Antiguidade Clássica [Dicionário Global]
Antiguidade Clássica [Dicionário Global]
A invenção da pólis, da liberdade graças ao primado da lei, da ciência e da escola pelos antigos Gregos e a invenção do direito, da propriedade privada, do conceito de pessoa e de humanismo pelos antigos Romanos formam, segundo Philippe Nemo, na obra O que é o Ocidente?, dois dos pilares em que assenta a matriz cultural e identitária do Ocidente (NEMO, 2005, 11). Vale a pena analisarmos cada uma destas heranças em separado, porque, embora ambas as civilizações tenham dado um contributo decisivo e incontestável à afirmação dos direitos humanos, é justo reconhecer, dando razão a Cícero (Do orador 1.44.195-197), que os romanos foram mais longe do que os gregos na reflexão e no desenvolvimento do direito e das liberdades individuais e coletivas.
Em contexto helénico, Drácon surge como o mais antigo legislador e fundador do direito europeu. Terá sido ele a inaugurar, em Atenas, no último quartel do séc. VII a.C., a prática de passar as leis a escrito. Embora a sua legislação tenha ficado com uma reputação de severidade extrema, bem conhecida de nós pelo qualificativo “draconiano”, por supostamente, segundo o testemunho de Plutarco (Vida de Sólon 17.1-3), condenar com a pena de morte todos os delitos, a verdade é que não existem provas que apontem nesse sentido. Antes, pelo contrário: ao legislador ateniense atribui-se a primeira lei do homicídio, e esta revela para a época claros indícios de ponderada humanidade, ao dispor que a pessoa culpada de homicídio não intencional fosse exilada e não morta, como acontecia anteriormente. O exílio defendia o acusado de represálias e criava condições para negociar o perdão com os familiares da vítima. Esta lei representa um avanço importante no direito, uma vez que traz para o domínio da autoridade pública uma prática regulada unicamente pela tradição e confinada à esfera familiar, a qual dava azo a uma lógica de vinganças familiares sucessivas.
O seu sucessor, Sólon, retoma algumas das leis de Drácon, mas destaca-se sobretudo pelo carácter reformador e inovador da sua ação legislativa, figurando até hoje como um dos mais proeminentes estadistas da Antiguidade Clássica. A ele se deve um conjunto de leis e de reformas constitucionais em prol da justiça distributiva e da paz social, que abriram o caminho para a democracia em Atenas. Na viragem do séc. VII para o século VI a.C., a região da ática era palco de uma intensa crise agrária, que opunha os ricos proprietários das terras aos pobres camponeses que as cultivavam. Estes viam-se muitas vezes reduzidos à condição de escravos por não conseguirem pagar as suas dívidas aos aristocratas. Sólon terá agido como mediador neste conflito, promulgando um pacote de leis que conduziram à abolição das dívidas dos pequenos proprietários rurais, à proibição de empréstimos sob garantia pessoal e à libertação de quantos haviam caído na servidão devido a crédito malparado. Uma das reformas mais importantes deste legislador consistiu na organização dos cidadãos em quatro classes, com base no cálculo dos seus rendimentos. Esta medida teve a extraordinária virtude de alargar o acesso dos cidadãos aos vários órgãos de gestão da pólis ou cidade-estado. Doravante, o critério para aceder ao poder dependia do rendimento de cada indivíduo e da classe social onde se integra e já não, como até aqui, do seu nascimento. Os mais altos cargos ficavam assim ao alcance de pessoas que não pertenciam à aristocracia. Ao mesmo tempo, a tradição aponta Sólon como autor de algumas reformas constitucionais que mudaram para melhor a forma de organização e de participação política da sociedade ateniense. Órgãos que se tornariam estruturantes e estratégicos na futura democracia ateniense, como a famosa Boule (Conselho) e o tribunal popular da Heliaia tiveram a sua origem sob o arcontado de Sólon. O legislador tornou ainda acessível a Assembleia popular (Ekklesia) aos thetes, a classe trabalhadora e com poucos rendimentos. A sua ação reformista e igualitária foi consolidada pelos estadistas que lhe sucederam em Atenas ao longo do séc. VI a.C. Tanto o tirano Pisístrato, como o pai da democracia ateniense, Clístenes, se empenharam na defesa dos direitos e dos rendimentos dos mais desfavorecidos contra os desmandos e a ganância dos eupátridas e na maturação da consciência cívica da cidadania.
