Apátrida [Dicionário Global]
Apátrida [Dicionário Global]
“Apátrida” é a designação dada às pessoas que não têm a nacionalidade de nenhum Estado, entendida esta como o estatuto jurídico que liga uma pessoa a uma dada comunidade política estatal e de que decorrem direitos e deveres específicos. Apesar de a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 fixar, como “ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”, que todas as pessoas têm direito a ter uma nacionalidade (art. 15.º, n.º 1), o número de pessoas apátridas em todo o mundo continua a ser muito elevado, com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados a calcular que esse número seja hoje superior a 10 milhões. Há pessoas que nascem apátridas e pessoas que se tornam apátridas em momento posterior das suas vidas. Ainda que muitos apátridas sejam pessoas migrantes, a maioria nasce e reside toda a vida no território de um Estado que não lhe reconhece a qualidade de nacional.
A apatridia – condição daquele que é apátrida – resulta tipicamente do funcionamento das leis da nacionalidade dos diferentes Estados, uma vez que é a estes que cabe definir quem são os seus nacionais, nos termos do seu Direito interno. Não raro, as leis de nacionalidade estatais usam critérios discriminatórios (raça, etnia, religião, língua, género) para negar a atribuição da nacionalidade à nascença ou para privar as pessoas de nacionalidade atribuída ou adquirida em momento posterior. A maioria das populações apátridas corresponde a grupos minoritários, como os ciganos em vários Estados da Europa Central e de Leste, os falantes de urdu no Bangladesh, as pessoas de ascendência núbia no Quénia, etc. Em mais de duas dezenas de Estados, as mulheres continuam a ver-se impedidas de transmitir a sua nacionalidade aos seus filhos, que nascerão apátridas se o pai for apátrida ou desconhecido, por exemplo. Em contextos migratórios, a apatridia dos filhos de imigrantes pode resultar de conflitos negativos entre leis de nacionalidade, como será o caso quando a lei do Estado de residência não atribuir a nacionalidade com base no local de nascimento (ius soli) e a(s) lei(s) do(s) Estado(s) de origem dos progenitores não atribuir(em) a nacionalidade com base na ascendência (ius sanguinis) às crianças nascidas no estrangeiro. Para além disso, algumas leis estatais determinam a perda da nacionalidade com fundamento em residência prolongada no estrangeiro. A sucessão de Estados e a redefinição de fronteiras entre Estados também estão na origem de muitos casos de apatridia, seja devido à exclusão de alguns grupos pela lei de nacionalidade do novo Estado ou por dificuldades na prova da ligação ao território.
É comum falar-se em apatridia de facto para designar as situações em que o texto da lei da nacionalidade não exclui, mas as condições em que a lei é aplicada resultam em exclusão. Uma dessas situações é a de falta de documentos que atestem o preenchimento dos requisitos previstos na lei para a atribuição da nacionalidade, devido a sistemas de registo de nascimento e de registo civil deficitários. Também podem ocorrer erros na interpretação e na aplicação das leis de nacionalidade por parte das autoridades estatais, mesmo sem intenção discriminatória, que resultem na recusa do Estado em reconhecer como seus nacionais pessoas que, nos termos da lei (se corretamente interpretada), têm direito à nacionalidade. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando, na década de 1990, as autoridades portuguesas afirmaram (erradamente) que as pessoas nascidas em Timor-Leste durante a ocupação indonésia não tinham direito à nacionalidade portuguesa, o que os tribunais australianos interpretaram como significando que a nacionalidade portuguesa dos requerentes de asilo timorenses não era efetiva. Pode também falar-se em apatridia de facto nos casos em que os nacionais de um Estado sejam perseguidos pelas autoridades desse Estado e tenham de pedir asilo noutro Estado.
Seja de facto ou de direito, a apatridia é um problema muito grave na vida das pessoas. Está na origem de situações de extrema vulnerabilidade, por implicar a falta de documentos de identificação, o permanente risco de expulsão e a impossibilidade de acesso a direitos humanos básicos, como a saúde e o ensino, por exemplo. Ser apátrida significa não pertencer a lugar nenhum. Se a nacionalidade é – nas palavras célebres de Hannah Arendt – o direito a ter direitos, incluindo o direito a ser protegido por um Estado, a ausência de uma nacionalidade significa o seu contrário, uma condição de total desproteção.
