Artes [Dicionário Global]
Artes [Dicionário Global]
A definição de arte continua a ser das mais desafiantes, mesmo nos dias correntes. O seu conceito pode variar dependendo de geografias, culturas ou espaços. Janson (2010), um dos autores de maior referência no campo da História da Arte, refere que a arte esteve, durante gerações, alicerçada numa visão de três expressões artísticas: escultura, arquitetura e pintura. Contudo, artistas ultrapassaram frequentemente “essas linhas” e utilizaram outras matérias para criar arte. Atualmente, é mais facilmente compreendido que a “arte” não é apenas material e que existem vários campos artísticos. Por outro lado, a extensa bibliografia da História da Arte data manifestações artísticas que remontam a 30.000 a.C., como as pinturas rupestres, reconhecendo como o ser humano necessitou de registar e (re)criar o que vivia e pensava. Ensina-nos a História que a arte sempre esteve presente no desenvolvimento do ser humano e foi essencial para o pensamento criativo que impulsionou obras imponentes de arquitetura. Em pleno século XXI, as artes continuam a ocupar um espaço de importância não somente artística, mas também social, económica e cultural, tal como nos séculos anteriores. Por esse motivo, ficou consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Contudo, precisamos de olhar para mais do que um artigo desta declaração, precisamente pela natureza interdependente, indivisível e universal dos direitos humanos.
O art. 18.º, corresponde ao direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião e, logo de seguida, o art. 19.º fala-nos da liberdade de opinião e de expressão, “o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”. Ou seja, é bastante abrangente e claro no que toca tanto à liberdade de conteúdo quanto ao meio utilizado de comunicação e expressão. Já no art. 27.º, é apresentado o direito de participação na vida cultural da comunidade. No seu primeiro ponto é redigido que “toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”, enquanto no ponto 2 é previsto o “direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria”.
Com efeito, esta referência às artes aparece enquadrada no conjunto de direitos que se relacionam com os direitos económicos, sociais e culturais. Porém, também podemos olhar a arte como forma de intervenção cívica e política, enquadrando-a nos direitos civis e políticos. Tendo em conta as diretrizes do Direito Internacional, a nível regional e nacional, cada governo deve investir igualmente em documentos que protejam o direito à cultura e à arte, enquanto direito universal e que deve ser acessível a todas as pessoas. Na União Europeia, a Carta dos Direitos Fundamentais desenvolve, no art. 22.º, o direito à diversidade cultural, religiosa e linguística. Em consequência do Tratado de Lisboa, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia passou a ter valor jurídico, e, assim, o art. 22.º foi reforçado no seu valor e, em resultado, com maior potencial para influenciar as escolhas políticas europeias (MORIJN, 2015).
Em Portugal, a Constituição Portuguesa inclui referências específicas, tais como, no capítulo I – Direitos, liberdades e garantias pessoais, o art. 37.º – Liberdade de expressão e informação, o art. 42.º – Liberdade de criação cultural, e, ainda, no capítulo III – Direitos e deveres culturais, a importante ligação entre educação, cultura e ciência, nomeadamente prevendo o direito à fruição e criação cultural (art. 78.º).
Matarasso (2019, 47) afirma que “o direito de participar na vida cultural da comunidade” deve ser vista como uma forma de salvaguardar todos os direitos humanos. Para este autor, “negar às pessoas o direito de participar na vida cultural da comunidade, é negar-lhes voz. E impedi-las de serem ouvidas é o primeiro passo para a negação de outros direitos” (MATARASSO, 2019, 47), o que, infelizmente, temos visto suceder com inúmeros artistas em todo o mundo.
Na urgência da representação do real e imaginário, ou na ligação entre ambos, artistas em nome individual e coletivo têm vindo a recorrer a diferentes linguagens artísticas para comunicar sobre direitos humanos. A título de exemplo, Pablo Picasso, em 1937, pintou um dos seus maiores quadros, considerado obra-prima, Guernica. Este quadro, pintado em resposta a um bombardeamento no norte de Espanha, retrata a expressão de sofrimento humano e animal com a guerra, que cria um impacto imediato em quem o observa.
Francisco de Goya foi outro artista que, com os seus pincéis, soube retratar o impacto da guerra e da injustiça. No seu quadro O Três de Maio de 1808 em Madrid, vemos um homem de braços abertos a fazer frente às armas do exército de Napoleão, aquando da invasão da cidade de Madrid, em que centenas de pessoas foram executadas pela sua resistência.
Não nos faltam exemplos recentes de artistas que escolhem falar de direitos humanos nas suas obras, nem sempre de forma direta, imediata ou consciente, mas que originaram mudanças sociais, muitas devidas ao impacto que o contacto com essas obras gerou.
A música “Strange Fruit”, do compositor Abel Meeropol e cantada por Billy Holiday, é conhecida como uma das primeiras canções de protesto, por ter sido sentida como mobilizadora do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos da América, contra a violência do racismo e discriminação. Em Portugal, a importância das canções de protesto durante a ditadura é incontornável, sobretudo como processo de resistência e de transformação social. Muitos artistas foram perseguidos e detidos, e outros tiveram de recorrer ao exílio. Essa perseguição, ainda recorrente em várias partes do mundo, sobretudo em regimes ditatoriais, mas não só, é a prova de que existe “medo” sobre o poder transformador da arte. A arte é uma ferramenta de pensamento crítico e geradora de emoções que, muitas vezes, são o início de mudanças – sejam pequenas ações a grandes revoluções coletivas.
