Bocage [Dicionário Global]
Bocage [Dicionário Global]
O homem e as suas circunstâncias
A sociedade que Bocage conheceu era opaca, muito hierarquizada, erigida maioritariamente em torno de uma classe: a nobreza. Eram evidentes os privilégios de que esta classe usufruía em vários domínios: a administração da Justiça, a política fiscal, o acesso ao oficialato nas forças armadas, ao exercício da governação e a outros lugares-chave da comunidade.
O Antigo Regime português estava blindado por uma polícia política que denunciava os opositores, os quais eram encarcerados se manifestassem sinais de dissensão; pela censura, que impedia a expressão de conceitos considerados imorais, anticatólicos ou suscetíveis de pôr em perigo a ordem política e social; pelo Tribunal do Santo Ofício, que vigiava a estrita observância dos princípios do catolicismo e a existência de práticas de protestantismo ou maçónicas. Além da ausência de liberdade, imperava o medo, que tolhia a população, dada a severidade das penas então infligidas – açoites públicos, as galés, o “baraço e pregão” (ou seja, a forca), a fogueira e o degredo em África ou no Couto de Castro Marim.
Situado a centenas de quilómetros das metrópoles mundiais hegemónicas, Portugal pagou caro o seu estatuto periférico: pobreza generalizada (apesar do ouro que jorrava do Brasil), uma rede rodoviária precária, forças produtivas incipientes. Culturalmente, não obstante a atividade muito meritória da Real Academia das Ciências de Lisboa – onde pontificavam, entre outros, intelectuais notáveis como o Abade Correia da Serra e o Padre Teodoro de Almeida – bem como a publicação do Jornal Enciclopédico (objeto de particular vigilância da censura) e do Paládio Português, a mencionada distância fazia-se também sentir: o analfabetismo ascendia a cerca de 90 % da população, a imprensa periódica rareava e estava condicionada, limitação esta de que padecia igualmente a atividade editorial, quer a oriunda do estrangeiro, quer a nacional. Era, portanto, manifesto o atraso existente.
Nascido em Setúbal em 1765 e falecido no ano de 1805, Bocage presenciou uma sucessão de factos históricos fraturantes: parte do consulado pombalino (1750-1777), a Revolução Americana (1776), a Revolução Francesa (1789), o imperialismo napoleónico e o início da erosão do Antigo Regime, que viria a ser derrubado com a Revolução Liberal de agosto de 1820.
Atento observador da sociedade, Bocage foi leitor assíduo dos enciclopedistas, refletindo a sua obra influências de Diderot, d’Alembert, Rousseau, Voltaire e, eventualmente, de Montesquieu. Outros próceres do Iluminismo, como o imperador da Prússia Frederico II, Lineu e Lavoisier, foram basilares para a sua formação. O escritor terá conhecido a Constituição Americana (que a Gazeta de Lisboa divulgou, em 1787) e, certamente, a Declaração dos Direitos do Homem, publicada em 1793. No domínio da literatura, é inequívoca a presença da cultura e da poesia greco-latina (Anacreonte, Ovídio, Virgílio, entre outros, que fez questão de citar e traduzir), dos clássicos portugueses (Luís de Camões, Frei Agostinho da Cruz), franceses (Racine, Molière, La Fontaine, etc.) e de outras nacionalidades (Cervantes e Tasso). Assinale-se ainda o seu profundo conhecimento de escritores portugueses da época (Pedro António Correia Garção, José Anastácio da Cunha, Filinto Elísio, Cruz e Silva, Manuel de Figueiredo, Tomás António Gonzaga, Marquesa de Alorna e António Lobo de Carvalho, dito O Lobo da Madragoa), dos libertinos franceses dos séculos XVII e XVIII, de escritores ingleses coevos, como a feminista Mary Wallstone e Alexander Pope, e do poeta italiano Aretino. A leitura das traduções e as profusas notas que acompanham a maioria dos seus textos permitem-nos inferir que estava a par das principais realizações científicas da época.
