Bodin, Jean [Dicionário Global]
Bodin, Jean [Dicionário Global]
Uma vida moderna
Nascido em Angers, entre 1529 e 1530, e tendo morrido vítima de peste em Laon, em 1596, Jean Bodin foi um intelectual moderno em pelo menos quatro aspetos: em primeiro lugar, foi um burguês da província, filho de um negociante, que apenas saiu rumo a Paris em 1545, para aí seguir estudos num convento dos Carmelitas, a que dera início num outro convento carmelita, em Angers, provavelmente por recomendação de um familiar da sua mãe. Contudo, não permanece carmelita e renuncia a todos os seus votos em 1549, optando por estudar Direito em Nantes e depois em Toulouse, estudos estes que lhe proporcionarão o essencial das suas funções profissionais. Faz, portanto, parte das primeiras gerações de pensadores que se encontram fora das instituições eclesiásticas. Em terceiro lugar, Bodin é, principalmente, o autor de uma súmula de filosofia política que define ela própria o seu campo como externo ao da Teologia. Trata-se dos Seis Livros da República, que dizem respeito ao exercício de uma soberania temporal e que são, deste ponto de vista, um fundamento para todo o pensamento teológico e político do século seguinte, em particular no que concerne ao tema do poder temporal indireto da Igreja em relação aos estados e à autonomia das igrejas relativamente à Santa Sé. Por fim, e este último ponto vem de uma época anterior, mas continua a ser significativo para a época moderna, sendo-o muito menos para os séculos seguintes, Bodin é um europeu: primeiro, em termos de cultura, uma vez que, a partir dos anos da sua primeira formação em Paris, frequenta o futuro Colégio Real (mais tarde, Colégio de França), onde se familiariza com o grego e o hebraico (no qual o iniciaram, em Toulouse, os judeus refugiados dos reinos de Espanha – ao mesmo tempo que na Cabala); além disso, pelas missões diplomáticas que lhe são confiadas posteriormente: em Inglaterra, para negociar o casamento do duque d’Alençon, último filho de Catarina de Médicis, cuja morte, com menos de 35 anos, vai precipitar em França a grande crise do Dia de S. Bartolomeu (1572), com a subida ao trono do protestante Henrique III, e também nos Países-Baixos espanhóis, sempre ao lado do duque d’Alençon.
Estas circunstâncias contarão muito no desenvolvimento do pensamento propriamente religioso de Bodin, mais além do seu apego a uma conceção política e puramente política do Estado. É, aliás, a busca de um equilíbrio entre as forças cristãs no reino que o conduzirá, paradoxalmente, a sofrer a desconfiança por parte de todas as fações e a terminar – prematuramente – a sua vida numa certa marginalidade. Neste sentido, a obra de Bodin, contemporânea da de Maquiavel, desenrola-se num espaço de ação que foi deixado vago pela marginalidade política.
Após este breve percurso pela sua vida, podemos incluir no quadro deste Dicionário quatro temáticas maiores na obra de Jean Bodin (tendo de deixar de lado uma série de obras, como o Théâtre de la Nature Universelle, testamento enciclopédico do autor, redigido nos anos de 1590): o pensamento sobre a soberania, a utopia ecuménica, a invenção da demonologia e a História como método.
A soberania
O pensamento político de Bodin é certamente o que lhe permite ser, ainda hoje, tido em consideração pelos historiadores da Filosofia e, de modo geral, do século XVI europeu. De leitura difícil, apesar de o autor o ter escrito em francês (sendo isto um sinal do desenvolvimento da literatura vernacular em meados deste século), o imenso livro De La République propõe, num clima ainda muito fortemente marcado, em França, pelas “guerras de religião”, estabelecer os princípios de uma soberania política inteiramente baseada na razão profana ou secular.
A soberania monárquica que propõe pode talvez definir-se por meio de dois traços principais (não podemos fazer mais do que um resumo esquemático do conjunto desta obra) que podem ainda hoje ser compreendidos e ser objeto de reflexão. Por um lado, esta soberania produz dois efeitos na conceção da justiça: na medida em que ela se situa fora do alcance da autoridade jurídica, pode-se dizer que marginaliza o Direito, mas, ao separar estes dois poderes, introduz também a possibilidade de uma independência da justiça. A receção assaz contrastante do tratado de Bodin entre os juristas seus contemporâneos dá bem conta desta dupla dimensão. Por outro lado, a soberania do príncipe sobre o conjunto do corpo social deve reforçar a sua coesão, favorecendo uma circulação entre as categorias sociais, definidas em função da sua capacidade económica. Assim, “il n’ y a moyen de lier les petits avec les grands, les roturiers avec les nobles, les pauvres avec les riches, sinon en communiquant les offices, états, dignités, et bénéfices aux hommes qui le méritent, comme nous avons montré cy devant. […] Tous les roturiers sont ravis d’un plaisir incroyable, et se sentent tous honorés quand ils voyent le fils d’un pauvre médecin Chancelier d’un grand Royaume et un pauvre soldat être enfin Connétable: comme il s’est vu en la personne de Bertrand du Guesclin et de Michel de l’Hospital et de beaucoup d’autres, qui pour leurs vertus illustres sont montés aux plus hauts degrés d’honneur” (BODIN, 1576, 755).
