Campanella, Tommaso [Dicionário Global]
Campanella, Tommaso [Dicionário Global]
Profundamente marcada pela influência da República platónica, onde os cidadãos filósofos são chamados a governar o Estado de acordo com as leis da razão (leis essas que unem as formas humanas de viver à ordem cósmica), a utopia renascentista da Cidade do Sol foi escrita em 1602 por Tommaso Campanella no vulgar florentino e só depois traduzida para latim. A Cidade do Sol desenha uma cidade regida por um sumo príncipe, denominado “Sol” ou “Metafísico”, que concentra em si as características do governo político e religioso. Esta figura do príncipe-sacerdote é assistida por outros três príncipes, cujas funções estão ligadas aos três princípios da potestade, da sabedoria e do amor. Tal como o próprio nome do primeiro governante torna evidente, este assume, também, um papel de supervisão de uma comunidade caracterizada por uma organização conformada a uma ratio filosófica.
De derivação platónica é também o registo do diálogo, que acontece entre um “Grão-Mestre da Ordem hospitalar” e um navegador genovês às ordens de Colombo, através do qual Campanella descreve a sua utopia.
Reunindo, portanto, o modelo filosófico platónico e o modelo hierárquico das ciências definido pela teologia tomista, Tommaso Campanella – ele próprio pertencente à Ordem Dominicana – imagina uma cidade-cosmo destinada a incluir e a desenvolver todas as ciências e as técnicas, revelando também, neste sentido, a ambição de uma tentativa de compromisso com as inovações da Modernidade.
O objetivo explícito da utopia de Campanella consiste na mais ampla partilha de conhecimentos entre os cidadãos. Tal como acontece na República platónica, o modelo não implica apenas uma abordagem teórica à filosofia, como também uma verdadeira vida filosófica em comum. É precisamente a partir deste princípio que Campanella organiza uma cidade onde “todas as coisas” são “em comum”: as ciências, as dignidades, os prazeres e também as mulheres que, embora consideradas cidadãs ativas, surgem, do ponto de vista sexual, como bens de uso. São também importantes as motivações deste tipo de organização. Os habitantes da Cidade, localizada em Taprobana, uma ilha semi-mitológica do Oriente indiano correspondente ao antigo Ceilão, quiseram afastar-se de formas de governo determinadas pela tirania e pela apropriação arbitrária. Neste sentido, a propriedade comum dos bens constituiria um antídoto para o sentimento do “amor-próprio”, que determina, segundo os habitantes da Cidade do Sol, quer a fraude para com o interesse público, no caso destas atitudes serem praticadas por figuras de poder, quer atitudes avaras, intrigantes e hipócritas, no caso de cidadãos fracos. Em ambos os casos, a perda da exclusividade proprietária está ligada à deslegitimação de atitudes psicológicas individualistas. A inexistência do amor-próprio traduz-se, com efeito, numa maior ligação à coletividade, cuja harmonia e cujo desenvolvimento, espelhos de uma razão cósmica codificada, se tornam o verdadeiro foco das vidas dos indivíduos. A propriedade comum acaba por realizar, para Campanella, além do próprio ideal platónico, também o ideal de santidade evangélica, baseada na caridade cristã, da qual os habitantes da Cidade do Sol surgem desligados, pelo simples facto de não participarem da Revelação. Para além de realizar estes ideais políticos e religiosos, a forma de vida filosófica imaginada pelo filósofo e comunicada por intermédio do genovês assenta na promoção de um sentimento ético de amizade que, alheio aos interesses pessoais determinados pelo amor-próprio, se desenvolve através de uma prática generalizada de irmandade.
Estes aspetos, destinados a alcançar a maior harmonia possível no interior da Cidade, são objeto de uma meticulosa atenção pedagógica e até penal. Neste quadro, a utopia de Campanella desenvolve características típicas de uma sociedade disciplinar, quase antecipando os modelos literários distópicos das sociedades de controlo e, mais concretamente, os modelos políticos totalitários. Isto é, os comportamentos dos indivíduos são minuciosamente definidos e regulados, e uma casta de “oficiais” fica encarregue da educação dos mais jovens, garantindo a perfeita adesão de cada um ao modelo ético da comunidade. Esta casta é definida através de uma constante competição, baseada em quem é detentor de mais conhecimento. O vértice da comunidade, o Sol, é, pois, eleito de forma vitalícia, de entre os indivíduos mais sábios, e acaba por ser ocupado pelo maior filósofo, reconhecido como sendo ele próprio capaz de conduzir, também do ponto de vista prático, uma comunidade baseada numa forma de vida filosófica. De igual modo, a organização das atividades implica um conhecimento quer teórico, quer prático, e uma hierarquização e especificação interna das funções. Para além do “Sol” e dos outros três príncipes, outros 36 oficiais, diretamente dependentes dos príncipes, são escolhidos pelos cidadãos, segundo as suas capacidades.
