Constitucionalismo Angolano [Dicionário Global]
Constitucionalismo Angolano [Dicionário Global]
Os direitos humanos na I República (1975-1991)
O tratamento constitucional dos direitos humanos em Angola corresponde a cada um dos períodos históricos que o país conheceu desde a proclamação da independência nacional, a 11 de novembro de 1975.
A Lei Constitucional de 1975, que corresponde ao período da chamada I República (de 1975 a 1991), seguia de perto a conceção dos direitos humanos dos países de democracia popular ou, se preferirmos, de opção socialista. Esta lei dedicava 14 artigos aos “direitos e deveres fundamentais”. Os direitos fundamentais individuais, de liberdade e políticos, eram preteridos, dando-se ênfase aos direitos sociais. O título II da Lei Constitucional de 1975 tinha como epígrafe “Direitos e Deveres Fundamentais” e continha 14 artigos (art. 17.º a art. 30.º). Curiosamente, o art. 17.º afirmava que “O Estado respeita e protege a dignidade da pessoa humana […]”. Esta norma deve ser interpretada e compreendida no contexto da época, onde se estatuía, no art. 2.º, que “Toda a soberania reside no Povo Angolano. Ao MPLA, seu legítimo representante, constituído por uma larga frente em que se integram todas as forças patrióticas emprenhadas na luta anti-imperialista, cabe a direção política, económica e social”. Este preceito é transversal a todas as leis fundamentais do país, estando presente na Lei de Revisão Constitucional de 1991 (art. 20.º) e na Lei de Revisão Constitucional de 1992 (art. 20.º). A Constituição de 2010 deu um tratamento diferente a este instituto jurídico, inserindo-o no art. 1.º “Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana […]”.
A Lei Constitucional de 1975 e as diversas revisões constitucionais feitas até ao início do período da transição democrática seguiam o modelo dos países socialistas em que se dava enfâse aos direitos sociais em detrimento dos direitos de liberdade. Os direitos, liberdades e garantias fundamentais na denominada I República estavam subordinados aos interesses do Estado “socialista” e do partido governante, razão pela qual os direitos, liberdades e garantias fundamentais, na sua aceção de direitos de liberdade, não estavam assegurados, como eram, a título exemplificativo, a liberdade de expressão, a liberdade de reunião e manifestação e a liberdade de exercício político. Ao invés, dava-se ali ênfase aos direitos sociais, assumindo-se o Estado como uma entidade protecionista (Estado providência) e o maior empregador do país.
Os direitos fundamentais na II República (1991 e 1992)
Em 1991, deu-se início ao processo de transição para a democracia com a aprovação da lei n.º 12/91, de 6 de maio. Esta lei, como referido no seu preâmbulo, pretendeu “criar a abertura democrática que permita ampliar a participação organizada de todos os cidadãos na vida política nacional e na direção do Estado, ampliar o reconhecimento e proteção dos direitos, liberdades e deveres fundamentais dos cidadãos no âmbito de uma sociedade democrática […]”.
Esta lei constitucional dedicou 21 artigos aos direitos fundamentais. Ela ampliou para 21 artigos as normas dedicadas aos direitos fundamentais, destacando-se a questão da nacionalidade (art. 19.º); da família (art. 23.º); da liberdade de expressão, de reunião, manifestação e associação (art. 24.º); do direito à liberdade sindical (art. 25.º); do direito à greve e proibição do lock out (art. 26.º); do direito à liberdade de imprensa (art. 27.º); da consagração de algumas garantias fundamentais (art. 28.º); do direito ao habeas corpus (art. 29.º); do direito ao recurso contencioso (art. 30.º); da proteção dos direitos sociais (arts. 33.º, 34.º, 36.º e 37.º); e, finalmente, do direito à proteção dos cidadãos angolanos residentes no exterior do país. As alterações feitas tiveram como objetivo dar cobertura constitucional para se prosseguir as negociações dos acordos de paz entre o Governo e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), o que se veio a concretizar com a assinatura dos Acordos de Bicesse, a 31 de maio de 1991.
O art. 19.º, dedicado à nacionalidade, veio pôr cobro a uma Lei da Nacionalidade de 1984, lei n.º 2/84, de 7 de fevereiro, que era muito restritiva e que, entre outros aspetos, rejeitava que um cidadão angolano pudesse ter outra nacionalidade. Esta era uma situação inaceitável, uma vez que, devido à situação de guerra civil, muitos cidadãos foram viver para o exterior, adquirindo assim outra nacionalidade.