Compreende-se, por isso, que a comunidade internacional venha a envidar esforços no sentido de, por um lado, eliminar as situações de apatridia e, por outro, obrigar os Estados a conceder, pelo menos, um mínimo de proteção às pessoas apátridas que se encontrem sob sua jurisdição. Está, por exemplo, em curso uma campanha – #IBelong – para erradicar a apatridia até 2024, lançada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, com um Plano de Ação Global (Global Action Plan to End Statelessness: 2014-2024) que define dez medidas a serem postas em prática pelos Estados com o apoio do Alto Comissariado, de organizações da sociedade civil e de outros grupos de interesse. As medidas consistem em (1) resolver as principais situações de apatridia atualmente existentes; (2) assegurar que nenhuma criança nasce apátrida; (3) eliminar a discriminação de género das leis da nacionalidade estatais; (4) evitar a recusa, perda ou privação da nacionalidade com fundamento em critérios discriminatórios; (5) evitar a apatridia em caso de sucessão de Estados; (6) conceder proteção a migrantes apátridas e facilitar a sua naturalização; (7) assegurar o registo de nascimento para prevenir a apatridia; (8) emitir documentos de identificação como nacionais àqueles que a isso tenham direito; (9) ratificar as convenções da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre apatridia; e (10) melhorar a disponibilização de dados quantitativos e qualitativos sobre as populações apátridas.
Esforços internacionais no sentido de eliminar a apatridia e/ou proteger as pessoas apátridas já vêm a ser feitos há quase um século, ainda que, como vimos, com resultados muito aquém do desejado. A Convenção de Haia sobre Questões Relacionadas com o Conflito de Leis de Nacionalidade, de 1930, foi o primeiro tratado internacional a fixar regras gerais sobre a prevenção e redução da apatridia, prevendo, nomeadamente, que a perda da nacionalidade por força de casamento com estrangeiro só pode admitir-se sob condição de a mulher adquirir a nacionalidade do marido (art. 8.º) e que as crianças abandonadas devem ter a nacionalidade do Estado onde tenham nascido (art. 14.º). Um dos protocolos adicionais à Convenção – o Protocolo Relativo a um Certo Tipo de Apatridia, também designado Protocolo sobre Apatridia – instituiu, para além disso, uma cláusula de salvaguarda para as crianças nascidas de pai apátrida ou de nacionalidade desconhecida no território de Estado cuja lei da nacionalidade não atribua a nacionalidade em função do nascimento no respetivo território, caso em que, se a mãe da criança for nacional do Estado de nascimento, a criança deve receber a nacionalidade desse Estado.
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, contemplou explicitamente a situação dos apátridas na definição do termo refugiado (art. 1.º, A, n.º 2) e ao prever os casos em que a Convenção deixa de ser aplicável (art. 1.º, C, n.º 6), para além de ter imposto aos Estados contratantes que estes facilitem, em toda a medida do possível, a naturalização dos refugiados, esforçando-se em especial por apressar o processo de naturalização e por diminuir as taxas e encargos desse processo (art. 34.º). Atenta a circunstância de existirem muitos apátridas que não eram abrangidos pela Convenção de 1951 por não serem refugiados, a ONU promoveu, nos dez anos que se seguiram, a adoção de dois acordos internacionais de fundamental importância nesta matéria, primeiro, para “regular e melhorar o estatuto dos apátridas” e, depois, para combater a apatridia enquanto tal.
