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    Carta Social Europeia

    Créditos da imagem: Conselho da Europa – www.coe.int

     

     

    A tutela dos direitos fundamentais dos países da União Europeia faz-se de forma multinível, levando em consideração um sistema tripartido de proteção, a saber: as normas que resultam do Direito Internacional, do Direito da União Europeia e do próprio direito interno, conforme consagrado nas leis fundamentais dos vários ordenamentos jurídicos que integram a comunidade europeia – assim assinala Ana Maria Guerra Martins (2018).

    A Carta Social Europeia foi criada sob a égide do Conselho da Europa e foi assinada em Turim em 18 de outubro de 1961, entrando em vigor em 26 de fevereiro de 1965. Em Portugal, foi ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 21/91, de 6 de agosto de 1991. Através dela, os Estados Partes do Conselho da Europa comprometeram-se a garantir aos cidadãos o mínimo existencial a nível de direitos fundamentais sociais. Inicialmente, a Carta Social Europeia viria a acompanhar e complementar a Convenção Europeia de Direitos Humanos.

    Contudo, foi objeto de uma revisão profunda em 1996, tendo, então, sido aprovada a designação de “Carta Social Europeia Revista”, ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 64-A/2001, de 17 de outubro de 2001, onde se pode ler que “o objetivo do Conselho da Europa é realizar uma união mais estreita entre os seus membros, a fim de salvaguardar e de promover os ideais e os princípios, que são o seu património comum, e de favorecer o seu progresso económico e social, nomeadamente pela defesa e pelo desenvolvimento dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”.

    Veja-se, nesta sede, a resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 19/99/M (DR I-B, n.º 194, de 20/08/1999), da Região Autónoma da Madeira, que recomendou ao Governo a ratificação da Carta Social Europeia Revista, onde se pode ler que, à data da referida resolução, “se assiste a um retrocesso desses mesmos direitos, quer individuais, quer coletivos, aumentando desta forma o sofrimento de milhões de pessoas”, defendendo a necessidade de defesa de um “conceito de direitos humanos com um conteúdo e uma dimensão globalizante, conducente a uma efetiva realização do ser humano”.

    A Carta Social Europeia visa completar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que não aborda os direitos económicos e sociais, centrando-se aquele diploma nos direitos fundamentais de segunda geração. Estabelece, entre outros, os seguintes direitos: direito ao trabalho – art. 1.º, direito sindical – art. 5.º, direito à negociação coletiva, incluindo o direito à greve – art. 6.º, embora seja interessante notar que a Resolução da Assembleia da República estabelece que “a vinculação ao art. 6.º não afeta, no que respeita ao parágrafo 4.º, a proibição do lock-out estabelecida no art. 4.º do art. 57.º da CRP”; direito à segurança social – art. 12.º; direito à assistência médica – art. 13.º; direito à proteção económica e social da família – art. 16.º; direito dos trabalhadores migrantes e das suas famílias à proteção e à assistência – art. 19.º.

    A Carta Social Europeia, juntamente com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, compõe o binómio de convenções emanadas do Conselho da Europa. Contudo, enquanto esta última consagra, predominantemente, direitos civis e políticos, ainda que alguns com repercussão nas relações de trabalho, a Carta Social Europeia Revista abarca vários direitos de carácter social.

    A década de 90 do século xx foi marcada por profundas alterações na política europeia, através dos tratados de Maastricht e de Amesterdão, aprovados entre 1992 e 1997, respetivamente. Estes trouxeram alterações institucionais significativas e que foram contribuindo para a construção daquilo a que se chamou a “Europa Social” – de acordo com a resenha cronológica traçada por José João Abrantes (2000).

    Apontou-se, nessa altura, um conjunto de razões que apelavam à necessidade de criação de uma Europa que atendesse aos direitos de cariz social, nomeadamente: i) a fixação de medidas de proteção social e de garantia de condições de trabalho, no âmbito da mobilidade de trabalhadores no quadro do mercado único europeu; ii) a participação dos trabalhadores no desenvolvimento económico e social europeu; e iii) a necessidade de dar continuidade ao desenvolvimento da Europa, tendo sempre como base a liberdade e a democracia e, também, “o bem-estar económico e social para todos” (ABRANTES, 2000, 162-163). Abrantes reforça a importância da dimensão social enquanto “parte integrante do projeto europeu”, sendo essencial e imprescindível para a sua formação e desenvolvimento.