A ideia de igualdade política (isonomia) terá surgido em Atenas por volta de 508 a.C. e resultou da propaganda democrática de Clístenes junto dos populares, de quem pretendia colher apoio para derrubar o seu rival político, Iságoras, propenso à manutenção de uma tirania sob a influência de Esparta. Com Clístenes expulso da cidade, é o povo (demos) revoltoso que luta contra a dissolução da Boule criada nos tempos de Sólon para instaurar um novo governo assente na vontade popular, a democracia, e assim evitar a manutenção de um regime controlado pela oligarquia espartana. Para liderar esta mudança política e social, a massa popular escolhe Clístenes, que regressa do exílio. Clístenes implementará um conjunto de medidas fundadoras do regime democrático e promotoras do nivelamento social. Promoveu, entre outras, uma cultura de inclusão e igualdade entre cidadãos, ao criar tribos mistas, constituídas pela mistura de ricos e pobres, camponeses e aristocratas, oriundos das três regiões de Atenas, e concede o direito de cidadania a não Atenienses, incluindo, muito provavelmente, estrangeiros e escravos habitantes da Ática. A partir daqui, a democracia e aquilo a que hoje chamamos direitos humanos (que estão indissociavelmente ligados ao governo democrático) vão sofrer um significativo processo de maturação e consolidação ao longo de todo o séc. V a.C., o chamado século do “milagre grego”. Neste período, sob a liderança de Péricles, Atenas destacou-se como a grande pólis democrática. A democracia grega, nomeadamente a ateniense, que é a de que possuímos mais informação, tinha na busca da igualdade o seu traço mais distintivo. Se a pólis era uma célula política que concedia direitos a todos os cidadãos e deles exigia deveres, a participação direta do povo como um todo (democracia) ou como parte de um todo (oligarquia) no governo da pólis, através dos votos, era o garante da liberdade e da igualdade que os gregos tanto estimavam. Para o grego, ser livre era exercer pessoalmente os seus direitos civis, sem os delegar em outros. A liberdade tinha como condição a aceitação absoluta da lei. A pólis regia-se pela lei e dava-lhe primazia, quer ela decorresse de um princípio natural ou religioso intuído pela razão quer resultasse de um processo de reflexão e discussão pública, não dependente da esfera do sagrado, da natureza ou da decisão arbitrária de uma pessoa considerada hierárquica ou socialmente superior. À lei escrita e prescrita em acordo social deu-se o nome de nomos. Esta possibilitou o acesso de todos os que tinham estatuto de cidadania (politai) de forma igual ao conjunto das normas regulamentares da pólis e da constituição (politeia), e permitiu manter uma postura crítica e reformadora dos atenienses relativamente ao corpus legislativo, na medida em que havia interesse em melhorá-lo e adaptá-lo às circunstâncias. A lei passou a ser igual e conhecida de todos os cidadãos, que por ela modelavam o seu comportamento. E é à igualdade perante a lei que se deu o nome de isonomia. Ao mesmo tempo, a igualdade perante a lei potenciou a chamada isegoria, que decorre de uma democratização da palavra, do uso livre da expressão no tribunal e nas assembleias. Já o acesso alargado dos cidadãos aos vários órgãos de gestão da pólis ficou consignado sob o princípio da isocracia. Em suma, a democracia resultou num regime que procurava dar aos cidadãos as mesmas possibilidades, sem olhar à categoria social, aos meios de fortuna ou à cultura.
