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    Bíblia

    Fotografia: Bernardes Franco

     

    Não é fácil falar de direitos humanos na Bíblia, antes da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. Esta declaração é uma recolha dos direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo no que diz respeito aos direitos políticos, religiosos e civis. Era natural que, depois de duas guerras mundiais, e em pleno séc. XX, a humanidade acordasse para um novo e mais perfeito estilo de vida, tanto a nível nacional como internacional. Esta Declaração foi um passo gigantesco da Humanidade na dignificação da pessoa e dos seus direitos básicos. Apesar disso, são ainda muitas as situações em que os direitos humanos não são minimamente respeitados, mesmo quando determinados Estados subscrevem a referida declaração. Para que esta chegasse a bom termo, muito contribuíram as novas ciências sociais e humanas, assim como a filosofia e a teologia, que conduziram a uma nova antropologia. Os estudos bíblicos, sobretudo a partir de meados do séc. XX, também deram o seu importante contributo, pois tiveram em conta as novas descobertas dos povos vizinhos do povo da Bíblia. Por exemplo, nos mitos de criação, onde os seres humanos saem plenamente iguais das mãos do Deus criador.

    Ora, é sobretudo na base da antropologia, e sobretudo da antropologia bíblica e teológica, que vamos apresentar os princípios básicos, que não justificam apenas a referida Declaração, mas são também os fundamentos dos direitos de qualquer pessoa. Deste modo, o tema dos direitos humanos na Bíblia, ou melhor, da sua fundamentação, pode ser desenvolvido nos itens seguintes:

     

    Fundamentação bíblica a posteriori. Não há dúvida que o fundamento dos direitos humanos deve procurar-se, antes de mais, na Bíblia, já que esta é, talvez, a raiz fundamental da civilização do Ocidente cristão, mais ainda do que as culturas greco-latinas anteriores ao cristianismo. Foi este que promoveu a igualdade radical de todas as criaturas humanas, devido à paternidade divina universal, como centro do Evangelho. Isto não significa que determinados textos bíblicos, em favor dos pobres e deserdados da sorte, não tivessem fomentado, desde o início do cristianismo, e já no Antigo Testamento, os direitos humanos mais basilares.

    Vários autores, ao pretenderem fundamentar os direitos humanos, atualmente em vigor, investigaram na legislação bíblica tais fundamentos, sobretudo na legislação em favor dos mais pobres, no sentido amplo que este termo tem na Bíblia. Assim, poderíamos elencar os seguintes temas: Libertação da escravidão: Ex 1-15; Lv 25, 39-55; 1 Cor 7, 22; Gl 4, 21-27; 5, 1.13. Proteção da vida: Rt 4, 5. Proibição de tirar a vida a alguém: Ex 23, 7; Lv 19, 13-17; Dt 5, 17; Sl 109; Pr 17,15. Amor aos pobres: Ex 22, 22-23; Lv 25, 35; Dt 15, 11; Mq 2, 1-5; Zc 7, 9-10; Lc 10, 25-37. Obrigação de repartir pelo mais pobre: Pr 21, 13; Is 58, 6-8. Não discriminar os mais pequenos da sociedade: Pr 14, 21; 21, 10; Sb 5, 3-5; Is 18; 56, 3-7; Jr 22, 3-4; 1 Jo 3, 14-15. Direito do pobre à justiça: Dt 1, 16; 16, 18-20. Direito à alimentação: Ex 23, 10-11; Pr 25, 21; Is 55, 1-5; Mt 10, 42; Mc 8, 1-10; Lc 1, 53.

    No entanto, este modo de avaliar os direitos humanos não conduz a uma verdadeira noção dos mesmos, já que não se trata de um argumento apodítico, mas de uma prova simplesmente apologética, que pretende dar razão dos mesmos, e não propriamente defini-los e fundamentá-los. Por outro lado, tradicionalmente, utilizam-se argumentos mais do Antigo do que do Novo Testamento – como se vê nas citações acima –, o que prova ainda menos, dado que o Novo Testamento é o aperfeiçoamento do Antigo. De facto, as provas dos direitos humanos deveriam procurar-se sobretudo no Novo Testamento e não no Antigo, já que no Novo se encontram fundamentos mais evidentes. Além disso, o Antigo Testamento, mais que apresentação de direitos, aponta preceitos, obrigações a cumprir. Deste modo, os direitos são formulados negativamente, isto é, de modo indireto.