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Apátridas, de 1954, definiu apátrida como “a pessoa que nenhum Estado considera como seu nacional por efeito da lei” (art. 1.º, n.º 1), mas excluiu do seu campo de aplicação as pessoas que já beneficiem de proteção internacional a outro título e aquelas em relação às quais existam motivos sérios para crer que praticaram crimes ou atos do tipo dos que impedem a aquisição do estatuto de refugiado (art. 1.º, n.º 2). Diversamente do que é habitual nos tratados internacionais de direitos humanos – que, em primeira linha, definem obrigações para os Estados –, esta Convenção começa por impor obrigações aos indivíduos, estatuindo, no art. 2.º, sob a epígrafe “obrigações gerais”, que todo o apátrida tem obrigações para com o país onde se encontra e nomeadamente a obrigação de respeitar as suas leis e os seus regulamentos, bem como as medidas adotadas com vista à manutenção da ordem pública. Em matéria de obrigações estatais, a Convenção consagra um princípio geral de não discriminação, impondo aos Estados que apliquem as suas disposições sem discriminação em razão da raça, da religião ou do país de origem (art. 3.º), a que se somam o dever de conceder aos apátridas tratamento idêntico ao que é concedido aos estrangeiros em geral (art. 7.º, n.º 1) e, para direitos específicos, o dever de conceder aos apátridas habitualmente residentes no respetivo território tratamento não menos favorável do que o concedido aos seus nacionais – e.g., liberdade de praticar a religião e de escolher a educação religiosa dos filhos (art. 4.º), propriedade intelectual e industrial (art. 14.º), acesso aos tribunais (art. 16.º, n.º 2), acesso ao ensino básico (art. 22.º, n.º 1) – ou aos estrangeiros nas mesmas circunstâncias – e.g., direito de associação (art. 15.º), exercício de atividade assalariada (art. 17.º, n.º 1), trabalho por conta própria (art. 18.º) e exercício de profissão liberal (art. 19.º). Os Estados estão ainda obrigados a emitir documentos de identidade e de viagem aos apátridas que se encontrem ou que residam legalmente no seu território (arts. 27.º e 28.º) e, à semelhança do previsto na Convenção de 1951, a facilitar, o mais possível, a naturalização dos apátridas, esforçando-se, em especial, por acelerar o processo de naturalização e reduzir as taxas e os encargos desse processo (art. 32.º).
A Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, de 1961, impôs aos Estados o dever de concederem a sua nacionalidade aos indivíduos nascidos no seu território que, de outro modo, sejam apátridas, ainda que com alguma margem de decisão quanto aos termos dessa concessão, incluindo a possibilidade de os Estados fixarem requisitos, como, por exemplo, a residência habitual do interessado durante um certo período de tempo ou a ausência de condenações penais (art. 1.º, n.os 1 e 2). Ecoando o Protocolo Especial sobre Apatridia de 1930, a Convenção estabeleceu que “uma criança legítima nascida no território de um Estado Contratante, cuja mãe possua a nacionalidade desse Estado, deverá adquirir essa mesma nacionalidade por nascimento, caso, de outro modo, ficasse apátrida” (art. 1.º, n.º 3), sem prejuízo, no entanto, de dever preencher os requisitos eventualmente fixados pelo Estado ao abrigo dos números anteriores do art. 1.º. A Convenção estabeleceu ainda que, na falta de prova em contrário, as crianças abandonadas encontradas no território de um Estado Contratante se presumem nascidas nesse território e serem filhas de pais nacionais desse Estado (art. 2.º). Para proteger os filhos dos emigrantes, a Convenção impôs aos Estados o dever de concederem a sua nacionalidade aos filhos de nacionais seus nascidos no estrangeiro que, de outro modo, sejam apátridas (art. 4.º), especificando, no art. 1.º, n.º 4, a hipótese de os filhos de nacionais não terem podido adquirir a nacionalidade do Estado estrangeiro onde nasceram por terem excedido o limite de idade fixado para a apresentação do seu pedido ou por não terem preenchido as condições de residência impostas por este Estado. Em qualquer dos casos, com a possibilidade de os Estados da nacionalidade dos progenitores fazerem depender a concessão da sua nacionalidade de uma ou mais condições (arts. 1.º, n.º 5, e 4.º, n.º 2). A Convenção obrigou ainda os Estados a não decretarem a perda ou privação da respetiva nacionalidade quando isso conduza à apatridia, salvo algumas exceções (arts. 5.º, 6.º e 8.º), bem como a só aceitarem a renúncia à respetiva nacionalidade por parte de indivíduos que provem ter a nacionalidade de outro Estado (art. 7.º). Para além disso, a Convenção proibiu os Estados de privarem algum indivíduo ou grupo de indivíduos da sua nacionalidade por motivos raciais, étnicos, religiosos ou políticos (art. 9.º) e impôs a inclusão de cláusulas de prevenção da apatridia em qualquer tratado que regule a transferência de territórios entre Estados (art. 10.º).