Atenas orgulhava-se tanto do seu modelo democrático, da justiça e da igualdade que este proporcionava, que Péricles, no famoso discurso fúnebre relatado por Tucídides, na História da Guerra do Peloponeso (1.34-46), não hesita em considerá-lo a base do crescimento e da grandeza do império ateniense e da sua superioridade relativamente aos rivais espartanos. Estes, embora partilhassem a mesma divisão tripartida das instituições políticas de Atenas e das restantes póleis (Assembleia, Conselho, Magistratura), eram governados por um regime oligárquico de base aristocrática e plutocrática, portanto, muito mais restritivo, fechado e limitador da liberdade dos cidadãos. Péricles enaltece a democracia ateniense e identifica os seus princípios basilares: uma forma de governo que cuida dos interesses não de um pequeno grupo mas da maioria; iguala todos os cidadãos perante a lei; elege com base na meritocracia e não por posição de classe; reconhece o valor de todos, independentemente da sua condição social ou financeira; promove a tolerância, a pluralidade e a liberdade de expressão; ensina o respeito absoluto e incondicional pelas leis, “sobretudo as que foram promulgadas para ajudar aqueles que são vítimas de injustiça e também as que, embora não sendo escritas, trazem desonra que é por todos reconhecida” (1.37). Para além disso, Atenas, ao contrário de Esparta, subentende-se nas palavras de Péricles, proporciona aos seus cidadãos momentos de lazer, diversão e cultura que lhes permite repousar dos trabalhos pesados do dia a dia. Por fim, é uma cidade acolhedora e de fronteiras abertas, que estabelece trocas comerciais e vínculos sociais com outros povos.
Os princípios do governo pela lei e da liberdade individual, aqui propalados em tons idealistas e talvez exagerados por Péricles, inspiram a formação cívica e ideológica dos Estados de direito modernos. Estes vão construir democracias liberais muito mais inclusivas e igualitárias do que as dos antigos gregos. Basta lembrar que a democracia ateniense excluía as mulheres, os estrangeiros (chamados metecos) e os escravos do acesso ao poder, à lei e à palavra e que estes grupos sociais formavam um conjunto demográfico muito superior à totalidade dos cidadãos. Por outro lado, há uma dimensão fundamental dos direitos humanos, a ideia de pessoa, de propriedade privada e de dignidade pessoal que só com o direito romano surgirá na europa.
Embora se não encontre na língua grega um termo que corresponda com exatidão ao latino dignitas, talvez o que lhe esteja mais próximo seja time “honra” (cf. influência da articulação da schole “ócio” com a time grega no otium cum dignitate latino). Provavelmente relacionada do ponto de vista etimológico com decus “ornamento, glória, honra, virtude” (cf. to prepton grego = decorum latino), a dignitas romana pressupunha merecimento (cf. conceção estoica de justiça) e aprovação externa, podia basear-se num cargo ou num estatuto particular que conferisse respeito, posição e prestígio, pautava-se pela longa duração, por servir de termo de comparação e por ser passível de ser herdada pelos descendentes (GRIFFIN, 2017, 48-50). Ainda se podia revelar na integridade e indiferença para com o lucro (LEWIS, 2007, 93), implicava a obrigação de cumprir os seus deveres e seguir a lei moral e de se abster de prazeres como a luxúria, o excesso de indulgência, e de outros que aproximassem o homem dos animais (CÍCERO, Dos deveres 1.105-106; GILTAIJ, 2016, 233), podia traduzir-se em lealdade ao estado, em liberdade de expressão e, com base na auctoritas, granjear o apoio e a aprovação dos melhores (GRIFFIN, 2017, 52). A dignitas andava ligada à innocentia “integridade”, honestas “bem moral” e ao honor, enquanto reconhecimento público do mérito, e podia, mediante um conjunto de circunstâncias e comportamentos, ser perdida. Estamos, por conseguinte, distantes da ideia moderna de que a dignidade é um direito, independente do merecimento, distintivo da condição humana e inalienável.