    Durante o referido período – assinalado por uma profunda revisão dos tratados da União Europeia, no sentido de tornar a política europeia mais próxima dos cidadãos – pretendia-se “humanizar” a União Europeia” –, o Tratado de Amesterdão veio reforçar o papel da Carta Social Europeia enquanto instrumento de proteção de direitos fundamentais sociais e económicos, conforme descreve Ana Maria Guerra Martins. A autora utiliza a expressão “humanizar”, precisamente para ilustrar o marco legislativo em que foi realçada a importância da Carta Social Europeia (MARTINS, 2018).

    Desta feita, na nova redação do art. 136.º passou a ler-se – anterior art. 117.º do Tratado de Roma, que, até então, tinha como prioridade a integração económica, pondo um pouco de parte as questões em torno da matéria social – que “a Comunidade e os Estados-Membros, tendo presentes os direitos sociais fundamentais, tal como os enunciam a Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de outubro de 1961, e a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, terão por objetivos a promoção do emprego, a melhoria das condições de vida e de trabalho, de modo a permitir a sua harmonização, assegurando simultaneamente essa melhoria, uma proteção social adequada, o diálogo entre parceiros sociais, o desenvolvimento dos recursos humanos, tendo em vista um nível de emprego elevado e duradouro, e a luta contra as exclusões”, além do considerando também alterado na parte inicial, onde se inclui a sujeição do Tratado da União Europeia aos direitos fundamentais previstos na Carta Social Europeia.

    Conforme decorre do art. 8.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que adota um sistema monista sobre a relação do direito interno com o direito internacional, as normas e princípios previstos na Carta Social Europeia, assim como os demais diplomas de Direito Internacional geral, fazem parte integrante do Direito português (CANOTILHO & MOREIRA, 2007, 251 e ss.). Considerando, todavia, a pluralidade de sistemas existentes, decorre da Carta Social Europeia que os Estados se comprometem a integrar as suas disposições de acordo com o sistema jurídico interno, podendo fazê-lo “por legislação; pela regulamentação, por convenções celebradas entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores; por uma combinação destes dois métodos ou por outros meios apropriados” (CRUZ, 2020, 234).

    O cumprimento da Carta Social Europeia é monitorizado por dois mecanismos, ambos sob a responsabilidade principal do Comité Europeu dos Direitos Sociais. Desde logo, através de um sistema de relatórios de acordo com o qual os Estados-Membros devem enviar relatórios periódicos àquele órgão que se pronuncia, sob a forma de conclusões, também periódicas, sobre a (des)conformidade com a Carta da legislação ou das práticas nacionais.

    Por outro lado, existe, ainda, um procedimento de reclamações coletivas que foi instituído pelo Protocolo Adicional de 1995, por meio do qual certas entidades nacionais e internacionais, quer sejam parceiros sociais europeus, quer ONG internacionais, ou ainda parceiros sociais nacionais com participação no Conselho da Europa, podem apresentar queixa contra um Estado por alegado incumprimento da Carta.

    Para o recurso ao procedimento de reclamação coletiva – apenas aplicável aos 13 Estados-Membros que o ratificaram – têm legitimidade ativa as entidades sindicais nacionais de determinado Estado, assim como as internacionais, associações representativas das entidades empregadoras nacionais e internacionais e, também, organizações não governamentais do Estado-Membro e que participem no Conselho da Europa.

    O procedimento de reclamação coletiva pauta-se, desde logo, pela regra da celeridade, uma vez que a sua tramitação, assim que iniciada, deverá ser conduzida com alguma brevidade: o prazo de admissão da reclamação é de quatro meses, sendo de sete a oito meses o prazo para emitir a decisão final que cabe ao Comité Europeu dos Direitos Sociais, num formato semelhante ao das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (PRADO, 2017, 299).