O pensamento político de Bodin é, além disso, e por fim, dominado por um funcionalismo religioso que foi considerado como um dos seus pontos de contacto com o pensamento de Maquiavel, e que nos aproxima do horizonte ecuménico em que nos deteremos no próximo ponto: “Tous les Atheistes mesmes sont d’accord, qu’il n’y a chose qui plus maintienne les estats, et Republiques, que la religion, et que c’est le principal fondement de la puissance des Monarques, de l’execution des loix, de l’obeissance des sujets, de la reverence des magistrats, de la crainte de mal faire et de l’amitié mutuelle envers un chacun, [et qu’] il faut bien prendre garde qu’une chose si sacree, ne soit mesprisee ou revoquee en doubte par disputes: car de ce point-là dépend la ruine des Republiques” (BODIN, De la République, 1576, apud BELLUSSI, 1985, 43-47).
Uma utopia ecuménica
A Noite de S. Bartolomeu, que poderia ter sido fatal para Jean Bodin, suspeito de amizades com os huguenotes na época, foi certamente para ele um acontecimento essencial, e não apenas no que respeita à tentativa de conceber uma paz civil que tem na “soberania” o seu conceito maior. Também o incita a seguir uma outra orientação e um outro âmbito de escrita, o do diálogo religioso.
Em Colloquium Heptaplomeres, provavelmente composto entre 1587 e 1593, mas publicado somente no século XIX, Bodin retoma uma tradição antiga, inaugurada por Abelardo e continuada depois por Raimundo Lull, entre outros, e pode talvez, segundo Gabriel Naudé, ter sido diretamente inspirado, neste diálogo situado em Veneza, por Guillaume Postel (1510-1581), figura eminente do século XVI, erudito e político como Bodin, que o conheceu em Paris. Esta obra subtil, escrita de tal maneira que cada um dos seus protagonistas parece mesmo ter existido, não exclui as divisões propriamente teológicas sobre o tema cristológico em particular, e poderia, vez após vez, representar o autor (o que contribuiu para que o manuscrito continuasse manuscrito). Ela reúne, pois, em casa do católico (católico, mas veneziano…) Paulus Coroneus o jurista calvinista Antonius Curtius e o matemático luterano Fridericus Podamicus, Ottavio Fagnola, cristão cativo convertido ao Islão, Salomon Barcassius, judeu, e ainda dois outros debatedores que não professam nenhuma das religiões do Livro, Diego Toralba, ou qualquer religião, Hieronymus Senamus. A obra, orquestrada como uma harmoniosa polifonia, é uma apologia da coexistência confessional. Mas não é apenas conciliatória, está também imbuída de um espírito conciliarista, como diversas obras de Postel, em vários aspetos próximo de Bodin (mas carregando uma perspetiva messiânica que lhe é estranha); e não é por acaso que nenhum dos convivas do Colloquium em Veneza é católico romano.
A invenção da demonologia
De la Démonomanie des Sorciers (1580) não é uma obra secundária de Jean Bodin. Ela inaugura, com efeito, um conjunto de trabalhos que marcarão todo o curso do século XVII e que visam construir uma teoria geral das ações diabólicas. Esta sistematização estará muito profundamente ligada – e Bodin está evidentemente, deste ponto de vista, no começo de uma longa história – à proliferação de figuras demoníacas na “descoberta” de mundos novos pelos europeus, do Peru à Índia, ao México e à Nova França, e à necessidade de identificar um inimigo comum, como Ines G. Zupanov (2011) mostrou notavelmente. Assim, aquilo que se desenrola à escala mundial é considerado por Bodin ao nível do Estado moderno e, especificamente, da monarquia francesa. Na realidade, como Sophie Houdard (1994) tão bem analisou, Bodin é herdeiro de uma tradição muito rica, em particular, neoplatónica, mas igualmente, como referimos de passagem, cabalística. Para ele, o oculto é uma verdadeira ciência. Mas, da mesma maneira que explora as vozes de um ecumenismo cuja utopia permitiria conceber e resolver os conflitos religiosos no espaço de uma comunicação aberta, ele sabe também que estes mesmos conflitos manipulam a arma diabólica: o processo de Jeanne Harvilliers – que desencadeou a escrita do seu tratado de 1580 – ensinou-lhe isso. A religião de Estado deve formar um bloco: os diabos não podem sobreviver neste contexto. Eles são mensageiros de dissensões infinitas e da destruição do corpo social. Assim, o esboço de uma teoria constitui um primeiro passo na batalha contra as múltiplas práticas diabólicas, dando-lhes uma mesma forma, e a Demonologia de Bodin tem um papel fundamental nesta luta.