Em todo o caso, na vasta reflexão de Cícero e de Séneca sobre a ética estoica, encontramos, sobretudo em Dos deveres (De officiis) e em As últimas fronteiras do bem e do mal (De finibus bonorum et malorum) do primeiro e nas Cartas a Lucílio do segundo, alguns passos que se afiguram importantes para veicular a visão estoica da humanidade; que realçam a superioridade do ser humano relativamente aos outros animais; que consideram os deveres decorrentes do decorum, isto é, da temperança, e discutem, no âmbito da justiça, a liberalidade. Em Dos deveres 1.105-121, discutem-se as quatro personae “papéis” que a pessoa desempenha e realça-se a importância de a segunda, que diz respeito ao temperamento e talentos de cada um, não colidir com a primeira, relativa ao uso distintivo por parte do ser humano da razão que a natureza lhe concede e o distingue dos animais. É, por conseguinte, neste contexto que se compreende a recomendação senequiana de cada pessoa sequi naturam, “seguir a natureza”, a partilha da razão entre homens e deuses, o cosmopolitismo estoico, que faz dos detentores de razão membros de uma mesma ciuitas (Cícero, Tratado das leis 1.22) e, “por assim dizer, de uma única cidade” (quasi unius urbis, Tratado das Leis 1.61; As últimas fronteiras 3.64), independentemente da virtude ou ausência desta em cada um (GRIFFIN, 2017, 57).
Depois de veementemente condenar, em Dos deveres 3.21 – como algo mais contrário à natureza do que a própria morte, a pobreza, o sofrimento, os males do corpo e os rombos nas posses – o comportamento da pessoa que procura, com o prejuízo de outra, aumentar o seu próprio lucro, não deixa Cícero de concluir, em 3.27, que, se um homem se preocupa com as aspirações de outro, independentemente do seu teor e em razão de se tratar de um ser humano, então o que, segundo a natureza, é benéfico para todos deve ser património comum.
Embora ambos os passos ponham a tónica no destinatário, a verdade é que o pensamento incide em algo que não é moralmente bom nem mau, isto é, num indiferente preferível que são os bens materiais; que Cícero entende que o principal dever do homem é ensinar a moralidade ao ser humano (As últimas fronteiras 3.65; Tratados das Leis 1.33); e que os estoicos consideravam que a Providência tinha disposto as coisas de forma correta, pelo que, embora defendessem que ninguém era escravo por natureza (Fragmentos dos estoicos antigos 3.352), acabavam por aceitar o que a fortuna reservava a cada um (Cícero, Dos deveres 1.41). Quer isto dizer que tudo permanecia no plano teórico, quando atualmente se defende uma militância ativa e transformadora no que a estas causas diz respeito.
Para compensar as debilidades físicas do homem relativamente aos animais, desenvolveu o primeiro um sentido gregário superior aos segundos, baseado sobretudo no conceito de oikeiosis ‘apropriação’, segundo o qual, o homem vai progressivamente tratando como seus a sua própria pessoa, as que lhe são mais próximas e as mais distantes (As últimas fronteiras 3.63; cf. homo sum, humani nil a me alienum puto, “sou homem e nada do que é humano tenho por alheio”, Terêncio, O homem que se puniu a si mesmo 77), mas, neste processo de expansão da proximidade, não chega Cícero a referir a humanidade enquanto todo.
Quanto aos critérios para praticar a liberalidade no âmbito da uniuersi generis humani societas, “comunidade de toda a raça humana” (Dos deveres 1.50), entende Cícero que, considerado um conjunto de pressupostos, como o caráter da pessoa, a atitude da pessoa para com o potencial benfeitor e os serviços prestados pela primeira ao segundo bem como os laços de amizade, e feita uma avaliação positiva, se deve ajudar a mais pobre, desde que tal não prejudique o benfeitor, pois os recursos são limitados. Menos preocupado com pressupostos e merecimentos, sustenta Séneca, em Cartas a Lucílio 95.51-2, que tudo quanto se contempla abrange o humano e o divino, todos fazemos parte de um único corpo, a natureza nos criou a partir da mesma fonte, aparentados, sociáveis, ligados pelo afeto e para o mesmo fim, determinou que era mais grave e penalizador cometer do que sofrer uma ofensa e ordenou que as nossas mãos estivessem sempre prontas para ajudar os necessitados.
