Beccaria, Cesare [Dicionário Global]
Beccaria, Cesare [Dicionário Global]
1 – Cesare Beccaria Bonesana, marquês de Gualdrasco e Villareggio, nasceu a 15 de março de 1738 em Milão, no seio de uma família nobre, mas arruinada. Depois de se ter licenciado em Direito Civil e Canónico na Universidade de Pavia, em 1758, e de uma breve passagem pelo cárcere, por influência do pai, que não via com bons olhos a sua relação com a jovem Teresa de Blasco, com quem acabaria por casar, Beccaria escreveu a sua primeira obra sobre reforma monetária (1762) e constituiu uma sociedade de debates com dois amigos, Pietro e Alessandro Verri, destinada a discutir as novas ideias do Iluminismo e as reformas que consideravam necessárias no sistema político e económico, e no direito e processo penal, a que chamaram “Academia dos Punhos” (as discussões entre associados eram vivas, e nem sempre pacíficas, e terminavam muitas vezes em agressões recíprocas).
Incentivado por Pietro, que escrevia sobre o uso da tortura no sistema penal, obra que publicaria em 1804, e influenciado pelo pensamento de Voltaire, Montesquieu, Rousseau e Hume, bem como pelo conhecimento da realidade das prisões, que lhe era transmitido por Alessandro, que era guarda prisional e lhe falava da miséria moral e física dos presos e da violência que os rodeava, Beccaria publicou em 1764, aos 29 anos, um tratado sobre os crimes e as penas (Dei Dellitti e delle Pene), que obteve sucesso imediato na Europa e nos EUA e que teve um profundo impacto na formulação dos princípios estruturantes da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Bessler (2018, 150) afirma que a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Formas de Punição Cruéis, Desumanos e Degradantes, das Nações Unidas, de 1984, são ainda reflexo do seu trabalho na defesa dos direitos humanos, e Rose (1900, 303) sublinha que os princípios que defendeu chegaram ao Oriente, tendo influenciado a elaboração do Código Penal do Japão de 1871, que praticamente aboliu a pena de morte, a tortura e a flagelação cruéis.
Esta pequena obra, com pouco mais de cem páginas, converteu-se no símbolo da libertação e da defesa do cidadão comum perante uma justiça penal desigual, arbitrária e insensível ao sofrimento humano, que desrespeitava os seus direitos e a sua dignidade, e representou para o direito penal moderno o mesmo que o pensamento de Galileu para as ciências, ao recusar que a Terra constituía o centro do sistema solar, ou a descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama, para um mundo fechado a outras culturas e ao comércio com outros países: as ideias de Beccaria traduzem uma revolução, o corte com o status quo e com uma forma de fazer justiça que, de tão rotineira e habitual, e tão enraizada na consciência jurídica geral da época, não permitia antever alternativas para além dela (já antes tinham surgido vozes dissidentes e propostas de reforma do sistema penal, mas nenhuma teve a consistência e a estrutura da reforma proposta por Beccaria. Carvalho (1985, 44) fala em rutura, a propósito do pensamento deste autor).