    Não há dúvida que o Novo Testamento apresenta mais provas sobre os direitos humanos do que o Antigo, como veremos abaixo. Uma antropologia bíblica – que é a melhor base dos direitos humanos – poderá manifestar a verdadeira razão de ser dos mesmos, porque dá-nos as razões mais profundas da dignidade da pessoa, único fundamento dos direitos humanos. Tais direitos fundamentam-se claramente em temas como ética, dever, lei, justiça, etc. Aliás, o concílio Vaticano II apresenta muitos textos referentes aos direitos humanos, supondo – e mesmo referindo – a fundamentação bíblica dos mesmos. A própria constituição Gaudium et Spes não aprofundou a fundamentação bíblica dos direitos humanos, quedando-se pelas provas mais de caráter teológico.

    Portanto, passamos agora a apresentar os argumentos bíblicos positivos, que provam, realmente, que toda a pessoa humana é sujeito de direitos.

     

    O ser humano criado à imagem de Deus (Façamos o homem à nossa imagem: Gn 1, 26). A Gaudium et Spes do concílio Vaticano II fundamenta os direitos humanos no tema bíblico da imagem de Deus: “A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado ‘à imagem de Deus’, capaz de conhecer e amar o seu Criador e, por este, constituído senhor de todas as criaturas terrenas, para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus” (GS 12, 3).

    O facto de os seres humanos – homem e mulher – serem “imagem de Deus” entende-se sobretudo no sentido em que, no mundo, eles têm a incumbência de orientar a criação para um aperfeiçoamento cada vez maior da mesma e de se servirem dela para louvar o Criador de todas as coisas. De facto, os humanos foram criados de um modo muito especial: depois de ter criado todas as “coisas”, Deus declara solenemente, num plural majestático: Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança… (Gn 1, 26-27; ver 5, 1.3; 9, 6).

    Isto significa que o homem e a mulher são criados como seres peculiares: não como coisas, como “algo”, mas como um alguém muito especial, como pessoas responsáveis, livres, a quem Deus entregou a sua criação. Por isso, apenas os seres humanos têm a capacidade de fazer subir o louvor de todas as criaturas ao seu Criador; e apenas o ser humano foi investido de um “sopro” (ruah) divino na sua criação (Gn 2, 7). Ser imagem de Deus, na Bíblia, não é uma pura metáfora, já que significa a presença de Deus, na sua própria imagem. Ser “imagem” é ainda ser “delegado” de Deus na sua criação. Portanto, a vida humana foi concebida como uma misteriosa relação com o Criador, sobretudo, para tornar “visível”, no mundo criado, a face de quem criou todas as coisas.

    Este aperfeiçoamento do mundo, como tarefa dos seres humanos, torna-se, por sua vez, fonte de outros direitos, na medida em que os progressos das ciências naturais e sociais, por exemplo, se estendem a todas as sociedades, tornando-se fontes de outros direitos; por exemplo, combatendo e aliviando doenças, humanizando o trabalho e tornando as sociedades cada vez mais fraternas.

    Portanto, se todos os seres humanos foram criados, igualmente, “à imagem de Deus”, isso significa que todos são sujeitos dos mesmos direitos e dos mesmos deveres, sem diferenças de raça, sexo, religião, etc. Mas a expressão bíblica “imagem de Deus” tem ainda uma outra consequência: o ser humano deve tratar do progresso material do mundo que o Criador entregou nas suas mãos; mas deve, sobretudo, construir a sua própria identidade em relação Àquele de quem é “imagem”, assim como em relação aos outros como “imagens” de Deus, o que tem consequências no agir de todo o ser humano. Portanto, esta relação com o divino é um dos fundamentos mais válidos dos direitos da pessoa humana. Este princípio, bebido na teologia do Antigo Testamento, é reforçado por um outro, do Novo Testamento:

     

    Do homem-imagem-de-Deus ao homo christianus. Este tema relaciona-se com o chamado antropocosmismo bíblico, no sentido cristão mais profundo, já que o Deus criador colocou o ser humano no centro do universo, uma espécie de vice-rei do próprio criador do mundo.

    Mais ainda, com a encarnação do Verbo eterno em Jesus Cristo (Jo 1, 14), o Verbo criador (Gn 1, 1–2, 4a) tornou-se também o Verbo redentor e salvador do homem decaído. De facto, Ele desceu ao coração da Humanidade, para elevar cada ser humano à condição de Filho de Deus. Deste modo, a relação do ser humano com Deus passou a ser uma relação filial, tipificada na oração do Pai-nosso (Mt 6, 9-13; Lc 11, 2-4).

