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    Biodireito

    Enquadramento sociológico e da medicina antes do nascimento da bioética

    O biodireito (ou, segundo a terminologia anglo-saxónica, biolaw) surge como uma resposta do Estado legislador aos impulsos resultantes de dilemas éticos suscitados pela medicina, ciência e biologia, aplicada ao tratamento do ser humano. Apresenta, por isso, uma relação íntima com a bioética, sendo, metaforicamente, “duas faces da mesma moeda”. Foram os gritantes atropelos da ciência e da medicina aos direitos dos doentes que impeliram a construção de um acervo principiológico, de cariz axiológico e ético, que estribasse a experimentação científica em limites consentâneos com a dignidade humana e com o primado do ser humano. São exemplos deste facto as Diretrizes para Novas Terapêuticas e Pesquisa em Seres Humanos, o Código de Nuremberga e a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (Convenção de Oviedo).

    O deslumbre do cientista e do médico com o progresso científico e tecnológico fez com que a sua atuação não conhecesse barreiras ou limites éticos que colocasse no centro das suas atividades, o bem-estar do doente, dando primazia ao avanço da própria ciência. Importava avançar nas descobertas, progredir na tecnologia e analisar, em todo o seu esplendor, os resultados de experimentações inovadoras no organismo humano. A preocupação não era tanto o “curar” ou “tratar” o doente, debelando a doença, mas sim conhecer todos os sintomas da doença e conhecer a doença em profundidade, ainda que à custa do doente. O caso do desastre de Lubeck e o Tuskegee Syphilis Study são exemplos negativos que ecoarão para sempre no mundo da ciência e da medicina. Por outras palavras, a ambição em alcançar novas fronteiras para a biomedicina propiciadas pelo “deus da ciência” era a mentalidade do cientista dos “tempos modernos”, e os “fins justificavam os meios”. A mentalidade vigente era a de aceitação da subalternização do bem-estar do ser humano e a inexistência do conceito de “direitos humanos”, em prol de novas descobertas que representariam o futuro da humanidade.

    A tomada de consciência dos abusos cometidos contra o ser humano chocou a comunidade internacional, tendo conduzido a uma mudança sociológica e de mentalidades, na segunda metade do século XX, preconizada pelos pioneiros da bioética (RIVABEM, 2017, 284). Mais recentemente, em finais do século XX e no início do século XXI, nasceram novas preocupações, designadamente com a autonomia do doente, o respeito pela sua vontade, a salvaguarda da sua dignidade e a universalização da saúde enquanto bem da humanidade, com o bem-estar animal, com o respeito pelo equilíbrio do meio ambiente e com a sustentabilidade dos recursos ambientais.

     

    Conceito de “biodireito”: distinção clássica entre bioética e biodireito

    O biodireito consiste num acervo de normas jurídicas que têm por finalidade tecer o enquadramento jurídico-legal dos dilemas bioéticos gerados pelas disruptivas revoluções da biologia, biotecnologia, tecnologia na medicina (e.g., telemedicina ou novas terapêuticas e farmacologia) e inteligência artificial, constituída pelos robots-avatares, algoritmos, Internet of things, Bbig data e robótica cirúrgica.

    A bioética precede o biodireito. Este tem por missão dar uma resposta jus-normativa, por parte do legislador, aos desafios e problemas que vão surgindo à medida que a biotecnologia, inteligência artificial e o progresso tecnológico se impõem na comunidade. A bioética oferece, como contributo, uma vasta principiologia que deve nortear a atividade médica e a experimentação científica em pessoas e animais, como, designadamente, o princípio do primado do ser humano, o princípio da autonomia (consentimento livre, esclarecido e informado), o princípio da beneficência, o princípio da não maleficência e o princípio da justiça social e distributiva. A bioética constitui o pilar dos valores éticos aplicados à medicina e à biologia. O biodireito constitui o pilar normativo que deve disciplinar e reger a medicina e a experimentação científica. Ambos são indissociáveis um do outro, sendo que o segundo resulta do desenvolvimento do primeiro.