É precisamente com base nas confluências da moral tradicional romana (mos maiorum) com o Estoicismo que se deve compreender alguns princípios do direito romano e a formação dos agentes judiciais que se revela decisiva não só na atividade legislativa como na adaptação das escassas leis e nos acrescentos com vista a dirimir novos e concretos casos.
Como muitos outros povos, os Romanos começaram por se reger pelo costume, isto é, pelo direito consuetudinário, que reflete a transmissão de geração em geração dos usos dos antepassados e do mos maiorum. A primeira legislação romana a que temos referência são as leges regiae, “leis régias”, que remontam ao tempo dos reis, isto é, ao período entre a fundação da cidade (embora de data discutível, Varrão situou-a em 753 a.C.) e o início da República (509 a.C.). Eram, contudo, de autenticidade parcialmente duvidosa e de teor mais religioso do que propriamente jurídico.
Embora o pontífice máximo ocupasse o quinto lugar na hierarquia religiosa romana (em primeiro estava o rex sacrorum, “rei para as coisas sagradas”), dele diz Festo 200L: iudex atque arbiter habetur rerum divinarum humanarumque, “é considerado o juiz e o árbitro das coisas divinas e humanas” e, por conseguinte, dominava a jurisprudência, isto é, a ciência do Direito.
Geralmente situa-se no âmbito do conflito entre patrícios e plebeus e, ao cabo, das reivindicações por parte dos segundos de igual acesso às leis, a criação da Lei das XII Tábuas, que redigida por dois colégios de decênviros em 451 e 450, foram completadas por dois cônsules em 449 e acabaram afixadas em placas de bronze no foro.
A Lei das XII Tábuas ecoa costumes arcaicos e conceções jurídicas do direito gentilício, que ora nos parecem primitivas ora reflexos das melhores peculiaridades da identidade romana. Entre as que nos causam a segunda impressão encontra-se a legis actio sacramento, “ação legítima por juramento sagrado” (trad. SEGURADO E CAMPOS, 2004, 326; adaptação ao AO 1990 é minha), nomeadamente no âmbito da alforria de escravos (Tábua 2.1). Para a enquadrarmos na tradição romana, talvez valha a pena recordar o que nos dizem dois escritores contemporâneos do séc. I a.C. e do I d.C., Tito Lívio, em Desde a Fundação da Cidade 1.8, e Dioniso de Halicarnasso, em Antiguidades Romanas 2.15, sobre o asylum supostamente dado por Rómulo, fundador e primeiro rei de Roma, na colina do Capitólio, a fugitivos de outras comunidades. Sem grande fundamentação histórica, informam ambos os autores que, para aumentar o número de homens e melhor defender Roma, deu Rómulo acolhimento a fugitivos de outras cidades, mas Lívio inclui escravos entre eles, ao passo que Dionísio, muito mais elitista, fala apenas de homens livres e, em particular, de dissidentes políticos de regimes tirânicos e oligárquicos. A propósito deste episódio algo lendário, escreve Dench (2005, 4): “The asylum can be invoked as a foundation myth of the social mobility and ethnic mixture of Rome, a cause alternatively of her success or ruin”. Mas na legis actio sacramento, cada litigante prestava juramento, invocando os deuses como testemunhas, e depositava uma caução de quinhentos asses, se o valor em disputa fosse igual ou superior a mil asses, ou depositava cinquenta asses, se se disputassem menos de mil asses. O vencido via a sua caução reverter para o erário público, ao passo que o vencedor recuperava a sua caução. Quando se tratava da alforria de um escravo, a caução era sempre de cinquenta asses para não onerar o que declarava, perante o juiz, que a pessoa era livre. Em contraste com Atenas, onde o escravo alforriado passava à condição de liberto num enquadramento cívico-legal muito semelhante ao do meteco (estrangeiro), em Roma o liberto tornava-se cidadão (cf. ciuis Romani liberti, “de um cidadão romano liberto”, Tábua 5.8). Uma das particularidades e um dos fatores do sucesso dos Romanos residiam precisamente nessa capacidade de integração do escravo e do estrangeiro na sociedade.