Se, por um lado, os velhos ficam encarregues pela questão do respeito desta organização, Campanella descreve ao pormenor as tipologias de serviço que, por outro lado, os mais jovens devem providenciar aos governantes, como as características de vestuário e até o tipo de dieta que, conforme a altura do ano ou as suas necessidades individuais, cada indivíduo deve adotar, sendo que todas as atividades inerentes ao corpo são supervisionadas por um médico. Exemplo deste disciplinamento sistémico é a regulação das atividades relativas ao sexo e à procriação, sendo, por exemplo, interdita a copulação antes de uma determinada idade. Para além disso, são regulados os tipos de casais e os rituais que acompanham a procriação. Estas atividades são também supervisionadas por técnicos especializados, como um médico e um astrólogo, este último necessário para a composição racional entre micro e macrocosmo. Por fim, uma mestra e um senhor da geração orientam os jovens nos encontros. Banida a sodomia, é adotada uma espécie de eugenesia moral como princípio discriminante dos acasalamentos, sendo que os habitantes da Cidade do Sol consideram a “disposição natural” diretamente proporcional à “virtude moral”.
O crescimento das crianças é também vigiado e regulado, sendo estas crianças confiadas não aos pais biológicos, mas a mestras e mestres especialistas na pedagogia, respeitando os princípios comunitários. Desligado da procriação, cuja gestão pertence ao Estado, o sentimento amoroso entre duas pessoas não é banido, mas orientado no sentido de se concretizar em amizades amorosas.
A orientação comunitária da Cidade implica também a abolição da escravatura, sendo que todos os cidadãos são obrigados a cumprir uma tarefa específica, e não pode o tempo dedicado a esta ser superior às quatro horas diárias. O resto do tempo de vida é dedicado a atividades intelectuais. Não há, portanto, uma divisão entre classes sociais diferenciadas pela riqueza, o que seria a origem da depravação social.
Embora autocrática, a Cidade não é completamente fechada. É possível para um estrangeiro tornar-se cidadão depois de um período experimental, e são desenvolvidas relações comerciais e diplomáticas com os povos mais próximos, com o objetivo de procurar os poucos bens não disponíveis na Cidade ou de verificar a existência de formas de vida superiores. A “porosidade” desta organização é dada pela presença de espiões, que garantem um controlo absoluto das atitudes dos cidadãos, no interior, ao mesmo tempo que permitem um conhecimento aprofundado dos hábitos estrangeiros, no exterior.
Da perspetiva de um reconhecimento dos direitos humanos universais, a utopia de Campanella apresenta, evidentemente, uma contradição. Se, por um lado, o direito aos bens necessários e à formação, de forma igualitária, surge como amplamente garantido, por outro, o disciplinamento da vida comum é inteiramente sujeito a um Estado que, enquanto única entidade juridicamente reconhecida, controla totalmente a Cidade, no seu todo e nas partes. A existência e a proteção dos indivíduos são garantidas só em função da própria sobrevivência harmónica do Estado. Simultaneamente, a entidade estatual é legitimada pelo próprio facto de garantir a melhor forma de vida possível aos seus indivíduos, o que torna inútil, no contexto da construção utópica, o próprio conceito de uma proteção individual, sendo que o indivíduo não precisa de proteger-se de forma nenhuma dos seus semelhantes.
A concretização messiânica de uma teocracia igualitária foi tentada, sem êxito, pelo próprio Campanella, que, acusado de heresia e rebelião, ficou aprisionado durante 27 anos. Foi precisamente neste contexto que o filósofo dominicano se dedicou à escrita da sua obra.
Bibliografia
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Autor: Gianfranco Ferraro