     

    A descida do Verbo Deus ao seio da Humanidade, base da dignidade fundamental da pessoa. Para além de declarar a relação filial da pessoa humana com Deus, o Filho eterno do Pai desceu ao meio da Humanidade, assumindo mesmo a sua natureza, tornando-se, assim, também “pessoa” humana. Desceu de maneira total e perfeita ao mundo dos humanos, a ponto de São Paulo declarar que Ele desceu à condição de escravo, recebendo a morte dos escravos, numa cruz, depois de ter prescindido dos privilégios da condição divina, isto é, de não sofrer nem morrer (Fl 2, 6-8).

    Deste modo, a “descida”, a katábase do Verbo, ao descer à natureza humana, e assumindo-a, produziu, por esse mesmo facto, a anábase, a “subida”, a dignificação da pessoa humana, não apenas em cada ser humano, individualmente considerado, mas também da própria natureza humana em si mesma. Deste modo, poderíamos afirmar que se encurtaram as distâncias entre o divino, ou transcendente, e o humano, ou imanente. Na perspetiva cristã, o ser humano recebeu um valor incalculável, desde que Cristo ressuscitado assumiu, em si mesmo, tudo o que é humano, espiritualizando-o, divinizando-o, de algum modo. Este foi e é o ponto mais elevado, ao qual pode aspirar a natureza humana e, portanto, também a fonte bíblica por excelência dos direitos humanos.

    Sendo Jesus a verdadeira imagem de Deus, é na união com Ele que podemos atingir a mais alta dignidade, não apenas na dimensão dos direitos humanos, mas também na dimensão espiritual da filiação divina (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15s; Heb 1, 3).

     

    A vida, dom de Deus e direito de todo o ser humano. Este princípio decorre do que antes considerávamos e, no Antigo Testamento, é formulado negativamente no Decálogo: Não matarás (Ex 20, 13; Dt 5, 17). Se Deus criou o ser humano para a vida (Gn 1, 1–2, 4a; 2, 4b-25), esta não é apenas um direito humano, mas é sobretudo um “direito divino”, porque foi Ele que a criou e no-la entregou como o dom mais precioso. Mas este dom tinha em vista, não apenas a comunhão entre os seres humanos, mas sobretudo entre estes e Deus. Por isso, este dom gratuito de Deus não é um simples presente que Ele colocou em nós, pois também arrasta consigo duas consequências importantes: por um lado, o louvor ao Criador da vida e, por outro, a responsabilidade de respeitar a vida do próximo. Daí a insistência do Antigo Testamento na preservação da vida do outro, como um dever, não apenas em relação ao próximo, mas sobretudo, para com Deus, único Senhor da vida.

    Não há dúvida que o Decálogo, neste aspeto, adiantou-se a todas as declarações modernas sobre o direito sagrado à vida, assim como à solidariedade e dignidade da pessoa.

     

    A aliança de Deus com o seu povo. Este é um outro princípio teológico, de caráter positivo, que fundamenta, biblicamente, os direitos da pessoa humana. Se o próprio Deus, já no Antigo Testamento, ofereceu a sua aliança ao povo (aliança unilateral), que reuniu em torno de si no monte Sinai, então este povo e todas as pessoas que o integram recebem uma dignidade muito especial, mesmo divina, diríamos.

    Podemos dizer que, depois do ser humano como imagem de Deus, o pilar fundamental dos direitos humanos é o tema da aliança. Passamos, assim, do Deus criador para a teologia do Deus libertador do povo (Ex 3, 7-12). De facto, a libertação do povo do Egito tem no Sinai a sua finalidade; isto é, podemos dizer que a libertação do Egito acontece em função da aliança do Sinai, pois Deus não faria uma aliança com um povo escravo, já que só na liberdade se pode fazer, validamente, qualquer contrato ou aliança. Além disso, esta aliança é oferecida pelo resgatador ao resgatado: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão. Não haverá para ti outros deuses na minha presença.” (Ex 20, 2-3)

