesa fundada em 1634 por Richelieu para defender e aperfeiçoar a língua da nação, de modo a servir o desenvolvimento das artes e das ciências. Estava em jogo no domínio literário decidir se os autores gregos e latinos deviam servir de norma como expoentes máximos do bom gosto que devia ser imitado, ou se deviam antes ser explorados novos caminhos. Nicolas Boileau (1636-1711), seguido por notáveis como La Fontaine e Racine, acreditava que autores antigos, como Homero e Virgílio, tinham atingido o ideal de perfeição artística, devendo por isso ser imitados. No campo oposto, Charles Perrault (1628-1703), acompanhado por Molière, Fontenelle e outros, rejeitava o servilismo das imitações, defendiam a liberdade de criação artística e o progresso cultural, tendo em vista o enriquecimento da língua francesa. As duas posições foram cimentadas através de peripécias, por ocasião de obras que iam sendo publicadas. Perrault, superintendente dos edifícios do rei, membro da comissão encarregada de redigir as inscrições dos monumentos, alto funcionário do Estado sob a tutela de Colbert, vem na linha de outra figura de grande prestígio, Jean Desmarets (1600-1676), literato talentoso e colaborador do cardeal Richelieu. No poema publicado um ano antes de falecer, Défense de la Poésie et de la Langue Française Adressée à Monsieur Perrault (1675), Desmarets atacava Boileau, opunha ao tempo cíclico da Roma pagã o tempo linear da visão cristã da história e incitava Perrault a celebrar a força e beleza das criações expressas na língua francesa do século de Luís XIV. Com a nova era iniciada pelo cristianismo, vencedor dos erros do paganismo, chegara o progresso religioso e moral. Este progresso atravessa a literatura, de tal modo que a poesia cristã supera por isso a poesia legada pelos antigos. Os dois representantes da mais alta administração do Estado alinham pelo cristianismo na versão católica como esteio do poder do Estado e pela razão moderna cujos frutos vão amadurecendo quer nos progressos da ciência quer na renovação da literatura e das artes.

    Foi em 1677 que se deu a primeira vitória dos Modernos. Debatia-se então a língua a utilizar nas inscrições dos monumentos nacionais. Ficou decidido que as inscrições fossem gravadas em francês e não em latim. A grande polémica acabou por rebentar com estrondo em 1687, quando Charles Perrault deu a ler, em sessão da Academia, o seu poema panegírico Le Siècle de Louis le Grand. A disputa então levada ao rubro entre Boileau e Perrault, chefes de fila com vários seguidores, abordou matérias de natureza literária e artística suscitadas por modos diferentes de avaliar gostos, formas e autores. Sendo inegável o relevo que aí ocupa a dimensão estética, esta não deve ocultar a trama palaciana em que a querela sempre andou enredada. Tanto o partido dos Antigos como o partido dos Modernos cultivaram a proximidade dos poderosos e tudo fizeram para homenagear o rei e dele conseguir as boas graças. Com outros personagens e matérias, e menor intensidade, a querela prolongou-se ao longo do século seguinte, com reflexos significativos noutros países.

    Também no ambiente cultural inglês se assistiu à discussão em torno dos Antigos e Modernos. Sir William Temple (1628-1699), ao discorrer sobre o saber antigo e o saber moderno, realça a excelência dos antigos na literatura, artes e ciência. Chega mesmo a considerar que os antigos jamais foram igualados. Na mesma linha segue Jonathan Swift (1667-1745) que, na obra The Battle of the Books, alegoriza uma batalha travada entre criaturas antigas e criaturas modernas chamadas livros. Por sua vez, William Wotton (1666-1726), em Reflections upon Ancient and Modern Learning (1694), contesta que os antigos sejam insuperáveis. Comprova-o com os recentes progressos alcançados então pelos modernos, graças às espantosas descobertas nas ciências naturais.

    Na Itália, França e Grã-Bretanha, a Querela dos Antigos e Modernos teve nas questões literária e estética o principal eixo à volta do qual se movimentaram sensibilidades, argumentos e contendores. Não foi exatamente assim em Portugal, onde as mais badaladas disputas se travaram nos campos da educação, filosofia e política. Por vezes encontramos o tema Antigos e Modernos acompanhado de subtemas afins, mas sem dar origem a intervenções que configurem verdadeiras querelas. Vemos isso, por exemplo, nas Prosas Portuguesas onde lemos: “Que nos homens deste tempo a memória e o juízo tenham ou igual ou ainda mais vigor que nos antepassados, claramente o demonstra a perfeição e altura em que hoje estão as Artes e as Ciências; os livros que nelas escrevem os modernos excedem no número, método, notícia e elegância todas as obras dos antigos” (BLUTEAU, 1728, I, 39). Fica enunciada a questão, mas aqui, como em outros textos, não se conhecem réplicas diretas, e a querela não chega a existir.