Embora a Lei das XII Tábuas nos tenha chegado num estado fragmentário, um dos aspetos que dela se pode depreender é a escassez de leis, o que acabava por dar margem ao pretor para adaptar e alterar a referida legislação e lhe acrescentar reflexão relevante para cada caso. De 367 a.C. são as leis Licínio-Sêxtias, a criação da figura do pretor urbano (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 42) e a atribuição de iurisdictio ao pretor urbano e aos edis curuis (TELLEGEN-COUPERUS, 1993, 151). A iurisdictio era o poder de pretores, de edis curuis e de questores de administrar a justiça respetivamente nas causas cíveis, na administração da cidade e nas causas criminais (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 59). Quer isto dizer que a boa administração da justiça romana estava profundamente dependente da sólida formação moral, baseada no mos maiorum, dos agentes judiciais.
Inicialmente, teria Roma estabelecido tratados “internacionais” com outros povos igualmente poderosos (cf., e.g., tratados comerciais com Cartago). Com a progressiva hegemonia romana, as leis romanas foram sendo aplicadas a outros direitos e, com o costume decorrente das trocas comerciais, foi-se esse corpus jurídico enriquecendo de modo a formar o ius gentium, a que, de acordo com Gaio, Digesto 1.1.9, preside a razão natural e que é observado por todos os povos ou gentes. Em 242 é criada a figura do pretor peregrino, que tinha a função de administrar a justiça entre Romanos e estrangeiros e entre estrangeiros sob jurisdição romana (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 42). Trata-se, sem sombra de dúvida, de um marco importante do universalismo do Direito Romano, que se baseia na bona fides, “boa fé”, “fidelidade à palavra dada”, na aequitas ‘imparcialidade, equidade’ e na vontade das partes (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 42). Quanto à naturalis ratio, preside, e.g., ao conubium ‘casamento’ entre homem e mulher e ao dominium, isto é, ao direito de propriedade sobre uma coisa (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 45). Importa, no entanto, salvaguardar que Roma não impôs a totalidade do seu direito a outros povos, que se continuaram a reger pelos seus próprios direitos civis.
Tellegen-Couperus (1993, 151) admite a possibilidade de o processo formulário ter sido introduzido em 242 a.C., e Pulido Adragão et al. (2023, 29) informam que a lei Ebúcia das fórmulas, de 130 a.C., legalizou o processo formulário, que, em contraste com o velho processo das ações legais (legis actiones), pautado por atos rígidos e orais, se baseava na fórmula escrita pelo pretor, que nomeava um juiz, estabelecia os pressupostos legais que assistiam a cada uma das partes e conferia autoridade ao juiz para os considerar e decidir da condenação ou absolvição do réu (JOHNSTON, 2022, 194). Embora a promulgação de éditos (disposições, proclamações ou anúncios) estivesse ao alcance de qualquer magistrado e o programa edital fosse escrito em carateres negros e vermelhos em tábuas de madeira (album) colocadas no foro, a verdade é que só a Lex Cornelia de 67 a.C. determina a obrigação dos pretores de observarem o édito. Em 130 d.C., Adriano confiou a Sálvio Juliano a compilação, a partir dos éditos pretorianos, do édito perpétuo. A época clássica do Direito Romano, de acordo com Sebastião Cruz e Santos Justo, decorre entre 130 a.C. e 230 d.C. (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 28 e 31); a época pós-clássica, de 230 a 530; e a época justinianeia, de 530 a 565 d.C.