    Após emissão da decisão, esta é comunicada às partes envolvidas e ao Comité de Ministros, terminando com uma resolução e recomendação sobre as medidas a adotar no sentido da adequação à Carta Social Europeia, caso se verifique que estas medidas não estão, efetivamente, a ser cumpridas, conforme dispõe o art. 9.º, n.º 1 do Protocolo Adicional à Carta Social Europeia, que prevê o sistema de reclamação coletiva.

    Findo o procedimento, o Estado-Membro que se encontre em incumprimento fica vinculado ao dever de informar sobre as medidas que venha a adotar no sentido de cumprir a recomendação do Comité de Ministros, conforme determina o art. 10.º do Protocolo Adicional.

    Independentemente da natureza da sua intervenção, o Comité Europeu dos Direitos Sociais desempenha um papel crucial ao nível da interpretação das disposições da Carta, as quais apresentam, várias vezes, um conteúdo impreciso.

    A problemática em torno da aplicação da Carta Social Europeia surge reforçada em períodos de crise económica, como os que temos vindo a atravessar desde 2008. A crise proveniente da situação pandémica teve largas repercussões no plano do Direito do trabalho, por consequência de uma deterioração das condições de trabalho, que se fez sentir, nos últimos anos, nos Estados europeus (PRADO, 2017, 293-294).

    Por força das situações de crise que mencionámos, o Comité Europeu dos Direitos Sociais reforçou a necessidade de serem observados – aquando da adaptação das normas sociais e, em particular, das normas laborais, aos pacotes de medidas de combate à crise económica – o “princípio da não regressão, da não-discriminação, da razoabilidade e da proporcionalidade”, dependendo a adoção de medidas de carácter regressivo de um conjunto de pressupostos a considerar pelos Estados-Membros, a saber: a necessidade comprovada das medidas a adotar e a “ausência de alternativas menos gravosas para alcançar o mesmo objetivo de sustentabilidade”, em consideração pela proporcionalidade da medida a adotar face à situação concreta. Veja-se, a título de exemplo, o sucedido na Grécia, onde o pacote de medidas adotadas estipulava, entre outras, o congelamento de salários e o despedimento sem direito a indemnização durante um período experimental de 12 meses. Neste caso concreto, o Comité Europeu dos Direitos Sociais entendeu que o conjunto de medidas adotadas pelo governo grego para fazer face à situação de crise que o país atravessava violava o disposto no art. 4.º, n.º 4 da Carta Social Europeia, uma vez que tais medidas implicavam a negação, aos trabalhadores, dos seus direitos fundamentais em matéria laboral (CRUZ, 2020, 233-234).

    Têm sido, contudo, apontados, pela doutrina, um conjunto de problemas devidos à dificuldade de interpretação da Carta, surgidos no momento em que se fez premente a sua aplicação. De modo a encontrar uma solução, defende-se a adoção de mecanismos de controlo de maior eficácia e, em particular, a criação de uma secção de Direito Social no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (PRADO , 2017, 314).

    A Carta Social Europeia tem vindo a afirmar-se, pouco a pouco, ao longo dos últimos anos, através de decisões emitidas pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais nos procedimentos de reclamação coletiva que lhe são apresentados (conforme assinala Cristina Martins da Cruz, dando como exemplo a queixa apresentada contra a Suécia pela Swedish Trade Union Confederation e a Swedish Confederation of Professional Employees, onde estava em causa o obstáculo normativo daquele país ao exercício do direito de ação coletiva – entendeu-se que tal obstáculo violava o direito fundamental previsto no art. 6.º, n.º 4 da Carta Social Europeia). A Carta tem-se revestido de particular importância no plano das situações de exceção que temos atravessado, conforme se assinalou a montante, sendo o caso mais recente as medidas impostas pelo Governo aquando da crise pandémica provocada pela doença Covid-19. Com efeito, nesta situação estabeleceu-se um verdadeiro direito laboral de exceção ou, por outras palavras, um “direito de crise”, que se repercutiu no Direito do Trabalho, através das medidas de natureza temporária aprovadas pelo Governo como forma de combate à pandemia, fortemente caracterizadas pela natureza restritiva de direitos fundamentais (CRUZ, 2020, 207).