    O resgatador/redentor apresenta-se e, para fazer a aliança com o redimido da escravidão, coloca apenas uma exigência: que Israel não tenha outro Deus para além daquele que o resgatou. É o mínimo que se pode pedir, numa aliança de caráter bilateral. Israel, ao aceitar esta cláusula da aliança, não fica escravo de Deus, mas, pelo contrário, servindo unicamente a Deus, acentua a sua liberdade, já que Ele é o Deus da liberdade, que liberta de todas as escravidões, depois de ter criado os seres humanos como pessoas livres (Gn 2-3). Deste modo, o código legislativo do Decálogo torna-se um escudo protetor da santidade de Deus e, ao mesmo tempo, protetor da justiça e da dignidade da pessoa. Aliás, por ser uma aliança de um povo inteiro com o seu Deus, ela torna-se uma garantia de igualdade entre todos os membros do povo, sobretudo dos mais pobres e injustiçados. O profeta Amós é um exemplo bem conhecido desta temática.

    Mas a aliança do Antigo Testamento não foi apenas confirmada pelo Novo, mas muito mais aprofundada e ampliada, já que toda a Humanidade – sem exceção de raças ou religiões – foi redimida pelo sangue de Cristo, qual cordeiro pascal, libertador da pessoa, não de simples peias externas, mas das escravidões, que têm as suas raízes no coração humano (Mt 5, 21-48).

    Numa palavra, em Cristo encarnado, Deus fez uma aliança com toda a humanidade, concluída no sangue de Cristo, seu Filho feito homem. Deste modo, o Evangelho tornou-se a Magna Carta dos direitos humanos, “subscrita” com o sangue de Cristo na cruz. Assim, o Deus da criação de pessoas livres é o mesmo que, pelo Filho, veio oferecer ao mundo a libertação total, a fim de que todos vivam como irmãos.

     

    Reino de Deus e direitos humanos. Com a encarnação do Filho de Deus, foi iniciado o novo Reino de Deus no mundo. Desde aí, o Filho de Deus está misteriosamente presente, mas o seu Reino só será inteiramente implantado, antes da sua última vinda. Todos os seres humanos são chamados a participar no Reino de Deus, mas os cristãos, sobretudo, devem empenhar-se em levá-lo à maior perfeição possível (GS 45, 1). O Reino de Deus tem, assim, um berechit (princípio), um epafax (manifestação) e um eschaton (fim dos tempos). Ora bem, se no berechit, os seres humanos foram criados com os mesmos direitos e à imagem de Deus, no eschaton, estão chamados a participar plenamente no mesmo Reino de Cristo, “pois é necessário que Ele reine até que tenha colocado todos os inimigos debaixo dos seus pés” (1 Cor 15, 25).

    Este reinado de Cristo consiste na correção das realidades humanas, chamadas a um dinamismo de perfeição cada vez maior, tornando, assim, Deus presente de modo cada vez mais claro no mundo. A Igreja de Cristo é o “fermento” deste Reino em permanente transformação e aperfeiçoamento. O seu papel é precisamente estar ao serviço deste Reino e torná-lo presente em todas as sociedades, mediante o anúncio do Evangelho e o testemunho vivencial da mensagem do mesmo. Este dinamismo do Reino realiza-se, pois, na construção de uma sociedade cada vez mais igualitária, de modo a realizar a fraternidade evangélica, fonte e realização de todos os direitos humanos. Os textos evangélicos vão diretamente ao problema, a começar pelo sermão inaugural, programático, da missão de Jesus em Nazaré, todo ele voltado para os excluídos da sociedade e prisioneiros de toda a espécie de escravidão (Lc 4, 16-21). Este programa concretizou-se, posteriormente, no Sermão da planície e da montanha (Lc 6, 20-49; Mt 5–7, respetivamente), assim como nas chamadas “parábolas do Reino” (Mt 13), na do bom samaritano (Lc 10, 25-37), etc.

    Segundo esta doutrina, Jesus manifesta aos seus discípulos que veio ao mundo para se colocar ao serviço dos pobres, e este será, portanto, um dos princípios hermenêuticos de interpretação da sua mensagem evangélica, assim como da sua própria encarnação. Ora bem, estes princípios fundamentais do Evangelho foram recebidos pelos primeiros discípulos, de tal modo que se plasmaram na vida das primeiras comunidades cristãs, como aparece em At 2, 42-47: “Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações. Perante os inumeráveis prodígios e milagres realizados pelos Apóstolos, o temor dominava todos os espíritos. Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e tinham a simpatia de todo o povo.”