    Entre as várias situações em que portugueses assumem posições de Antigos e Modernos em confronto, um dos casos paradigmáticos foi certamente a querela relativa ao Verdadeiro Método de Estudar (1746) e às temáticas pedagógica e filosófica no país. A componente reformadora que envolve, sobretudo no domínio da educação, a vontade de instaurar ideias e práticas modernas repercute-se no compromisso de abrir caminho à modernidade na vida política. Abrir caminho, mas sem pôr em causa as estruturas estabelecidas nem os princípios essenciais que regulam a organização da sociedade.

    A existência da tradição escolar de ensino da filosofia em Portugal, em que eram seguidos os princípios e o sistema do aristotelismo, configura a polaridade dos antigos contra a qual investe Luís António Verney (1713-1792) em nome da filosofia moderna. Trata-se de uma tradição reforçada pelas normas instituídas na Ratio Studiorum (código pedagógico da Companhia de Jesus) e postas em prática nos colégios dirigidos pelos jesuítas desde meados do século XVI. O prestígio adquirido pela obra de Aristóteles como sistematização da racionalidade humana colocada ao serviço da inteligência da fé na escolástica medieval conferiu ao aristotelismo uma espécie de canonização dentro da cristandade latina. Este estatuto terá impermeabilizado na Igreja os pensamentos filosófico e teológico, furtando-os às novidades geradas pela imparável dinâmica reflexiva do espírito humano. A escolástica que em seus primórdios fortaleceu e enriqueceu o pensamento teológico havia-se, entretanto, fechado e resistido ao despertar da filosofia moderna representada pela originalidade inovadora de Bacon, Galileu, Descartes, Locke e Newton. São os sinais dessa resistência que assinalam quanto a escolástica aristotélica se tornara, aos olhos de Verney, mais do que antiquada, propriamente arcaica.

    Ao longo das 16 cartas que compõem o Verdadeiro Método de Estudar, abundam as razões para fragilizar a adoção do método e das temáticas da escolástica aristotélica e fazer valer antes a importância das contribuições prestadas pelo saber filosófico dos modernos pensadores. Mas quando se trata de mostrar os fatores que caraterizam a resistência à filosofia moderna em Portugal, são aduzidos sobretudo dados de natureza social e cultural. Assim sucede porque, segundo Verney, os defensores da tradição acusam de ateísmo as ideias modernas, alegam a vinculação da Igreja ao aristotelismo e a sua recusa de se compatibilizar com qualquer outra corrente filosófica, e associam a filosofia moderna a países estrangeiros infestados de hereges considerados culturalmente inferiores.

    A modernidade fica a dever-se à marcha da história portadora de novas conquistas em todas as áreas do conhecimento, designadamente na do saber filosófico. É a ignorância da história da filosofia que, por desconhecimento das obras dos pensadores modernos, explica o obstinado apego à tradição do método silogístico e ao discurso abstrato e nebuloso sem ancoragem no mundo real. Entretanto, Descartes e outros modernos já haviam lançado as bases da visão mecanicista da natureza expressa na linguagem da matemática universal. Por seu lado, Bacon, Galileu, Locke e Newton inovavam ao fundar na experiência e na experimentação a nova ciência física. Reconhecer o mérito dos autores modernos pela criatividade e poder de inovação não quer dizer que tudo quanto ensinavam tinha de ser igualmente aceite, nem muito menos que, com eles, se tinha atingido o cume do conhecimento possível. De facto, o próprio Verney demarca-se do sistema de Descartes sem rodeios: “Eu certamente não sou cartesiano, porque me persuado que o tal sistema, em muitas coisas, é mais engenhoso que verdadeiro” (VERNEY, 1950, III, 14). A ideia de sistema afigura-se conotada com a imagem de um universo fechado que dispensa algo mais que possa perturbar o equilíbrio já adquirido. O método baseado na observação, experiência e experimentação por meio das quais se ensaia a explicação dos fenómenos reflete um universo em que o real permanece aberto em permanência à curiosidade e perscrutação pelo engenho racional do investigador. É esta curiosidade empenhada em devassar as leis a que obedece o funcionamento da natureza que move os estudiosos da filosofia natural como Bacon, Locke e Newton, figuras de proa, entre outras, da ciência moderna, mal conhecida então em Portugal. Enquanto outras nações europeias faziam progredir os estudos com os novos procedimentos de pesquisa, assim se afirmando modernas, a nação portuguesa desprezava os estudos estrangeiros e, insiste Verney, “com tal empenho, como se fossem maus costumes ou coisas muito nocivas” (VERNEY, III, 1950, 18).