Ainda ao nível da ONU, é possível encontrar disposições destinadas a prevenir a apatridia em vários tratados de direitos humanos generalistas, de que são exemplo o art. 24.º, n.º 3, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966, nos termos do qual toda e qualquer criança tem o direito de adquirir uma nacionalidade, e o art. 7.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990, cujo n.º 1 estatui que a criança é registada imediatamente após o nascimento e tem, desde o nascimento, o direito a adquirir uma nacionalidade, devendo os Estados – segundo o n.º 2 – garantir a realização destes direitos de harmonia com a legislação nacional e as obrigações decorrentes dos instrumentos jurídicos internacionais relevantes, “nomeadamente nos casos em que, de outro modo, a criança ficasse apátrida”. A 19 de outubro de 2020, no célebre caso D.Z. v. Países Baixos, o Comité dos Direitos Humanos concluiu ter havido uma violação do art. 24.º, n.º 3, do PIDCP, por o Estado neerlandês ter reiteradamente rejeitado os pedidos de registo como apátrida de uma criança nascida nos Países Baixos de mãe oriunda da China, mas indocumentada e ter mantido a criança, desde o nascimento, registada como sendo de nacionalidade desconhecida (impossibilitando a sua aquisição da nacionalidade neerlandesa), a pretexto de a mãe não ter feito prova de que a criança não tinha outra nacionalidade, quando se sabia que a mãe fizera múltiplas (mas infrutíferas) diligências junto das autoridades chinesas para a obtenção dos documentos em falta. A 22 de setembro de 2021, no também célebre caso M.K.A.H. v. Suíça, o Comité dos Direitos da Criança censurou às autoridades suíças o facto de estas terem decretado a expulsão para a Bulgária de uma requerente de asilo síria e do seu filho menor, sabendo que o menor era apátrida e sem terem procurado esclarecer se ele teria acesso a uma nacionalidade na Bulgária. Segundo o Comité, as obrigações decorrentes do art. 7.º da Convenção sobre os Direitos da Criança exigem dos Estados que estes tomem medidas proativas para assegurar que o direito a adquirir uma nacionalidade pode ser exercido (§ 10.10).
Muitas das disposições sobre nacionalidade e combate à apatridia definidas ao nível da ONU encontram eco em instrumentos internacionais de âmbito regional, no quadro da Organização dos Estados Americanos, da União Africana e do Conselho da Europa, entre outras organizações regionais. E o mesmo vale para as pronúncias dos seus organismos de supervisão.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, reconhece explicitamente o direito à nacionalidade, estatuindo, no seu art. 20.º, que toda a pessoa tem direito a uma nacionalidade (se não tiver outra, tem direito à nacionalidade do Estado em cujo território houver nascido) e não pode ser dela privada de forma arbitrária. De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a privação da nacionalidade que resulte em apatridia é sempre arbitrária (acórdão Habbal et al. v. Argentina, de 31 de agosto de 2022, § 97). Naquela que é talvez a mais emblemática das suas pronúncias sobre a matéria (acórdão Crianças Yean e Bosico v. República Dominicana, de 8 de setembro de 2005), a Corte sublinhou que os Estados têm a obrigação de não adotar leis ou práticas em matéria de concessão da nacionalidade cuja aplicação contribua para o aumento do número de pessoas apátridas, como, por exemplo, a exigência de formalidades consabidamente difíceis de satisfazer por segmentos vulneráveis da população para a emissão de certidões de nascimento de crianças nascidas no respetivo território (§ 142). Na mesma ocasião, a Corte notou que “uma pessoa apátrida, ex definitione, não possui personalidade jurídica reconhecida” (§ 178), acrescentando que “a falta do reconhecimento da personalidade jurídica fere a dignidade humana” (§ 179) e, tratando-se de crianças, compromete o seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade (§ 167). Em decisão posterior, a Corte especificou que, se um Estado não consegue ter a certeza de que uma criança nascida no seu território possa obter a nacionalidade de outro Estado, está obrigado a atribuir-lhe a sua nacionalidade ex lege (automaticamente), para evitar uma situação de apatridia no momento do nascimento, o que se aplica mesmo em caso de os progenitores não conseguirem registar a criança no(s) seu(s) Estado(s) de nacionalidade devido à existência de obstáculos de facto (acórdão Dominicanos e Haitianos Expulsos v. República Dominicana, de 28 de agosto de 2014, § 261).