A sua adesão à Maçonaria, o convívio com relevantes intelectuais leigos e religiosos – António, Francisco e José Liberato Freire de Carvalho, o conde de São Lourenço, a Marquesa de Alorna, Joaquim de Fóios, quiçá o Padre Teodoro de Almeida, entre outros – e a frequência da boémia lisboeta (cuja componente cultural não era despicienda) propiciaram-lhe leituras clandestinas e discussões seminais sobre a natureza humana e a forma de governação mais equânime. Terá ainda tido acesso a duas obras sigilosas, que circularam pelo bas fond lisboeta e que, considerando o seu carácter altamente subversivo, provocaram a intervenção da Intendência Geral da Polícia e do Tribunal do Santo Ofício: O Reino da Estupidez e Medicina Teológica, respetivamente, de António de Morais Silva e de Francisco de Melo Franco.
Livre-pensador e heterodoxo, Bocage entrou em conflito com a sociedade, caracterizando-se o seu quotidiano pela transgressão. Na verdade, não cumpria o dever, então indeclinável, de ir à igreja regularmente, não tinha um lar próprio, pernoitando, até pouco antes de falecer, em casa de amigos, não exercia qualquer profissão e, com acompanhantes considerados pouco recomendáveis, percorria os principais locais de sociabilidade – cafés, botequins, casas de pasto e o Passeio Público –, onde a subversão germinava.
O legado de Bocage
A obra de Bocage é multímoda porquanto compreende a poesia, a tradução e o drama. Acresce ainda que o autor cultivou todos os géneros poéticos, destacando-se particularmente no soneto, na cantata, na ode e na epístola. A maioria das suas composições é de carácter lírico e constitui um marco indelével da literatura portuguesa; aquelas que apresentam um cunho interventivo, publicadas de forma sigilosa, dado o seu teor subversivo, além de serem de primeira água, permitem-nos conhecer as coordenadas e os valores vigentes. Nesses poemas, o autor insurge-se contra a menorização a que os cidadãos estavam sujeitos, denuncia preconceitos atávicos, fustiga o fanatismo, a superstição, o despotismo, não se eximindo a apresentar caminhos alternativos. Estamos em presença de uma oposição aos fundamentos do Antigo Regime, de um clamor pela observância de direitos humanos inalienáveis, que a Revolução Liberal veio a consignar, na Constituição de 1822.
Sendo Bocage um transgressor, a sua obra constituiu, naturalmente, um importante alvo dos censores, como se depreende da consulta dos seus pareceres, depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Releve-se que o escritor, mercê da proteção de José de Seabra da Silva, ministro do reino, não foi importunado pela censura até ao seu encarceramento, em 1797; em contrapartida, na sequência da sua libertação, os seus poemas foram escrutinados com particular rigor, sendo alguns cortados e outros liminarmente excluídos.
Bocage viu-se, deste modo, coagido a recorrer à autocensura, buscando a melhor forma de publicar, sem mutilações, a sua poesia, na verdade, aquele que considerava o seu capital mais precioso. Recorreu, por outro lado, à clandestinidade para assegurar a divulgação dos textos mais fraturantes.
A defesa dos direitos humanos constitui a pedra de toque dos seus poemas de intervenção. Dois são de destaque obrigatório: “A pavorosa ilusão da eternidade” e as “Cartas de Olinda e Alzira”. O primeiro, um manifesto iluminista, usufruiu de ampla recetividade por parte das classes letradas, tendo sido lido, sub-repticiamente, por membros do clero, da nobreza e da burguesia. A sua acutilância e pertinência, aliadas a uma indiscutível mestria verbal e formal, justificam o aparecimento, nos arquivos do Tribunal do Santo Ofício, de cópias, que acompanham as denúncias. Ascendem a cerca de 20. Também conhecido como “Epístola a Marília”, representa um libelo contra o fanatismo religioso, a menorização da mulher, o despotismo, a insensibilidade e o desrespeito pela Natureza, os preconceitos que eivavam a educação, o medo, tantas vezes visceral, que então tolhia os indivíduos. Exalta, por outro lado, o erotismo, a entrega recíproca dos amantes, à revelia do casamento, que, na época, era, não raras vezes, um mero contrato social, celebrado à margem dos afetos.