A liberdade de expressão, de reunião, de manifestação e de associação (art. 24.º), para além de assegurar as liberdades políticas (liberdade de expressão, de reunião e de manifestação), abriu as portas ao multipartidarismo. Criaram-se, assim, formalmente, os primeiros partidos políticos do pós-independência, para além de se legalizar o histórico partido Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Estavam, assim, criadas as condições jurídico-constitucionais para a assinatura dos Acordos de Paz de Bicesse, o que veio a ser feito a 31 de maio de 1991. Estes Acordos tinham como objetivo principal acabar com a guerra civil em Angola e marcar a data das primeiras eleições multipartidárias. Na sequência destes Acordos, realizou-se uma conferência multipartidária com todos os partidos políticos existentes (com exceção da UNITA), onde se discutiu o projeto da Constituição de transição do país e outros projetos de diplomas legais, como sejam, de entre outros, a Lei dos Partidos Políticos, Lei das Associações e Lei do Direito de Reunião e Manifestação. O Governo e a UNITA tiveram, posteriormente, uma série de reuniões, onde se analisaram e discutiram os mesmos diplomas legais.
A Lei Constitucional de 1992 (lei n.º 23/92, de 16 de setembro) ampliou para 35 artigos os dedicados aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, destacando-se os seguintes:
- Direito à vida e proibição da pena de morte (art. 22.º);
- Aplicação direta no ordenamento interno das normas de direitos humanos consagradas na Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos e dos demais instrumentos internacionais de que Angola seja parte (art. 21.º);
- Direito ao ambiente (art. 24.º);
- Direito de locomoção dentro e para fora do país (art. 25.º) (os angolanos necessitavam de visto de saída e de entrada para o país);
- Proibição de extradição e expulsão de cidadãos angolanos do território nacional (art. 27.º);
- Direito dos nacionais, maiores de 18 anos, de participarem ativamente na vida pública (art. 28.º);
- Direito à organização profissional e sindical (art. 33.º) e direito à greve (art. 34.º);
- Direito à liberdade de imprensa (art. 35.º);
- Consagração de garantias fundamentais, como sejam a da proibição de prisão ou julgamento, senão nos termos legalmente estipulados (art. 36.º); regulação dos termos da prisão preventiva (arts. 37.º e 38.º); direito ao recurso ordinário ou extraordinário no tribunal competente (art. 41.º); direito ao habeas corpus (art. 42.º); direito de impugnar e de recorrer aos tribunais contra os atos que violem direitos consagrados na constituição e na lei (art. 43.º);
- Direitos sociais, como o direito ao trabalho (art. 46.º), direito à assistência médica (art. 47.º) e direito à instrução, à cultura e ao desporto (art. 49.º).
A carta de direitos fundamentais na III República (Constituição de 2010 e Revisão Constitucional de 2021)
A Constituição de 2010 consagrou 67 artigos aos direitos e deveres fundamentais, que ficaram divididos em três capítulos. O capítulo I (Princípios fundamentais, art. 22.º a art. 29.º), o capítulo II (Direitos, liberdades e garantias fundamentais, art. 30.º a art. 75.º) e o capítulo III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais, art. 76.º a art. 88.º).
No capítulo I, a Lei Fundamental consagrou o princípio da universalidade (art. 22.º), o princípio da igualdade (art. 23.º) e os direitos dos estrangeiros e apátridas (art. 25.º). Neste capítulo, foi reiterado o princípio da força jurídica dos preceitos constitucionais dedicados aos direitos, liberdades e garantias fundamentais e à sua aplicação direta (art. 28.º), bem como o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (art. 29.º).
O capítulo II, com a epígrafe “Direitos, liberdades e garantias fundamentais”, tem uma secção dedicada aos Direitos e liberdades individuais e coletivas (arts. 30.º a 55.º) e outra atinente à Garantia dos direitos e liberdades dundamentais (ar. 56.º a 75.º).
O capítulo III dedica-se ao tratamento constitucional dos direitos sociais, como sejam os direitos e deveres económicos, sociais e culturais (arts. 76.º a 88.º).
A Lei Magna de 2010, diferentemente da Lei Constitucional de 1992, que era uma constituição de transição para a democracia, reafirmou a opção democrática de regime político e instituiu um país com características que o colocam, por um lado, como país integrante da comunidade jurídica internacional dos Estados democráticos de Direito, como país africano, e que, por outro, possui a sua própria identidade (ARAÚJO, 2018).