    As normas jurídicas aprovadas em Portugal tiveram já oportunidade de passar pelo crivo do Comité Europeu dos Direitos Sociais, o qual não foi favorável a algumas delas. Falamos, neste caso, das normas aprovadas durante a crise de 2008, quando o Governo recorreu à assistência financeira, de que resultou a elaboração de memorando de entendimento que continha um conjunto de medidas a adotar para fins de recuperação económica, consistindo boa parte delas em reformas no âmbito laboral.

    Foram levantadas junto do Comité algumas questões sobre a eventual desconformidade com a Carta Social Europeia, em matérias como: i) retribuição mensal mínima; ii) a prestação de trabalho em dia de feriado; iii) a retribuição auferida pela prestação de trabalho suplementar e a organização do tempo de trabalho; iv) o regime de isenção de horário de trabalho e a consequente falta de barreiras entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho; v) a determinação de um prazo de pré-aviso razoável no que respeita à cessação do contrato de trabalho; vi) a garantia e o direito a condições de trabalho dignas em matéria de segurança e saúde; vii) as medidas adotadas em torno da inclusão de pessoas portadoras de deficiência.

    Chama-se, pois, a atenção para a importância de dar a conhecer a Carta Social Europeia junto das instâncias jurisdicionais, dando continuidade à realização de estudos por parte da doutrina. É também importante a sua aproximação à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, enquanto complemento daquele instrumento e, além disso, como meio para ser considerada nas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

    Pese embora não padeça da mesma força vinculativa em relação aos Estados-Membros da União Europeia, certo é que a matéria prevista na Carta Social Europeia pode, de facto, ser considerada em complemento com os direitos fundamentais de primeira geração previstos na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tratando-se aqui, contudo, do catálogo dos direitos fundamentais de segunda geração, cujo valor não deve, de forma alguma, ser descurado. Tem-se constatado, aliás, que tem vindo a contribuir para uma chamada de atenção dos Estados-Membros quanto à necessidade de cumprir com o disposto na Carta Social Europeia, primando pelo respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos (CRUZ, 2020, 235-236) e reforçando a necessidade de dar a conhecer a Carta Social e o papel que poderá assumir, potencialmente, enquanto “Tratado dos Direitos Humanos” a nível europeu.

    Caminha-se, assim, para a construção de um Direito Europeu do Trabalho, enquanto “conjunto de regras laborais de origem comunitária aplicáveis a todos os trabalhadores que desempenham a sua atividade em Estados da União Europeia”, consagrando-se, acima de tudo, um sólido corpo normativo em matéria de direitos fundamentais, não só de primeira como, também, de segunda geração, suscetíveis de dar resposta às necessidades sociais dos cidadãos que habitem o espaço europeu (MARTINEZ, 2022, 195).

    Bibliografia

    ABRANTES, J. J. (2000). “Do Tratado de Roma ao Tratado de Amsterdão: A caminho de um direito do trabalho europeu?”. Questões Laborais, 16, 162-175.

    ALVES, F. (2017). “Compreender a Carta Social Europeia revista: Convenções internacionais e os seus efeitos nas ordens jurídicas nacionais”. Revista Jurídica de los Derechos Sociales Lex Social, 1, 17-41.

    AMADO, J. et al. (2019). Direito do Trabalho – Relação Individual. Coimbra: Almedina.

    CANOTILHO, J. & MOREIRA, V. (2007). Constituição da República Portuguesa Anotada (vol. i). ( 4.ª ed.). Coimbra: Coimbra Editora.

    CARVALHO, C. (2017). “O impacto da jurisprudência do Comité Europeu de Direitos Sociais em matéria laboral no ordenamento jurídico português”. Revista Jurídica de los Derechos Sociales Lex Social, 1, 211-243.

    CRUZ, C. (2020). “A Carta Social Europeia no contexto do direito do trabalho de exceção”. Revista do CEJ, 1, 203-236.

    MARTINEZ, P. (2022). Direito do Trabalho (10.ª ed.). Coimbra: Almedina.

    MARTINS, A. (2018). Manual de Direito da União Europeia (2.ª ed.). Coimbra: Almedina.

    PRADO, D. (2017). “La problemática aplicación de la Carta Social Europea”. In Prontuário de Direito do Trabalho (293-317). Coimbra: Almedina.

     

    Autores

    Teresa Coelho Moreira

    Inês Dias

    Autor:
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