Já vimos que o Direito Romano é um Direito Natural, porquanto resulta da divina providência e reflete a reta razão, que está presente em todo o ser humano, é imutável no tempo e no espaço, leva ao cumprimento do dever e desvia o homem do engano (cf. CÍCERO, Tratado da República 3.3; SANTOS JUSTO, 1999, 281). Trata-se de um Direito que se não reduz a normas, regras ou preceitos, mas se transcende na procura de novas soluções justas (SANTOS JUSTO, 1999, 281). Articula o velho ius ciuile, i.e., “o Direito próprio da cidade romana”, que “tem como fontes o costume, as leis, os plebiscitos, os senatusconsultos, as constituições imperiais e a jurisprudência” (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 41), com o ius honorarium, i.e., “todo o ius não civil, constituído pelas normas criadas pelos magistrados com poder para tal (os pretores, os edis-curuis e os governadores de províncias)” (PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 43) e parcialmente coincidente com o ius praetorium. O Direito Privado Romano baseava-se em vínculos sociais, morais, pré e parajurídicos, como a fides ‘respeito pela palavra dada’, officium ‘dever’, humanitas ‘dever moral de respeitar a valorizar a pessoa humana, civilidade’ (cf. a progressiva valorização da mulher no Direito Romano), amicitia ‘amizade’ (cf. figura do fiador segundo o Direito das Obrigações; PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 34). A fides e a dignitas ainda obrigavam o magistrado a observar o édito que promulgara. Dada a sua natureza eminentemente doutrinal ou jurisprudencial, o Direito Romano comporta, como já referimos, poucas leis, o que o coloca ao abrigo da efemeridade das modas e dá aos responsa dos jurisconsultos, mercê de refletirem um profundo conhecimento das realidades humanas e divinas e do justo e do injusto, uma grande atualidade (SANTOS JUSTO, 1999, 282-282).
Por se tratar de um Direito Natural, o Direito Romano tem uma vocação universalista que se traduz no ius gentium, que está na génese do Direito Internacional e presidia, por exemplo, às relações comerciais de Roma com outros povos. Dada a escassez de leis e a importância dos magistrados na aplicação dessas leis, já se realçou o valor de uma sólida formação moral e da idoneidade desses magistrados, extensível, de resto, a outros juristas, como Capitão, Sabino, Cássio, Javoleno, Sálvio, Juliano, Labeão, Próculo, Celso, Nerácio, Papiniano, Gaio, Paulo, Ulpiano e outros. A competência e a boa formação destes juristas revelam-se, desde logo, na concisão e na objetividade (Qui tacet, non utique fatetur: sed tamen uerum est, eum non negare. “O que cala, forçosamente não confessa; mas, contudo, é certo que não nega”, Paulo, D. 50.17.142); no considerar mais grave a condenação de um inocente do que a absolvição de um criminoso (cf. Ulpiano, D. 48.19.5pr.: Sed nec de suspicionibus debere aliquem damnari diuus Traianus Adsidio Seuero rescripsit: satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem damnari. “Mas nem com base em suspeitas se deve condenar alguém – o deificado Trajano o escreveu num rescrito a Adsídio Severo: mais vale, com efeito, deixar impune o crime de um culpado do que condenar um inocente”; princípio romanístico in dubio pro reo); no facto de terem sempre considerado o ius ao serviço da vida e não o contrário (hominum causa omne ius constitutum, “todo o direito criado em função dos homens”, Hermogeniano, D. 1.5.2; SANTOS JUSTO, 1999, 282). Significará este princípio uma valorização da dignidade humana, conforme hoje a conhecemos?