O poema “Cartas de Olinda e Alzira” faz jus a ser considerado o primeiro manifesto feminista português. Foi composto numa época em que o corpo era frequentemente mortificado, de forma alguma afirmado e menos ainda cantado. Estamos em presença de um diálogo mantido entre duas amigas, uma, casada, outra, adolescente, que vivenciava as primícias da sexualidade e expunha, em alvoroço, as interrogações, perplexidades e os temores que a assaltavam. Alzira, mais experiente, denuncia a forma como o catolicismo oficial interferia na educação da juventude, impondo normas que violavam direitos inalienáveis, ao agitar ameaçadoramente a ideia de pecado e instaurando o medo. E aconselha Olinda a seguir os seus sentimentos, a cumprir a voz da Natureza, desmistificando e demolindo, deste modo, preconceitos atávicos: “O que a razão desnega, não existe; / Se existe um Deus, a Natureza o of’rece; / Tudo o que é contra ela, é ofendê-lo”.
Eis um libelo contra o casamento forçado, um brado reivindicativo do direito de dispor do corpo e de reivindicar o livre-arbítrio.
Paladino do erotismo, demarcando-se claramente da pornografia, ao contrário do que alguma tradição menos avisada sustenta, Bocage volta a derrubar cadeias ancestrais que tolhiam a humanidade, em “Fragmento de Alceu, Poeta Grego”: “É lei o amor, necessidade o gosto; / Viver na insipidez é erro, é crime, / Quando amigo prazer se nos franqueia”. E na “Arte de Amar”, reitera aquela perspetiva: “Pode mais do que as leis a Natureza / Pratica o mundo só o que ela dita; Faz-se escondida enquanto a não descobrem; / Eu, subtil mestre, a descobri-la ensino. / Ah! Não me chamem críticos austeros / Dos bons costumes corruptor profano!”.
Com Bocage assiste-se à democratização da poesia. Vários escritores da época, sobretudo os membros da Academia de Belas-Letras, em textos acintosos e insultuosos, acusaram-no de dizer as suas composições em cafés, botequins e feiras, assim como no Passeio Público, para uma assistência, alegadamente, rude e insensível. Defendiam que a verdadeira poesia deveria circunscrever-se aos salões da nobreza. Ora o poeta tinha uma visão mais lata: além dos locais de sociabilidade mencionados, recitava-a, de forma vibrante, também nos salões da burguesia e da nobreza, vincando, assim, o conceito de “República das Letras”, então perfilhado pela intelectualidade iluminista. Esta preocupação de partilha e de interação cultural está igualmente presente nas profusas notas que acompanham as suas traduções, as quais dão origem a uma espécie de profícuo diálogo com o leitor.
Nos seus escritos clandestinos, Bocage mostra-se apologista de uma religião conciliadora, encarando Deus como misericordioso, mais um “compagnon de route” da humanidade do que um ente punitivo: “Oh Deus, não opressor, não vingativo / Não vibrando com a dextra o raio ardente / Contra o suave instinto que nos deste; / Não carrancudo, ríspido arrojando / Sobre os mortais a rígida sentença. / A punição cruel, que excede o crime. Há Deus, mas Deus de paz, Deus de piedade”.