    O direito aplicado ao âmbito da vida e da atividade médica e científica revela-se determinante para constituir condicionamentos e limites, os quais, sendo violados, por ação ou por omissão, conduzem à aplicação de sanções civis ou, no pior dos casos, de sanções penais aos seus infratores.

    A tecnologia, pese embora represente, na maioria das situações, uma contínua melhoria das condições de vida e sanitárias da população, suscita, quando desprovida de limites éticos e jurídicos, problemas fraturantes na sociedade.

    A ética – princípios e valores – na medicina, na biologia e na ciência é denominada de “bioética”. O acervo de normas jurídicas positivadas aplicadas a essas atividades granjeia a designação de biodireito.

     

    Situações da vida suscetíveis de se enquadrar no âmbito de aplicação do biodireito

    Existe uma significativa franja de autores que pugnam pelo reconhecimento do biodireito como ramo autónomo do Direito, atendendo ao vasto lastro de situações complexas já existentes e vislumbrando-se a imensidão de dilemas que a inteligência artificial e novos conceitos sociológicos, como os relativos ao “género” e aos novos entendimentos de “família”, trarão à sociedade. Quanto a este último, a Lei de Procriação Medicamente Assistida é deste facto prova cabal. A questão sobre a constitucionalidade (ou inconstitucionalidade), legalização ou não, da gestação de substituição (na expressão pouco feliz “barrigas de aluguer”) é um caso paradigmático dos desafios que estão no horizonte legislativo em Portugal. Saliente-se que a própria denominação não é passível de críticas: inicialmente, a terminologia era “maternidade de substituição”, mas, de acordo com o entendimento sufragado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, foi realizada a destrinça entre “maternidade” e “gestação”. Ser mãe vai muito mais além do que ser a (“mera”) gestante do bebé por nascer. Implica amor e afeto, vínculo especial e único, eterno, entre a mãe e o seu filho. A mulher que “carrega o bebé” não estabelece uma tal relação de afeto. Esta, pelo menos, é a posição da supracitada entidade reguladora, em parecer.

    Está demonstrado que há laços que se criam entre a gestante e o bebé, mas optamos por não nos alongarmos neste aspeto polémico. Daí que a terminologia adotada pela Lei de Procriação Medicamente Assistida (Lei PMA) tenha sido “gestação de substituição”. A gestação de substituição encontra-se já prevista na Lei PMA (lei n.º 32/2006, de 26 de julho, na versão mais atualizada dada pela lei n.º 90/2021, de 16 de dezembro), no art. 8.º. Nos termos do n.º 1 deste preceito, “Entende-se por «gestação de substituição» qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade”. No entanto, foi declarada a sua inconstitucionalidade pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2019, com fundamento na violação do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos e porque a lei não contempla um período após o parto, durante o qual a gestante poderia mudar de ideias (direito ao arrependimento).

    Outro caso muito recente é o do primeiro nascimento na Europa (Espanha), a 30 de outubro de 2023, de um bebé de duas mulheres, através do método Invocell. De acordo as notícias divulgadas, esta técnica consiste em “colocar no colo do útero de uma das duas mulheres um dispositivo que funciona como uma espécie de incubadora. Posteriormente, o embrião desenvolve-se nos primeiros dias e, uma vez desenvolvido, os médicos extraem-no para o implantar no útero da parceira. É permitido que o desenvolvimento do embrião seja compartilhado entre duas mulheres, para que o casal possa conceber o seu filho”.

    Técnicas como a “clonagem, a reprodução assistida, o aborto, o suicídio assistido, a eutanásia, a pesquisas em seres humanos, a proteção do meio ambiente”, vieram exigir uma regulamentação legal (OLIVEIRA, 2018, 22-23). Também a inteligência artificial vai constituir, num futuro muito próximo, o grande desafio para o legislador e para o próprio profissional de saúde. As academias de ensino de Medicina e de Enfermagem vão ter de repensar os seus curricula de modo a adaptar a ars medica ao “admirável mundo novo”.