Para Voltaire, no seu comentário à obra de Beccaria, publicado em 1766, Dos Delitos e das Penas constituiu um código de humanidade no domínio penal; Rose lembra o episódio do ovo de Colombo a propósito das suas ideias; Ferrajoli considera que a obra de Beccaria fundou o garantismo penal como limite à arbitrariedade e ao excesso de poder punitivo; Hostettler designa Beccaria como o “génio” dos delitos e das penas, embora sem deixar de referir o ceticismo com que o seu pensamento foi recebido por alguns. Lembra em particular o que disse Ramsay, um escritor e pintor escocês, que, ao escrever a Diderot a propósito de Dos Delitos e das Penas, o classificou como uma utopia, que apenas poderia ser posta em prática através de uma grande revolução: “[…] mas uma vez que seria uma loucura absurda esperar essa revolução geral, essa reconstrução geral, que apenas poderia ter lugar por meios muito violentos que representariam um grande infortúnio para a geração atual e ofereceriam uma compensação incerta à próxima geração, as obras especulativas como Dos delitos e das penas integram a categoria das Utopias, das Repúblicas platónicas e de outros governos ideais; que revelam, de facto, a sagacidade, a humanidade e a bondade dos seus autores, mas que nunca tiveram nem nunca terão qualquer influência nos assuntos humanos” (HOSTETTLER, 2010, x)
2 – Beccaria é considerado o principal representante do Iluminismo criminal e o pai do direito penal moderno, mas não é possível alcançar a verdadeira dimensão da sua obra sem recordar as principais características do sistema de justiça penal vigente na Europa de 1764: a maior parte, se não a totalidade dos países europeus, aplicava penas cruéis que eram executadas barbaramente e de forma pública, entre as quais avultava a pena de morte, utilizada para prevenir e punir pequenos crimes, como os furtos bagatelares, e a infâmia do condenado transmitia-se aos descendentes (transmissibilidade da pena). O sistema penal era estruturalmente arbitrário e era utilizado para fins políticos, não existindo uma definição clara dos crimes e das penas. A par das penas legais, que se encontravam previstas na lei, havia as penas judiciais, que eram estabelecidas pelo juiz, tendo em conta as circunstâncias do caso e a gravidade do facto, o interesse político em punir e a posição social do infrator e da vítima (arbitrariedade e desigualdade das penas). O rei exercia um amplo e discricionário poder de perdoar ou de graça, que exercia em datas festivas, e em relação a quem entendesse, e que conhecia escassos limites. O processo penal não oferecia quaisquer garantias ao infrator, que não tinha quaisquer direitos.
A tortura só foi abolida em Inglaterra no reino de Jorge IV, e noutros países mais tarde ainda, e as salas de tortura multiplicavam-se por toda a Europa como lugares de verdadeiro terror onde o juiz se sentava para ouvir as confissões extorquidas a homens e mulheres, apenas mandando suspender o processo quando o médico, também presente na sala, dava sinal de que a morte estava iminente. Havia duas formas de tortura: a tortura preliminar, ou prévia, e a tortura suplementar. A primeira destinava-se a obter a confissão dos factos pelos quais o agente era acusado. A segunda ocorria em momento posterior à condenação e tinha por objetivo obter os nomes de eventuais cúmplices. Segundo Rose (1900, 300), a tortura preliminar foi proibida em França, por Luís XVI, a seguir à publicação da obra de Beccaria, e a tortura suplementar foi abolida durante a Revolução. Quando não era possível extorquir a confissão ao acusado, recorria-se à prova testemunhal, e era legítimo o testemunho indireto ou de “ouvir dizer”, constituindo o rumor sobre a prática de um crime fundamento bastante para dar início ao procedimento criminal. Dois rumores sobre um crime ou sobre um desvio moral do agente, provenientes de duas fontes distintas, eram equivalentes ao depoimento de uma testemunha ocular, e, quando o crime fosse atroz, o juiz tanto podia fundar a sua convicção na existência de prova do crime como na mera suspeita.
Muito poucos arguidos escapavam à condenação, e eram executados muitos inocentes, até porque os julgamentos eram secretos e os acusados não tinham quem os defendesse. A falibilidade dos julgamentos – e a dependência do poder de punir em relação à lei divina e ao poder religioso – era particularmente clara nos casos de bruxaria (um crime que consistia num entendimento com o Diabo ou com outros poderes sobrenaturais e que era punido com a pena capital, executada quase sempre pelo fogo). Escreve Rose (1900, 301): “Michelet conta que em Trèves foram queimados vivos 7000 bruxos e feiticeiras, que em Genebra foram queimados 500 em três meses, em Wurburg 800 e em Bamberg 1500, quase de uma só vez, sendo a maioria deles raparigas com idade inferior a onze anos. Em Toulouse, e em algumas cidades de Espanha, o número de execuções ainda era maior. O volume de perseguições era de tal ordem, que o Imperador Fernando II da Alemanha, que deve ter disputado o prémio da crueldade com Nero e Calígula, se viu obrigado a interceder, aconselhando alguma moderação, porque se as coisas continuassem assim algumas zonas acabariam despovoadas”.
Além destes julgamentos secretos conduzidos por juízes pouco qualificados, ainda havia outras formas de libertar a sociedade de pessoas indesejáveis. Uma dessas formas consistia no uso das “cartas de cachet”, ou “cartas do rei”, como eram designadas em França, que permitiam condenar à pena de prisão sem qualquer acusação prévia quem o rei desejasse, pelo tempo que desejasse, que podia ser muito tempo. No reinado de Luís XV, foi encontrado um homem preso na Bastilha há 35 anos, que não sabia que crime tinha praticado, tão-pouco alguém sabia. Rose (1900, 301) refere que o homem foi libertado, mas que, depois de contactar com o mundo exterior, pediu para regressar à prisão, desejo que lhe foi concedido.