     

    Direitos humanos e solidariedade. Estas duas realidades implicam-se mutuamente, já que, quando falta a fraternidade evangélica, radicada no Pai-nosso, não há solidariedade, e quando esta última faltar, estão certamente em causa os direitos humanos. E, certamente, quando os direitos humanos não são respeitados, a “imagem de Deus”, impressa em cada ser humano, também não é vista nem respeitada. Nesse caso, os direitos humanos caem por terra, como acontece em muitas situações nacionais e internacionais, ainda hoje; isto é, uns comem tudo e os outros morrem de fome; uns gastam somas imensas para fazer armas, enquanto os mais pobres morrem de fome. Caindo por terra a lei da solidariedade, cai todo o edifício político-social em que vivemos. Segundo S. Paulo, qualquer tipo de sociedade deveria constituir um só corpo com muitos membros: “O corpo não é composto de um só membro, mas de muitos (…). Não pode o olho dizer à mão: “Não tenho necessidade de ti”, nem tão pouco a cabeça dizer aos pés: “Não tenho necessidade de vós”. Pelo contrário, quanto mais fracos parecem ser os membros do corpo, tanto mais são necessários, e aqueles que parecem ser os menos honrosos do corpo, a esses rodeamos de maior honra, e aqueles que são menos decentes, nós os tratamos com mais decoro; os que são decentes, não têm necessidade disso. Mas Deus dispôs o corpo, de modo a dar maior honra ao que dela carecia, para não haver divisão no corpo e os membros terem a mesma solicitude uns para com os outros. Assim, se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros; se um membro é honrado, todos os membros participam da sua alegria.” (1 Cor 12, 14-26) Portanto, só uma sociedade inspirada no Evangelho, com espírito cristão, terá capacidade (material e sobretudo espiritual) para respeitar plenamente os direitos de cada um dos seus membros em particular.

     

    Em conclusão, segundo a palavra de Deus que está na Bíblia, todo e qualquer ser humano é extremamente valioso aos olhos de Deus, não apenas pelo modo, muito especial, da sua criação (Gn 1, 26ss.), mas também pela redenção de Cristo operada em favor de toda a Humanidade. Devido sobretudo a estes dois fatores, a dignidade da pessoa humana não é mensurável pelas leis humanas, mas apenas pelo olhar divino, devido à sua condescendência (synkatábasis), em favor de todas as pessoas da história humana. Numa palavra, os seres humanos são portadores dos direitos de que o próprio Criador os dotou, enquanto destinatários originais do seu amor misericordioso, tanto no próprio ato criador, como na sua condescendência divina, na redenção operada por Cristo.

    Portanto, para Deus, todo o ser humano está dotado de igual dignidade, independentemente do lugar que ocupe na sociedade ou das suas qualidades pessoais. Mais ainda, os “pequenos”, segundo os critérios humanos, são os preferidos, os mais valorizados aos olhos de Deus. Por esse motivo, deveriam ser também os preferidos pelas sociedades humanas. É deste princípio bíblico que deve deduzir-se um comportamento humanizante em favor de povos e de camadas sociais mais desprotegidas e, socialmente, mais desvalorizadas. Tal atitude é uma incumbência sobretudo dos cristãos, a quem compete estar mais vigilantes no cumprimento deste princípio bíblico. Por último, devemos afirmar, com um autor credenciado: “A última instância dos direitos humanos não se encontra exclusivamente na natureza espiritual do ser humano, nem em ser ‘imagem de semelhança’ de Deus. A base última destes direitos encontra-se na cristologia, isto é, no facto de que Cristo amou e se entregou por cada um dos seres humanos, que povoam e hão de povoar este mundo. De modo particular, os direitos dos mais marginalizados e débeis têm a sua justificação na misteriosa identificação de Cristo com eles.” (VARELA, 2001: 48)

    Por todos estes motivos, eliminar a vida humana ou não respeitar os direitos de cada pessoa constitui um grave atentado, não apenas contra tais pessoas, mas também e sobretudo contra o Criador e Redentor da vida. Torna-se, assim, um crime contra a humanidade, mas também um grave atentado contra a divindade.

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    VARELA, A. (2001). Los Fundamentos de los Derechos Humanos: Una Questión Urgente. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas [34-37; 59-61].

     

    Herculano Alves, ofmcap

     

    Como citar:

    Alves, H. (2022-2023). “Bíblia”. In J. Franco, P. Jerónimo, S. Alves-Jesus, T. Moreira (coords.). Dicionário Global dos Direitos Humanos. https://dignipediaglobal.pt/dicionario-global/biblia-2 [ISBN: 978-989-9012-74-5]

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