    À disputa entre os Antigos, obstinados na defesa da escolástica aristotélica, e os Modernos, alinhados com Bacon, Galileu e Newton, atribui Verney encenação tipicamente belicista. Aí se disparam “balas de lã”, de um lado, e, do outro, balas verdadeiramente eficazes. A guerra estava declarada desde que os antigos “se viram atacados por estes modernos Filósofos, os quais nos princípios deste século conspiraram todos para abrir os olhos ao mundo literário, não querendo os velhos perder as suas conquistas” (VERNEY, III, 1950, 32). Abrir os olhos era, neste caso, aceitar a filosofia natural que, mais aberta à observação e ao experimentalismo, reconhecia os ganhos do conhecimento científico. Os modernos faziam assim jus à história enquanto transmissão dos passos em frente que dá o entendimento humano na compreensão do mundo real. O Verdadeiro Método reclama que a figura dos antigos não seja rejeitada indiscriminadamente. Se há antigos que no seu tempo contribuíram de modo notável para o enriquecimento das artes e do saber, já a sua invocação como argumento de autoridade é o que os modernos rejeitam sem hesitar. Aceitar tal argumento implica renunciar ao pensamento próprio e ao dever de fazer avançar o conhecimento, ou, como lembra Verney, mais querer “errar por cabeça alheia, que acertar pela própria” (VERNEY, 1950, III, 75).

    Embora não esteja tão focado em questões expressamente de método e de pedagogia, Antero de Quental tem plena consciência de viver mergulhado no fervilhante “movimento moderno”. E quer comunicar essa consciência aos portugueses, seus contemporâneos. Ao levantar a voz para promover a europeização do país, retoma o programa anteriormente seguido pelos estrangeirados. Estando sem equívocos votado à defesa da modernidade, também não enjeita o Portugal antigo cuja grandeza não se cansa de apregoar. Temos em Antero tanto o antigo como o moderno igualmente celebrados, mas igualmente ameaçados pelos acontecimentos da história política dos séculos XVII, XVIII e XIX, que tendo pervertido os tempos gloriosos vividos até começos do século XVI pesavam agora como duro fardo e forte atrito na marcha do urgente movimento de modernização. Prevalece no espírito de Antero o apelo do novo que há de ser conquistado pela revolução na vida, na sociedade e na arte. Em carta datada de 10 de setembro de 1871 a Manuel Sardenha, diz nada se poder esperar do esgotamento a que chegou a arte: “A arte e a literatura portuguesa (e a europeia também) está gasta: uma ideia nova é o que ela precisa para se regenerar: e essa ideia qual pode ser senão o novo credo humanitário?” (QUENTAL, I, 1989, 148). À arte compete, segundo ele, a missão de acompanhar a marcha da humanidade destinada a instaurar a igualdade, a justiça e a liberdade.

    O que ficou conhecido como questão do Bom Senso e do Bom Gosto, ou ainda como Questão Coimbrã, resultou da crítica desfavorável que António Feliciano de Castilho fez às Odes Modernas, livro de poemas publicado por Antero de Quental em 1865, bem como aos livros de poemas, Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras, de Teófilo Braga. Sob a conflitualidade de natureza primordialmente literária defrontam-se duas visões opostas assentes em filosofias de vida e conceções de sociedade servidas por diferentes sensibilidades e projetos estéticos e sociais. De um lado, o romantismo conformado com os modelos tradicionais da mentalidade nacional estagnada em rotinas sem ambição. Do outro, uma geração de jovens universitários irreverentes, despertos para as novidades europeias e apaixonados pelos ideais de igualdade, justiça e liberdade. Embalados pela epopeia da história da humanidade, identificam-se com uma poética que pretende ser a voz da revolução. Conscientes de serem a “Geração Nova”, rompem com o sentimentalismo romântico e apostam na modernização do país. O compromisso de modernizar as letras, as artes, a sociedade, vai presidir, alguns anos depois, à promoção das Conferências do Casino Lisbonense. Portadora de indómita vontade de modernidade, a chamada Geração de Setenta personaliza na cultura portuguesa o questionamento geracional dos novos às gerações do passado. Desse modo, a existência de modernidades geracionais instaura no complexo mental dos Antigos e Modernos o fenómeno de uma recorrência histórica em que a sucessão de novas gerações ciosas da sua modernidade remete as gerações do passado para o universo dos antigos.

    Bibliografia

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    SANTOS, L. R. dos (2009). “Da verdade e do tempo: António Vieira e a controvérsia dos antigos e dos modernos”. In J. E. Franco (coord.). Entre a Selva e a Corte. Novos Olhares sobre Vieira (79-89). Lisboa: Esfera do Caos.

    VERNEY, L. A. (1949-1953). Verdadeiro Método de Estudar (5 vols.). Ed. A. S. Júnior. Lisboa: Sá da Costa Editora.

    VIEIRA, P. A. (2014). Obra Completa – História do Futuro (t. III, vol. I). Coord. J. E. Franco & P. Calafate. Lisboa: Círculo de Leitores.

     

    Autor: Luís Machado de Abreu

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