Muitos dos criminosos eram condenados às galés, onde prestavam trabalho em condições degradantes, expostos ao sol e à chuva, subnutridos e acorrentados, ficando esquecidos depois do tempo da condenação, às vezes até à morte (LANGBEIN, 1976, 40; FARIA, 2015, 164). Relativamente às condições de vida nas prisões, John Howard, um reformista do sistema prisional inglês, escreveu que as prisões na Grã-Bretanha estavam sobrelotadas, imundas, infestadas de doenças, e constituíam mero local de passagem para aqueles que aguardavam a execução da pena capital ou o embarque para as colónias da América ou da Austrália (Howard, 1777, 8 e ss.). Os presos passavam fome, não trabalhavam, porque não tinham ferramentas ou condições para tal, eram mantidos acorrentados por carcereiros miseráveis e violentos, e os juízes não tinham qualquer interesse na sua situação, negligenciando a vigilância das pessoas encarregadas de executar as penas. Apesar deste clima de terror penal que se vivia na Europa em meados do século xviii, o número de crimes e de condenados às mais variadas penas continuava a aumentar.
3 – O século XVIII assinala uma viragem na história do pensamento, da cultura e da sociedade em geral (CARVALHO, 1985, 47). Como novas dimensões do ideário filosófico político, destacam-se a afirmação da prioridade do indivíduo face ao Estado e o reconhecimento dos seus direitos como pessoa (individualismo, jusnaturalismo), a consagração da razão humana como critério único de verdade e de justiça (racionalismo) e a natureza contratual do poder de punir e de governar (contratualismo). Foi neste contexto de renovação filosófica, política e social que Beccaria escreveu Dos Delitos e das Penas, que representou um ato de coragem, uma vez que continha ideias que não podiam agradar aos poderes instalados e à Igreja (o livro chegou a estar incluído na lista de obras proibidas do Índice da Inquisição). Apesar de Beccaria ter ficado exposto a um elevado risco de perseguição e de castigo, houve duas circunstâncias que o protegeram: a sua posição social e os seus conhecimentos. Rose (1900, 302) afirma que o governador de Milão, Firmiani, homem culto e inteligente, intercedeu em sua defesa, tendo evitado, segundo diz, o que teria sido uma “desagradável contingência” para Beccaria, e Cunha (2011, 26) escreve que alguns atribuem a fama de Beccaria ao facto de “Voltaire nele ter visto um seguidor”, bem como ao sucesso do próprio livro, que foi de tal forma inesperado e rápido que não permitiu combater e abafar as suas ideias (o livro foi lido por Thomas Jefferson e George Washington, nos EUA, e fez furor nos meios literários e culturais de Paris e nas outras capitais europeias, tendo sido traduzido em várias línguas).
4 – Quais são as ideias mais importantes de Beccaria e de que forma contribuíram para a preservação dos direitos fundamentais de todos os que se confrontam com a justiça penal?
i) Para Beccaria, o crime constitui fundamentalmente uma ofensa à sociedade (“todo o delito, mesmo privado, ofende à sociedade” (BECCARIA, 1998, 75-78)), e a pena justifica-se pela necessidade de prevenir o crime (substituição de uma lógica retributiva e punitiva da pena por uma finalidade de prevenção geral). Beccaria relativiza o interesse da vítima, a intenção do autor do facto e a consideração do crime como pecado, e encara a questão criminal como um assunto de natureza pública. O direito penal vê-se assim esvaziado de outros interesses que não o da sociedade em se proteger do criminoso e afastar os demais cidadãos da prática de factos da mesma natureza, muito embora o utilitarismo de Beccaria encontre sempre o seu limite em exigências de humanidade (CARVALHO, 1985, 53; SANTOS, 2015, 2; FARIA, 2015, 196).