O sistema de direitos fundamentais da Constituição em vigor, como um dos elementos fundamentais de um Estado democrático de Direito, visa assegurar a defesa e o respeito da dignidade da pessoa humana. Enquanto princípio estruturante da Constituição angolana, ele é um dever jurídico, um princípio que vincula toda a atuação dos poderes do Estado. Ele coloca o indivíduo no centro da vida política, económica e social, razão pela qual o Estado é apenas um instrumento que serve “as pessoas individuais, assegurando e promovendo a dignidade, autonomia, liberdade e bem-estar dessas pessoas concretas” (NOVAIS, 2004). É nesta perspetiva que a carta de direitos fundamentais deve ser encarada e ser assegurada a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
A justiça constitucional e a proteção dos direitos fundamentais
A justiça constitucional é um mecanismo de defesa dos direitos fundamentais em Angola, sendo assegurada pelo Tribunal Constitucional. A Lei Constitucional de 1992 previu a sua criação, mas a sua instituição deu-se apenas em 2008, através da lei n.º 2/08, de 17 de junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e lei n.º 3/08, de 17 de junho, Lei do Processo Constitucional.
A Lei Constitucional de 1992 atribuía ao Tribunal Constitucional a competência para fazer a apreciação da constitucionalidade de leis (art. 134.º conjugado com o art. 153.º). Aqui, o juiz constitucional apenas analisava e decidia sobre matérias ligadas ao controlo da constitucionalidade das normas jurídicas, agindo apenas como juízes do legislador.
A Lei Orgânica do Tribunal Constitucional ampliou a competência deste órgão, passando este Tribunal a ter igualmente a competência para apreciar os recursos de constitucionalidade interpostos das decisões dos demais tribunais que ofendam princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição de Angola (n.º 4 do art. 21.º da lei n.º 2/08, de 17 de junho). O juiz do Tribunal Constitucional de Angola passou a ser também o juiz dos juízes.
A lei n.º 3/08, de 17 de junho, Lei do Processo Constitucional, introduziu na legislação angolana o Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (REI), como mecanismo de tutela constitucional dos direitos, liberdades e garantias fundamentais. São objeto do REI as sentenças dos tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Lei Magna do país, assim como atos administrativos definitivos e executórios que contrariem princípios fundamentais. Este recurso tem efeito suspensivo e apenas pode ser interposto depois de prévio esgotamento, nos tribunais comuns e demais tribunais, dos recursos ordinários legalmente previstos.
O REI tem as seguintes caraterísticas: a) não é um recurso autónomo em relação à fiscalização concreta da constitucionalidade; b) não possui carácter urgente; c) é um recurso subsidiário e tem um carácter não extraordinário, apesar da sua denominação (GUERRA, 2017). O REI apresenta algumas diferenças em relação ao Recurso de Amparo de Espanha, pelas seguintes razões:
REI | Recurso de Amparo de Espanha |
Não é um recurso autónomo em relação à fiscalização concreta da constitucionalidade. É apresentado perante o Tribunal Constitucional quando exista a violação de princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais. | É um recurso autónomo, apresentado perante o Tribunal Constitucional quando se está perante a violação concreta e determinada de um direito fundamental
|
É um recurso subsidiário, uma vez que apenas pode ser apreciado pelo Tribunal Constitucional depois do esgotamento prévio dos recursos jurisdicionais nos tribunais de jurisdição comum | Este recurso tem um carácter subsidiário, uma vez que o Tribunal Constitucional apenas o pode conhecer e decidir após esgotamento dos recursos jurisdicionais nos tribunais de jurisdição comum. |
Não tem carácter extraordinário, apesar da sua denominação. | Tem carácter extraordinário, uma vez que apenas se pode suscitar perante o Tribunal Constitucional pretensões dirigidas a restabelecer ou preservar os direitos ou liberdades previstas na Constituição espanhola. |
O REI tem ganho uma importância cada vez maior no funcionamento do Tribunal Constitucional, como se pode verificar na estatística apresentada.
Fonte: Tribunal Constitucional de Angola.
Os baixos números de processos analisados em 2022 podem encontrar a sua justificação pelo facto de ter sido um ano em que se realizaram as eleições gerais, uma vez que o Tribunal Constitucional funciona como tribunal eleitoral. Os Recursos Extraordinários de Inconstitucionalidade representam, neste momento, 76,5% dos processos julgados no Tribunal Constitucional de Angola.
Bibliografia
ARAÚJO, R. C. V. (2018). Introdução ao Direito Constitucional Angolano. Luanda: CEDP/UAN.
GUERRA, R. M. (2017). O Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade – Problemas da Configuração do Regime e da Natureza Jurídica. Lisboa: Universidade Católica Editora.
NOVAIS, R. (2004). Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora.
Autor: Raul Araújo