Atualmente, temos artistas como Ai Wei Wei ou Banksy, que já se tornaram nomes incontornáveis na ligação entre arte e direitos humanos. Em Portugal, cada vez mais projetos artísticos se apropriam de um discurso de defesa dos direitos humanos, não só pelo acesso à cultura, mas também como espaço de reflexão sobre assuntos prementes de direitos humanos. Conseguimos observar a presença dessas temáticas em todas as linguagens artísticas – do campo das artes visuais às artes performativas.
São vários os artistas e coletivos que têm vindo a assumir um sentido de urgência no seu trabalho e, entre várias temáticas, refletem nas suas obras situações de guerra e de conflitos ou, em alguns casos, desenvolvem projetos diretamente nesses cenários, com o propósito de defenderem os direitos humanos, promoverem a dignidade humana e o sentido de empatia e com o entendimento de que a arte pode influenciar os processos de paz e de resolução de conflitos (LEMELSHIRICH-LATAR et al., 2018)
Nas duas últimas décadas, surgiram vários novos elementos sobre a arte participativa e a arte comunitária com fortes ligações à intervenção social e à democratização da arte, bem como à maturação do que se entende como arte política ou ativismo. Em paralelo, surgiu uma preocupação das novas criações para dar resposta à urgência do “aqui e agora”. Pela dimensão da globalização, sobretudo da informação, e através de uma maior sensibilização para determinadas causas e assuntos, assistimos ao renascer da figura do artista-ativista (SHOLETTE, 2011), ou “artista-cidadão” (BURNHAM & DURLAND, 1998), que assume diretamente a sua prática na defesa de causas sociais, nomeadamente relacionadas com direitos humanos.
Não é por coincidência que, desde cedo, as organizações não governamentais de direitos humanos compreenderam o potencial da arte para, de forma mais criativa ou imediata, conseguir dar visibilidade aos assuntos e estabelecer maior empatia para conduzir cidadãos à ação. É o caso do projeto Art for Amnesty, da organização Amnesty International, que nomeia artistas enquanto “embaixadores de consciência”, ou da Human Rights Watch, que descobriu nos festivais de cinema um valioso encontro para discutir abusos de direitos humanos. Em Portugal, temos a iniciativa Artes pela Amnistia – Artes pelos Direitos Humanos, promovida pela Amnistia Internacional Portugal.
Recentemente, órgãos governamentais como a UNESCO ou a Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia têm investido em encontros para novas reflexões e sinergias entre artes e direitos humanos, que indiciam um discurso de uma “arte de direitos humanos” (Human Rights Art).
Em inglês, conseguimos encontrar ligações distintas como “art and human rights” ou “art for human rights”, porém, é comummente aceite “Human Rights Art” enquanto categoria capaz de albergar os diferentes tipos de relações. Já em português, e noutras línguas românicas, exige-se um maior esforço de análise, pois podemos identificar uma arte que fala “sobre”, “através”, “para”, ou que se poderia propor pertencer a um género ou campo de ação. Pela identificação de alguns artistas que defendem que a sua arte pertence a uma narrativa de direitos humanos, poderíamos procurar uma definição nesse sentido de pertença, como, por exemplo, “arte de direitos humanos”, independentemente de estes poderem ser enquadrados em outros eixos como o da arte política, socialmente comprometida, participativa, etc. (GASPAR & CRUZEIRO, 2019).
É relevante sublinhar que tanto as práticas artísticas podem ter um efeito político, social e moral nos “direitos humanos”, como os “direitos humanos” podem ter igual efeito nas práticas artísticas.
Ainda é pouco comum encontrarmos livros ou artigos académicos sobre a relação global e transversal entre arte e direitos humanos, contudo, cada área artística tem encontrado as suas próprias ligações e procurado um novo entendimento sobre o assunto. Como, a título de exemplo, em Theatre & Human Rights (RAE, 2014), Popular Music and Human Rights (PEDDIE, 2011), Human Rights Films (TÁSCON, 2012, 2015).
Em maio de 2017, decorreu o primeiro encontro da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, dedicada a explorar a ligação entre artes e direitos humanos. Resultado desta reunião, foi editado um breve relatório com os contributos dos participantes que, segundo o mesmo, contou com académicos, curadores, trabalhadores em museus, representantes da sociedade civil e vários artistas de diferentes domínios, das artes visuais à música, de vários estados da União Europeia. Este relatório fixa-se na relação bilateral entre arte e direitos humanos e no que os direitos humanos podem fazer pelas artes e vice-versa. Para além disso, toca igualmente em temas sensíveis e divergentes, como a possibilidade de as artes poderem contribuir para atropelos aos direitos humanos, sobretudo por via da propaganda.