ii) Beccaria propõe a abolição da pena de morte com base na ideia do contrato social, partindo do princípio de que nenhum cidadão concede o poder de o matarem aos seus representantes. A este propósito, escreve: “Esta inútil profusão de suplícios que jamais tornou os homens melhores levou-me a examinar se a pena de morte é verdadeiramente útil e justa num governo bem organizado. Que direito podem os homens atribuir-se de trucidarem os seus semelhantes? Não é certamente aquele de que resultam a soberania e as leis. Elas não são senão uma soma de mínimas porções da liberdade particular de cada um; elas representam a vontade geral, que é o conjunto das vontades particulares. Quem é que alguma vez terá querido deixar a outro homem a decisão de matá-lo? Como é que o sacrifício mínimo da liberdade de cada um pode compreender o sacrifício do maior de todos os bens: a vida? […] A morte de um cidadão não pode ser considerada necessária, a não ser por duas razões: A primeira, quando, mesmo privado de liberdade, ele tenha ainda tais relações e tal poder que interesse à segurança da nação; quando a sua existência possa originar uma revolução perigosa para a forma de Governo estabelecida. A morte de qualquer cidadão torna-se, pois, necessária quando a nação recupera ou perde a sua liberdade, ou em tempo de anarquia, quando as próprias desordens tomam o lugar das leis; mas sob o reino tranquilo das leis, em uma forma de governo que reúne os votos da nação, bem sustentada no exterior e no interior pela força e pela opinião, talvez mais eficaz do que a própria força, onde o comando está apenas nas mãos do verdadeiro soberano, onde as riquezas compram prazer e não autoridade, não vejo necessidade alguma de destruir um cidadão” (BECCARIA, 1998, 118-119).
iii) Já se disse que Beccaria pretendeu reagir contra a crueldade das penas aplicadas pelo Antigo Regime propondo a sua substituição pela pena de prisão. Além de ser mais humana, a pena de prisão é encarada como restrição de um dos pilares fundamentais do ideário iluminista, a liberdade do cidadão, o que a torna profundamente eficaz.
iv) A este nível, Beccaria defende o princípio da legalidade dos delitos e das penas e considera que não deve ser permitido ao juiz interpretar a lei ou aplicar sanções de forma arbitrária (Beccaria sustenta que o juiz se devia limitar a desenvolver um raciocínio puramente formal de subsunção dos factos à lei). As leis devem ser conhecidas pelo povo e redigidas com clareza e na sua língua para que possam ser compreendidas e obedecidas por todos os cidadãos: “Quereis prevenir os delitos? Fazei com que as leis sejam claras, simples, e que toda a força da nação se concentre em defendê-las, e nenhuma parte dela seja usada para as destruir. Fazei com que as leis favoreçam menos as classes dos homens do que os próprios homens. Fazei com que os homens as temam, e as temam só a elas. O temor pelas leis é salutar, mas fatal e fecundo de crimes é o temor do homem pelo homem” (BECCARIA, 1998, 155).
v) Ao mesmo tempo, as penas devem ser proporcionais aos delitos. De acordo com Beccaria, não fazia sentido que o Estado pretendesse punir com a mesma pena (g., a pena de morte) crimes de gravidade distinta e praticados em circunstâncias diferentes. Recusada a lógica retributiva da pena enquanto castigo selvático e sem limites, terá de ser a necessidade de salvaguardar a sociedade a reger a aplicação da pena, devendo esta ser proporcional ao mal cometido e à necessidade de prevenir factos da mesma natureza. Sobre o princípio da proporcionalidade, escreveu Beccaria o seguinte: “Em ordem a evitar que a punição seja um ato de violência cometida por uma pessoa ou muitas contra um cidadão, é essencial que seja pública, rápida, necessária, se restrinja ao mínimo possível segundo as circunstâncias, proporcional aos crimes, e prevista na lei” (BECCARIA, 1998, 163).