Na União Africana, está em negociação desde 2018 um Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre Específicos Aspetos do Direito a uma Nacionalidade e a Erradicação da Apatridia em África, cujo projeto reflete os consensos internacionais sobre a matéria. O direito à nacionalidade está já, em todo o caso, explicitamente consagrado no art. 6.º da Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança, de 1990, onde se estatui que toda a criança tem o direito de adquirir uma nacionalidade e se impõe aos Estados Parte que assegurem o registo de todas as crianças imediatamente após o nascimento e que incluam no seu Direito interno disposições no sentido de atribuir a respetiva nacionalidade às crianças nascidas no seu território se, no momento do nascimento, elas não forem reconhecidas como nacionais de qualquer outro Estado. Na sua primeira pronúncia sobre uma eventual violação do art. 6.º da Carta (decisão Institute for Human Rights and Development in Africa e Open Society Justice Initiative em nome das crianças de ascendência núbia no Quénia v. Quénia, de 22 de março de 2011), o Comité Africano de Peritos sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança sublinhou o nexo forte e direto entre o registo de nascimento e a nacionalidade (por a falta de certidão de nascimento impedir a prova da nacionalidade, tornando as crianças apátridas) e afirmou que, apesar de o art. 6.º, n.º 3, não o dizer explicitamente, uma interpretação útil deste preceito recomenda que, tanto quanto possível, as crianças tenham uma nacionalidade desde o momento do seu nascimento, já que essa é a solução que melhor serve o interesse superior da criança. Também por isso, o Comité censurou a prática rotineira das autoridades quenianas de obrigarem as crianças de ascendência núbia a esperar até aos 18 anos para poderem requerer a nacionalidade, notando que, sendo as crianças, por definição, pessoas com idade inferior a 18 anos, uma tal prática não podia ser vista como sinal de que o Estado estivesse empenhado em honrar as obrigações assumidas com a ratificação da Carta (§ 42). Em resposta à alegação do Governo do Quénia de que as crianças de ascendência núbia poderiam ter direito à nacionalidade do Sudão, o Comité esclareceu que o art. 6.º, n.º 4, leva implícito o dever dos Estados de atuarem proactivamente em cooperação com outros Estados para determinar se as crianças nascidas no seu território são ou não reconhecidas como nacionais de outros Estados (§ 51). Este ponto foi reiterado na decisão African Centre of Justice and Peace Studies e People’s Legal Aid Centre v. Sudão, de maio de 2018, em que o Comité afirmou que um Estado não pode simplesmente interpretar e aplicar as leis da nacionalidade de outro Estado, correndo o risco de fazer interpretações erradas, e deve, em caso de prova insuficiente de que uma dada criança tem outra nacionalidade, atribuir automaticamente a sua nacionalidade, para não sujeitar a criança a uma situação de apatridia prolongada (§ 83). Antecipando o que veio a ser o juízo do Comité dos Direitos Humanos da ONU em D.Z. v. Países Baixos, o Comité Africano censurou a prática observada em alguns Estados de registar as crianças nascidas nos respetivos territórios como sendo de “nacionalidade indeterminada” e de as manter nesse limbo jurídico durante muito tempo (§ 57). Sobre a União Africana, importa, por fim, referir que, apesar de a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), de 1981, não incluir disposições sobre nacionalidade e prevenção da apatridia, isso não tem impedido pronúncias sobre a matéria por parte da Comissão Africana e do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos. O Tribunal, no acórdão Anudo Ochieng Anudo v. Tanzânia, de 22 de março de 2018, invocou diretamente o art. 15.º, n.º 2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que considerou ter sido violado por as autoridades da Tanzânia terem privado o autor da queixa da sua nacionalidade de forma arbitrária. A Comissão, por seu turno, tem entendido que o direito a uma nacionalidade está implícito no art. 5.º da CADHP, na parte em que estabelece que “todo o indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica” (decisões Modise v. Botswana, de 6 de novembro de 2000, § 89; Comunidade Núbia do Quénia v. Quénia, de 28 de fevereiro de 2015, § 140), e é essencial ao gozo de outros direitos e liberdades fundamentais previstos na CADHP (como o direito a não ser discriminado em razão da origem étnica na obtenção de documentos de identificação, por exemplo), podendo também haver violação das garantias processuais do art. 7.º da CADHP se os indivíduos forem impedidos de usar as vias administrativas previstas na lei estatal para aquisição da nacionalidade (decisão Amnistia Internacional v. Zambia, de 5 de maio de 1999, § 44).