Bodin historiador
O Methodus ad Facilem Historiarum Cognitionem (Método para Uma Aprendizagem Fácil da História) foi a primeira grande obra de Bodin, publicada em 1566. O autor produz aqui um enorme volume de escritos históricos – que Hegel, muito tempo depois, qualificará de “história original”: crónicas, memórias, etc., reconhecendo ademais os seus méritos – para tornar inevitável a definição de um método, e afasta-se, neste sentido, do futuro projeto hegeliano de uma história filosófica, em favor de um princípio de organização deste conjunto de escritos. Estes, no entanto, e nós retomamos aqui a ideia de uma grande modernidade da empresa de Bodin, não devem servir só como exemplos, instrutivos ou edificantes, mas devem permitir estabelecer algo como leis, mas leis que apenas se ligam ao passado da história dos homens, sem recurso à Providência divina ou a qualquer tipo de transcendência. O Método é, desta maneira, bem corolário da República. E isto é tanto mais verdade que Bodin considera como diretriz da sua leitura da História o conhecimento – ele próprio herdeiro da História – e as técnicas ligadas à conquista e à conservação do poder. Poderíamos lê-lo hoje ainda sob o ponto de vista do nascimento, da expansão e da morte dos impérios, por exemplo, que nos permitem vislumbrar a possibilidade de uma História universal, articulando a sucessão dos impérios, tal como Gabriel Martinez-Gros propõe na sua Brève Histoire des Empires (2014).
Nota final
Pela maneira como a sua obra organiza a articulação de campos de saber extraordinariamente diversos – da Filosofia Política à Demonologia, passando pela Teoria das Religiões –, mas todos ligados por uma mesma exigência de racionalidade, Jean Bodin poderia ser justamente qualificado, tendo até em conta o seu nascimento burguês, como um príncipe do humanismo renascentista.
O que tem a sua obra que nos pode ainda hoje atrair? Certamente, para reter apenas aqui um aspeto essencial, o tema do Estado. Como pensar hoje o Estado, não somente como um problema, mas como uma solução, e como uma solução sempre debatida? Bodin, no fim de um percurso político complexo, escolhe o Estado, e a religião como uma função do Estado, de modo a tentar resolver os conflitos religiosos enquanto ameaças permanentes à unidade política da nação. Várias décadas depois, um teólogo como o cardeal de Bérulle chegará à mesma conclusão, na sequência de uma trajetória igualmente complexa. Séculos mais tarde, na segunda metade do século XIX, o Estado, e com ele o princípio de laicidade, impuseram-se, pelo menos em França, como maneira de pôr termo a duas forças subversivas, a da beneficência social do grande capitalismo e a dos movimentos operários, também eles, à partida, hostis à interferência do Estado na gestão dos assuntos sociais.
E em que ponto estamos agora? A laicidade do Estado permanece aberta a uma redefinição constante, entre uma laicidade “fechada”, hostil a todas as formas de religião pública, uma laicidade “aberta”, favorável a uma pluralidade de expressões públicas das grandes correntes religiosas, e uma tendência, talvez a mais particularmente contemporânea: para ver nos grandes debates religiosos a possibilidade de um espaço público renovado, aberto, incidindo sobre questões sociais fundamentais, como o “direito à morte”, por exemplo; para uma expressão contraditória, para além das clivagens ideológicas ultrapassadas.
Vista deste prisma, a obra política e religiosa de Jean Bodin continua a ser, decerto, uma obra atual, que é necessário ter paciência para redescobrir.
Bibliografia
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ZUPANOV, I. G. (2011). “La science et la démonologie: Les missions des jésuites français en Inde (XVIIIe siècle)”. In C. Castelnau et al. (eds.). Circulation des Savoirs et Missions d’Évangélisation (XVIe-XVIIIe Siècle) (379-400). Madrid: Casa de Velázquez/EHESS.
Autor: Pierre-Antoine Fabre