vi) Sobre a garantia de igualdade na realização da justiça penal e sobre a punição dos nobres, refere Beccaria: “Quais serão então as penas adequadas aos delitos dos nobres, cujos privilégios constituem em grande parte as leis das nações? Não examinarei aqui se esta distinção hereditária entre nobres e plebeus é útil num governo ou necessária na monarquia, se é verdade que constitui um poder intermédio, que limite os excessos dos dois extremos. […] Limitar-me-ei só às penas respeitantes a esta categoria, afirmando que devem ser as mesmas para o primeiro e para o último dos cidadãos. Cada diferença, quer nas honras, quer nas riquezas, para que seja legítima, supõe uma anterior igualdade baseada nas leis, que consideram todos os súbditos igualmente dependentes delas. Deve supor-se que os homens que tenham renunciado ao seu despotismo natural tenham dito: que aquele que for mais diligente tenha maiores honras, e a sua fama resplandeça nos seus sucessores; porém que aquele que é mais feliz ou mais honrado tenha mais esperança, mas não receie menos do que os outros violar aqueles pactos que o elevaram acima deles […] Estes decretos não destroem as vantagens que se supõem produto da nobreza e suprimem os seus inconvenientes; tornam as leis terríveis, barrando todos os caminhos para a impunidade. A quem dissesse que a mesma pena dada ao nobre e ao plebeu não é realmente a mesma devido à diferença de educação, pela infâmia que se derrama sobre uma ilustre família, responderei que a sensibilidade do réu não é a medida das penas, mas o dano público é tanto maior, quanto mais favorecido é quem o faz; direi que a igualdade das penas só pode ser extrínseca, sendo naturalmente diversa em cada indivíduo; direi que a infâmia de uma família pode ser apagada pelo soberano com demonstrações públicas de benevolência para com a inocente família do réu. E quem não sabe que as formalidades exteriores são boas razões para o povo crédulo e admirador?” (BECCARIA, 1998, 105-107).
vii) Interessa sublinhar a importância que adquire no pensamento de Beccaria aseparação entre o Estado (o direito) e a moral. Num período da justiça criminal em quea religião e a moral colonizavam a justiça penal, e em que o crime era sinónimo de pecado, Beccaria chega à conclusão fundamental de que a lei não deve servir “paracontrolar as opiniões dos homens ou para punir meras violações morais”, mas para prevenir e punir manifestações evidentes de danosidade social (FARIA, 2015, 196; COSTA, 2015, 210).
viii) Ainda de acordo com Beccaria, a justiça deveria ser administrada pelos tribunais de forma rápida e certa, com base no princípio da separação dos poderes: “Um dos maiores travões aos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade […] A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade” [falta referência]. Beccaria defende ainda a publicidade da justiça e a ideia de que a ninguém deve ser permitido autoincriminar-se.
5 – Portugal foi pioneiro na humanização penal (CUNHA, 2011, 26), tendo o pensamento de Beccaria encontrado eco no espaço jurídico penal português através do pensamento de Pascoal de Mello Freire, autor de um projeto de Código de Direito Criminal (1789) e das Institutiones Iuris Criminalis Lusitani, que refletem as ideias de Beccaria, consagrando “o princípio da legalidade, imputando à pena uma finalidade preventivo-geral e procurando limitar o possível arbítrio do julgador através das penas fixas, em muitos casos, da proibição da analogia e da interpretação extensiva no âmbito da incriminação” (CARVALHO, 1985, 57). Faria Costa qualificou a sua obra como uma “moderníssima obra de referência” e como “manifesto de garantismo” (COSTA, 1998, 91), e Figueiredo Dias designa Pascoal de Mello Freire como o maior arauto da Ilustração penal em Portugal, autor de um projeto de Código de Direito Criminal que não chegou a entrar em vigor e sobretudo de uma obra doutrinal de valia, as já referidas Institutiones Iuris Criminalis Lusitani, em que é particularmente visível a influência de Beccaria (DIAS, 2019, 77, § 44).
6 – Apesar dos exageros preventivos a que conduziu o pensamento de Beccaria, e que foram denunciados pelo humanismo idealista e pela Escola Clássica do Direito Penal, as suas ideias, a sua preocupação com a felicidade do cidadão (COSTA, 2015, 92) e a defesa intransigente da sua dignidade no domínio penal tornaram-no um vulto fundamental da história da civilização ocidental, pois, como escreveu Oscar Wilde, em Aforismos ou Mensagens Eternas, “quando revemos a história ficamos infinitamente mais chocados com a crueldade dos castigos que aplicaram os bons do que com os crimes que os maus cometeram”, e uma comunidade pode ser infinitamente mais brutalizada pelo emprego habitual da pena do que pela ocorrência ocasional de crimes. A terminar, lembramos a frase com que Beccaria conclui Dos Delitos e das Penas: “De quanto se viu até agora pode deduzir-se um teorema geral muito útil, mas pouco conforme ao uso, que é o mais vulgar legislador das nações: para que toda a pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão particular, deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a mais pequena possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos delitos, fixada pelas leis” (BECCARIA, 1998, 163).
Bibliografia
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