De modo não muito diferente, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a afirmar a importância da nacionalidade para a vida dos indivíduos, mau grado a ausência de disposições específicas sobre a matéria na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), de 1950, e seus Protocolos Adicionais. Notando embora que o art. 8.º da CEDH (direito ao respeito pela vida privada e familiar) não assegura o direito a adquirir uma nacionalidade específica, o TEDH admite que a negação ou privação arbitrária da nacionalidade podem em certas circunstâncias tocar aspetos cobertos por aquele preceito, atento o impacto que a não obtenção ou perda da nacionalidade tem para a vida privada das pessoas e o facto de o conceito de vida privada ser suficientemente amplo para abranger aspetos da identidade social dos indivíduos (e.g., decisões Slivenko et al. v. Letónia, de 23 de janeiro de 2002, § 77; K2 v. Reino Unido, de 7 de fevereiro de 2017, § 49; acórdãos Genovese v. Malta, de 11 de outubro de 2011, §§ 30, 33; Labassee v. França, de 26 de junho de 2014, § 76; Mennesson v. França, de 26 de junho de 2014, § 97; Petropavlovskis v. Letónia, de 13 de janeiro de 2015, § 73; Ramadan v. Malta, de 21 de junho de 2016, §§ 62, 84-85). Em Genovese v. Malta, provavelmente a mais emblemática das suas pronúncias neste domínio, o TEDH concluiu que o Estado demandado não violara o art. 8.º da CEDH, já que até fora mais longe do que o exigido pelo preceito ao reconhecer no seu Direito interno o direito a adquirir a nacionalidade com base na ascendência, mas violara o art. 14.º (proibição de discriminação) conjugado com o art. 8.º, por discriminar os filhos nascidos fora do casamento na regulação daquele modo de acesso à nacionalidade (§§ 34-36, 46-49). Em Labassee v. França e Mennesson v. França, o TEDH concluiu que as autoridades francesas haviam violado o direito à vida privada de crianças nascidas em resultado de gravidez de substituição por a lei francesa não reconhecer a filiação nestes casos, o que, entre outras consequências nefastas, implicava incerteza quanto à possibilidade de as crianças virem a adquirir a nacionalidade francesa, com prejuízo para a definição da sua identidade (§§ 76 e 97, respetivamente). Entretanto, não é sempre o mesmo o peso atribuído pelo TEDH à circunstância de os requerentes serem apátridas e à insegurança daí resultante. No acórdão Ramadan v. Malta, de 21 de junho de 2016, em que concluiu pela não violação do art. 8.º, o TEDH manifestou dúvidas de que o requerente fosse efetivamente apátrida (§ 92), mas permitiu-se acrescentar que, sendo apátrida, o requerente não estava em risco de ser expulso de Malta, dado que não havia qualquer garantia de que as autoridades egípcias o aceitassem de volta (§ 56). Já no acórdão Hoti v. Croácia, de 26 de abril de 2018, em que concluiu pela violação do art. 8.º, o TEDH entendeu que o facto de o requerente ser apátrida era um aspeto importante a considerar na apreciação dos obstáculos com que este se deparara na regularização da sua residência na Croácia (§§ 128, 138). Para além disso, em vários casos, o TEDH menciona o facto de os requerentes não se tornarem apátridas em resultado da privação ou recusa de concessão da nacionalidade por parte do Estado demandado como sinal de que a interferência na vida privada dos requerentes não é grave (e.g., decisões K2 v. Reino Unido, § 62; S.-H. v. Polónia, de 16 de novembro de 2021, §§ 69-70; Laraba v. Dinamarca, de 22 de março de 2022, § 21). No entanto, o TEDH não inclui o facto de a privação da nacionalidade resultar em apatridia entre os critérios usados para determinar se a privação foi arbitrária (e.g., acórdão Usmanov v. Rússia, de 22 de dezembro de 2020, § 63).