A nível internacional, na última década, consolidaram-se inúmeros festivais que relacionam arte e direitos humanos, nos quais encontramos uma linguagem comum sobre “empatia”, “comunidade” e “dignidade”. E, para além de obras artísticas ou festivais, podemos ainda ter em conta projetos educativos que se podem enquadrar num modelo de “educação para os direitos humanos” ou “arte-educação”, mas que dão protagonismo ao uso da arte enquanto ferramenta. Por outro lado, é relevante mencionarem-se projetos como os da organização FREEMUSE, a Artists at Risk Connection ou o IARA – International Arts Rights Advisors, que evidenciam outra ligação entre arte e direitos humanos: a da arte enquanto direito e, nomeadamente, o direito à liberdade de expressão.
Apesar de alguns festivais e eventos internacionais já evidenciarem uma relação direta entre arte e direitos humanos desde há algumas décadas, sem dúvida que, com as sucessivas crises económicas e sociais globais, a partir de 2008, e com movimentos civis e políticos criados a partir de 2011, foram surgindo novas formas de inovação social através da arte. Os festivais de arte e direitos humanos têm, na sua maioria, menos de uma década de existência e os encontros internacionais, a nível académico ou institucional, têm acontecido com maior fervor muito recentemente, sobretudo a partir de 2017.
No início de 2009, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas avançou com novas resoluções com o intuito de promover e proteger os direitos culturais e o respeito por toda a diversidade cultural. Com essas novas resoluções, foi nomeado um novo/a relator/a-especial (uma função para um/a especialista independente) para monitorizar a liberdade de expressão e fruição de todos os direitos culturais, em todo o mundo. Assim, desde esta data que encontramos relatórios anuais e recomendações à Organização das Nações Unidas para que sejam tomadas medidas para a proteção dos direitos culturais a nível local, regional e internacional. Segundo este mandato, “os direitos culturais são fundamentais para respeitar a dignidade humana, na diversidade das suas expressões” e têm dois principais objetivos: “dar visibilidade aos direitos culturais no sistema de direitos humanos” e “promover uma maior compreensão sobre a gravidade desses abusos e a oportunidade de uma maior fruição por todas as pessoas” (tradução livre, a partir das informações do OHCHR).
As artes são um direito humano para artistas, que devem ver a sua liberdade de expressão protegida, e também para todas as pessoas, enquanto espaço de fruição artística, de lazer, e de pensamento estético, social e político. Infelizmente, ainda existe um longo caminho a percorrer na proteção e democratização do acesso à cultura e fruição da arte, em todas as suas formas, por todas as pessoas, seja em Portugal, seja noutras partes do mundo.
Bibliografia
Impressa
BURNHAM, L. F. & DURLAND (eds.) (1998). The Citizen Artist. 20 Years of Art in the Public Arena – An Anthology from High Performance Magazine: 1978-1998. New York: Critical Press.
EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS (2017). Exploring the Connections between Arts and Human Rights – Report of High-Level Expert Meeting Vienna, 29-30 May 2017. Luxembourg: Publications Office of the European Union.
GASPAR, S. & CRUZEIRO, C. P. (2019). “Como descrever práticas artísticas que promovem, defendem e refletem sobre os direitos humanos?”. In P. André et al. (eds.) Antologia de Ensaios – Laboratório Colaborativo: Dinâmicas Urbanas, Património, Artes: V Seminário de Investigação, Ensino e Difusão (205-216). Lisboa: DINÂMIA’CET – IUL.
JANSON, H. W. (2010). A Nova História da Arte de Janson: A Tradição Ocidental (9.ª ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
LEMELSHIRICH-LATAR, N. et al. (eds.) (2018). Can Art Aid in Resolving Conflicts? Amsterdam: Frame.
MATARASSO, F. (2019). Uma Arte Irrequieta: Reflexões sobre o Triunfo e a Importância da Prática Participativa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
PEDDIE, I. (2011). Popular Music and Human Rights (2 vols.). Aldershot: Ashgate.
RAE, P. (2009). Theatre and Human Rights. London: Palgrave MacMillan.
SHOLETTE, G. (2011). Dark Matter: Art and Politics in the Age of Enterprise Culture. London: Pluto Press.
TÁSCON, S. (2012). “Considering Human Rights Films, Representation and Ethics: Whose Face?”. Human Rights Quaterly, 34, 864-883.
TÁSCON, S. (2015). Human Rights Film Festivals: Activism in Context. London: Palgrave Macmillan.
Digital
AMNESTY INTERNATIONAL – Art for Amnesty, https://www.amnesty.org/en/art-for-amnesty/ (acedido a 10.01.23).
MORIJN. J. (2015). “The EU Charter of Fundamental Rights and Cultural Diversity in the EU”. In E. Psychogiopoulou (ed.). Cultural Governance and the European Union. Palgrave Studies in European Union Politics (151-164). London: Palgrave Macmillan. https://doi.org/10.1057/9781137453754_12 (acedido a 10.01.23).
OFFICE OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS (s.d.). Special Rapporteur in the Field of Cultural Rights, https://www.ohchr.org/en/special-procedures/sr-cultural-rights (acedido a 10.01.23).
Autora: Susana C. Gaspar