Rebela-se igualmente contra a proibição da liberdade de culto, a intolerância e o fanatismo: “Que mundo é este, prezada Alzira? / Têm os homens levado o seu arrojo / ‘Té forjarem um Deus na ousada mente, / Traçar-lhe cultos, levantar-lhe templos, / Atribuir-lhes leis, que a ferro e fogo / Estranhos povos a adorar constrangem, / Imolando milhões à glória sua? / Nos lábios têm doçura e probidade / No coração o fel, a raiva: os monstros / São maus por condição, ou maus por erro?”.
O obscurantismo é também invetivado num soneto que se inspira num caso de impostura clerical: “Não te crimino a ti, plebe insensata / A vã superstição não te crimino; / Foi natural, que o frade era ladino / E experta em macaquices a beata”.
A sátira e a fábula enquadram-se numa metodologia deveras atuante, utilizada por Bocage para tornar públicos os atropelos de carácter social mais gritantes. Deste modo, foram fustigados vários tipos sociais, nomeadamente, o sector da nobreza parasitário, o clero regular e secular que vivia nos antípodas daquilo que apregoava no púlpito, a arrogância e a insensibilidade de alguns membros da classe dirigente, os avaros, os médicos charlatães e o materialismo desenfreado, retratado numa quadra antiplutocrata, intitulada “Definição do Ouro”: “Faço a paz, sustento a guerra, / Agrado a doutos e a rudes, / Gero vícios e virtudes, / Torço as leis, domino a Terra”. Relevante é a posição de Bocage relativamente ao racismo, num país que só aboliu a escravatura em 1836, expressa na fábula Os Cães Domésticos e o Cão Montanhês. Este, recusando liminarmente ser escravo dos seus semelhantes citadinos, exclamou: “‘Eu, cativo! Por que crime? / Vós, senhores! Com que jus?’ // O valentão já citado / Dá um pulo, e de repente / Ao miserável responde, / Arreganhando-lhe o dente: // ‘O nosso jus é a força, / O teu delito é a cor’. De homens pretos e homens brancos / Cuido que fala o autor”.
As margens estreitas do regime conduziram Bocage, tal como sucedera a seu pai, aos cárceres do Limoeiro. Considerado “prisioneiro de Estado”, sofreu, numa cela exígua, o isolamento estrito e viveu, durante vários meses, em condições infra-humanas. Valeram-lhe os seus amigos e algumas personalidades ligadas à governação e ao príncipe D. João, que, capciosamente, destruíram documentos comprometedores e congeminaram a melhor forma de o libertar. Tais vivências pungentes foram determinantes para a composição de dois dos seus poemas mais emblemáticos, apenas publicados, devido ao seu teor crítico e veemente, depois de falecer: “Liberdade querida, e suspirada” e “Liberdade, onde estás, quem te demora?”, composição que termina de forma lapidar: “Movam nossos grilhões tua piedade; / Nosso nume tu és, e glória, e tudo, / Mãe do génio e prazer, ó Liberdade”.
Conclusões
O universalismo da sua obra, os caminhos alternativos que propôs, o seu génio literário, a intervenção cívica multímoda e a estrénua defesa de direitos humanos inalienáveis franquearam a Bocage as portas da posteridade.
Bibliografia
BOCAGE (1969-1973). Opera Omnia. Ed. H. Cidade et al. (6 vols.). Lisboa: Bertrand.
BOCAGE (2017-2019). Obras Completas. (vol. I: Sonetos, Sátiras, Odes, Epístolas, Idílios, Apólogos, Cantatas e Elegias). (vol. II: Traduções). (vol. III: Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas). Ed. D. Pires. Lisboa: INCM.
GONÇALVES, A. (2003). Bocage ou o Perfil Perdido. Lisboa: Caminho.
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SILVA, I. F. da (ed.) (1853-1854). Poesias de Manuel Maria de Barbosa du Bocage. (6 vols.). Lisboa: António José Fernandes Lopes, 1853
PIRES, D. (2020). Bocage ou o Elogio da Inquietude. Lisboa: Imprensa Nacional.
Autor: Daniel Pires