Diversamente do que se verifica nos outros sistemas regionais de direitos humanos, ao nível do Conselho da Europa, já temos dois instrumentos específicos sobre a matéria, a Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, de 1997, e a Convenção sobre a Prevenção da Apatridia em Caso de Sucessão de Estados, de 2006, que, no entanto, estão fora da jurisdição do TEDH. A Convenção Europeia sobre a Nacionalidade começa por reconhecer explicitamente que cabe a cada Estado determinar quem são os seus nacionais nos termos do seu Direito interno (art. 3.º, n.º 1), mas exige que as normas desse Direito interno se baseiem num conjunto de princípios entre os quais avultam o de que todos os indivíduos têm direito a uma nacionalidade e o de que a apatridia deve ser evitada (art. 4.º, alíneas a) e b)). Em consonância com estes princípios, os Estados Parte desta Convenção são obrigados, por exemplo, a prever no seu Direito interno a aquisição ex lege da respetiva nacionalidade por recém-nascidos abandonados, encontrados no seu território e que, de outro modo, sejam apátridas (art. 6.º, n.º 1, alínea b)), bem como a faculdade de aquisição da respetiva nacionalidade por menores nascidos no seu território que não adquiram outra nacionalidade aquando do nascimento (art. 6.º, n.º 2) e por indivíduos apátridas e refugiados reconhecidos, legal e habitualmente residentes no seu território [art. 6.º, n.º 4, alínea g)). Por outro lado, o Direito interno dos Estados Parte não deverá prever a perda da nacionalidade se o indivíduo em causa se tornar apátrida, salvo em caso de fraude (art. 7.º, n.º 3), e só poderá permitir a renúncia à nacionalidade sob condição de os indivíduos em causa não se tornarem apátridas (art. 8.º, n.º 1). Em complemento dos princípios gerais sobre sucessão de Estados definidos na Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, a Convenção sobre a Prevenção da Apatridia em Caso de Sucessão de Estados veio reconhecer expressamente que qualquer pessoa que, ao tempo da sucessão de Estados (ou seja, da substituição de um Estado por outro na responsabilidade pelas relações internacionais de um dado território), tenha a nacionalidade do Estado predecessor e se tenha tornado ou esteja em vias de se tornar apátrida em resultado da sucessão tem direito à nacionalidade do Estado sucessor (art. 2.º); ainda que se admita a possibilidade de o Estado sucessor fixar algumas condições, como a residência habitual no território ou uma “ligação adequada” com este Estado (art. 5.º). O Estado predecessor, entretanto, é obrigado a não retirar a sua nacionalidade aos seus nacionais que não tenham adquirido a nacionalidade do Estado sucessor e que, de outro modo, se tornem apátridas devido à sucessão de Estados (art. 6.º). A Convenção exige ademais o respeito pela vontade das pessoas visadas (art. 7.º), a não imposição de ónus de prova desrazoáveis (art. 8.º) e a facilitação da aquisição da nacionalidade por pessoas apátridas (art. 9.º).
Fruto dos desenvolvimentos ocorridos a nível internacional, é possível observar que muitos Estados dispõem hoje de cláusulas de prevenção da apatridia nas respetivas leis da nacionalidade, o que é positivo, ainda que se saiba que as alterações legislativas de pouco servem se não existir também uma infraestrutura adequada para o registo dos nascimentos e a emissão de documentos de identificação e se as autoridades administrativas e judiciais não fizerem uma interpretação e aplicação corretas do quadro legal. Os termos em que as cláusulas de prevenção da apatridia estão consagradas variam muito, de resto, de país para país. Centrando-nos em exemplos retirados do mundo lusófono, cumpre notar que, à exceção da Guiné-Bissau, todos os Estados de língua oficial portuguesa preveem a concessão da nacionalidade às crianças nascidas no seu território que não tenham outra nacionalidade. Em contrapartida, só Moçambique e Portugal não preveem a possibilidade de perda involuntária da nacionalidade, sendo que, com exceção do Brasil, os demais Estados não estabelecem salvaguardas para a eventualidade de a privação da nacionalidade resultar em apatridia. A facilitação da naturalização para os apátridas está prevista no Brasil, na Guiné-Bissau (para apátridas que sejam refugiados) e em Portugal (para apátridas que tenham tido a nacionalidade portuguesa). De um modo geral, os apátridas gozam, nos Estados de língua oficial portuguesa, os mesmos direitos que são reconhecidos aos demais estrangeiros. O estatuto de apátrida, com direitos específicos, só está consagrado no Brasil (lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração)) e em Portugal (lei n.º 41/2023, de 10 de agosto).
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Autora: Patrícia Jerónimo