Já vimos que o termo dignitas não tinha em latim o valor inerente e inalienável que atribuímos atualmente à expressão “dignidade do homem”. Em alternativa a dignitas, propôs Giltaij o termo existimatio, que os dicionários registam como ‘opinião, juízo, estima, consideração, reputação, honra (granjeada junto de outrem), prestígio’ e se opõe a infamia ‘má reputação, má fama, descrédito, desonra, infâmia, opróbrio, vergonha, desonra’. O investigador está concretamente a pensar no seguinte passo de Calístrato, um jurista que escreve por volta de 197 d.C. sobre a cognitio, isto é, um procedimento civil tardio totalmente conduzido por um oficial (JOHNSTON, 2022, 193; D. 50.13.5.2-3): 2. Minuitur existimatio, quotiens manente libertate circa statum dignitatis poena plectimur: sicuti cum relegatur quis uel cum ordine mouetur uel cum prohibetur honoribus publicis fungi uel cum plebeius fustibus caeditur uel in opus publicum datur uel cum in eam causam quis incidit, quae edicto perpetuo infamiae caesa enumeratur. 3. Consumitur uero, quotiens magna capitis minutio interuenit, is est cum libertas adimitur: ueluti cum aqua et igni interdicitur, quae in persona deportatorum euenit, uel cum plebeius in opus metalli uel in metallum datur: nihil enim refert, nec diuersa poena esto peris et metalli, nisi quod refugae operis non morte, sed poena metalli subiciuntur. “2. O estatuto diminui todas as vezes que, a despeito de a liberdade permanecer, somos castigados com uma pena que afeta a nossa posição, tal como quando alguém é relegado ou excluído da ordem ou proibido de exercer cargos públicos ou um plebeu é açoitado com varas ou entregue a trabalho público ou quando alguém cai na situação que no édito perpétuo se conta como motivo de infâmia. 3. Suprime-se até todas as vezes que uma magna capitis deminutio ocorre, isto é, quando a liberdade se suprime, como quando se interdiz a água e o fogo, o que se verifica na pessoa dos deportados, ou quando um plebeu é entregue ao trabalho da mina ou à mina; nada, com efeito, importa, nem diversa é a pena do trabalho ou da mina, senão que os fugitivos do trabalho público não são sujeitos à morte, mas ao castigo da mina”.
Importa, desde já, notar que a condenação de um plebeu ao trabalho nas minas significa a escravização do condenado (LEWIS, 2015, 153). O passo citado é muito importante, porquanto nele, aos olhos de investigadores como Max Kaser e Giltaij (GILTAIJ, 2016, 238-239), o termo existimatio se não limita aos valores de ‘honra civil’ e ‘reputação’ nem à condição de a pessoa se não encontrar legalmente atingida por infamia, mas, ao estar tão intimamente dependente da libertas, da não aplicação de castigos moral, reputacional e fisicamente degradantes, parece implicar a integridade de vida, de corpo e a própria reputação, dado que a punição parece suscetível de afetar a existimatio de plebeus e eventualmente de escravos (cf. D. 49.19.28.4).
Embora os escravos se encontrassem privados do status libertatis, “estatuto/condição da liberdade”, esta, devidamente articulada com a auctoritas, é, para o Direito Romano, uma res inaestimabilis (“valor inestimável”; cf. SANTOS JUSTO, 1999, 282), que se estriba nos seguintes iuris praecepta, “preceitos do direito”: honeste uiuere, “viver honestamente”, alterum non laedere, “não lesar o outro”, suum cuique tribuere, “dar a cada um o que é seu”, segundo o seu mérito. Embora o paterfamilias, na Lei das XII Tábuas, tivesse um controlo absoluto sobre a propriedade, a verdade é que, em virtude de, no Direito Romano, a actio ter primazia relativamente ao ius e de o Direito não ser para os Romanos tanto um conceito, mas mais uma arte ou prática, fazia sentido perguntar o que pertencia a cada um na escala das relações humanas, ao comprador e ao vendedor, ao paterfamilias e a quem estava sob o seu domínio (manus), ao senhorio e ao arrendatário e, mediante o seu trabalho, ao escravo (Javier Hervada ap. PULIDO ADRAGÃO et al., 2023, 17 e 25-26).
Mesmo perante casamentos, geração de filhos, constituição de sociedades, contratação de créditos, contração de dívidas, hipotecas e resgates de bens, heranças, casamentos de filhos, divórcios, netos/filhos naturais e adotivos, roubos e restituições por via judicial de bens, o Direito Privado Romano revela uma capacidade de rastrear com tal precisão o que pertence a cada um que, ao definir cada um com base naquilo que tem, contribui de forma decisiva para a invenção da pessoa humana individual que, por sua vez, dotada de vida interior e de um destino único e desempenhando vários papéis na vida (cf. a discussão de Cícero da teoria das quatro personae em Dos deveres 1.105-121), está na base do humanismo ocidental (NEMO, 2005, 40-42).
Bibliografia
Impressa
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Autores: Martinho Soares
Paulo Sérgio Ferreira