    O próprio perfil pessoal e, sobretudo, os perfis psicológicos adequados para o médico e enfermeiro terão de ser “construídos” e selecionados à luz das novas tendências da biologia, genética e tecnologia. O direito à objeção de consciência será um aspeto-chave. Teremos a necessidade de um “médico-engenheiro”, de forma a tratar o seu doente à luz da inovadora legis artis ad hoc medicinae? Seguramente, o profissional de saúde vai ter de se reinventar e de se adaptar, sob pena de se tornar obsoleto. Mas não só. O próprio legislador vai ter de revelar capacidade para acompanhar ou antecipar a “nova ars medica” e científica, com normas ponderadas que assegurem a segurança e a tranquilidade social, com o cuidado de salvaguardar as liberdades individuais e de escolha de cada um, sem que seja colocada em risco a coesão da sociedade como um “todo”, que se quer em harmonia e em solidariedade, com a salvaguarda absoluta da dignidade humana.

    Em virtude da miríade infindável de desafios bioéticos que se avizinham, defendemos o reconhecimento do biodireito como novo ramo jurídico perante a revolução tecnológica na medicina. O legislador terá de se munir de conhecimentos especializados em matéria de bioética, auscultando as entidades reguladoras Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, assim como as respetivas ordens profissionais dos profissionais de saúde, e, acima de tudo, escutando os ensejos da sociedade civil.

    O legislador do biodireito terá de ser o farol para o caminho para onde a sociedade se deverá encaminhar, assegurando o cumprimento dos direitos humanos.

    Bibliografia

    Impressa

    AZEVEDO, M. A. (2010). “Origens da bioética”. Nascer e Crescer – Revista do Hospital de Crianças Maria Pia, 19 (4), 255-259.

    MELO, H. (2008). Manual de Biodireito. Coimbra: Almedina.

    NUNES, R. (2017). Ensaios em Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina.

    NUNES, R. (2022). Healthcare as a Universal Human Right. Sustainability in Global Health. London/New York: Routledge.

    POTTER, V. R. (2016) Bioética: Ponte para o Futuro. Trad. D. C. Zanella. São Paulo: Loyola.

    SCHRAMM, F. R. (2008). “Bioética da proteção: Ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização”. Revista Bioética, 16 (1), 11-23.

     

    Digital

    GOMES, J. (2008). “Os novos desafios da bioética e do biodireito – Ou o que resta da ética (??!!)”. Revista Julgar, 4, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/05/07-Joaquim-Gomes-bio%C3%A9tica-biodireito.pdf (acedido a 01.11.23).

    MALUSCHKE, G. (2009).“A bioética e o biodireito: Aspectos e controvérsias”. Revista Jurídica da FA7, VI (1, abr.), 53-64, https://periodicos.uni7.edu.br/index.php/revistajuridica/article/view/234 (acedido a 01.11.23).

    OLIVEIRA, R. (2018). O Biodireito e Seus Princípios. Tese para efeitos de obtenção de grau de bacharel em Direito apresentada ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais de Volta Redonda, Universidade Federal Fluminense, Volta Redonda, texto policopiado, https://oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UFF-2_6d9a5e9819281d218184fd276933518f (acedido a 01.11.23).

    RIVABEM, F. (2017). “Biodireito: Uma disciplina autônoma?”. Revista de Bioética, 25 (2, maio-ago.), 282-289, https://www.scielo.br/j/bioet/a/vpVLjFZNxCSPhZNwcqtVpMz/abstract/?lang=pt (acedido a 01.11.23).

    SIC NOTÍCIAS (2023, 2 novembro). Nasceu primeiro bebé na Europa concebido por duas mulheres. SIC Notícias, https://sicnoticias.pt/mundo/2023-11-02-Nasceu-primeiro-bebe-na-Europa-concebido-por-duas-mulheres-cdbb8697 (acedido a 01.11.23).

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (2019). Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2019, processo n.º 829/2019, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190465.html (acedido a 01.11.23).

     

    Autora: Isa António

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