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  • Constitucionalismo Brasileiro [Dicionário Global]

    Constitucionalismo Brasileiro [Dicionário Global]

    Próximo de completar 200 anos em 2024, o constitucionalismo brasileiro é uma construção com avanços e recuos. Assombrado por regimes autoritários e pelo passado colonial, a sua evolução sofreu a influência do constitucionalismo francês, do norte-americano e do alemão. Embora atualmente possamos considerar viver sob um constitucionalismo(®) de cariz democrático, com a vigência de uma Constituição cidadã, existe na doutrina a opinião de que o projeto constitucional ainda permanece inacabado por não ter conseguido libertar-se das suas sombras, nomeadamente, uma vocação de perpetuidade governativa e a dominação por uma classe política insensível e responsável pelas desigualdades sociais e regionais (BONAVIDES, 2000, 155).

    A história constitucional brasileira conta até ao momento com sete constituições, em que a primeira Carta Constitucional data de 1824 e a mais jovem de 1988. Sete constituições, sete momentos constituintes, sete visões de direito marcados pela “instabilidade e falta de continuidades das instituições” (BARROSO, 2015, 482).

    Antecedentes

    O modelo colonial adotado pela metrópole portuguesa em Terras Brasilis foi do tipo extrativista, simbolizado por uma gestão privada – as capitanias hereditárias –, resultou em porções de terra doadas a particulares cuja finalidade seria colonizar e defender. Face a essa opção, o poder político e administrativo esteve disperso, não havendo qualquer relação entre as doze capitanias. Deste modo, o primeiro sistema de organização ocorreu apenas em 1549 com o estabelecimento dos governadores-gerais. O regimento da função conferia aos seus titulares poderes de governação político-militar, delimitando as competências e exigindo respeito às leis(®), forais e privilégios. Para além dos governadores-gerais, o cenário político-administrativo passou a ser composto por ouvidor-mor, procurador da fazenda e capitão-mor.

    O surgimento de centros administrativos (autónomos) e, posteriormente, de municípios foi fruto da divisão territorial, primeiramente em dois grandes estados – estado do Brasil (do Rio Grande do Norte até São Vicente) e estado do Maranhão (do Ceará até ao extremo norte) –, a que ainda se associaram fatores económicos, sociais e geográficos, especialmente a exploração agrícola. Porém, em 1815, o status de colónia foi alterado, após a chegada da família real à cidade do Rio de Janeiro (1808). Com a fase monárquica, o Brasil foi elevado à categoria de Reino Unido a Portugal, com a lei de 16 de dezembro de 1815, o que consequentemente marcou o fim do período colonial e impulsionou o desenvolvimento político, administrativo e económico em razão da instalação de repartições públicas, tribunais, indústrias, abertura de portos e a expansão do comércio. Contudo, na prática, esse cenário proto-desenvolvimentista não teve efeitos para além dos limites do município do Rio de Janeiro.

    O Estado brasileiro surgiria de fato com a proclamação da independência em 7 de setembro de 1822. Adotando a forma de governo imperial, o primeiro problema de ordem constitucional pautou-se pela definição de uma unidade nacional. Era necessário estabelecer um poder central e uma organização nacional que ao mesmo tempo substituísse a pluralidade de poderes regionais e locais que haviam sido formados, mas sobretudo que respeitasse a teoria política que se iniciava na época: o constitucionalismo(®) (SILVA, 2005, 74).

    Constituição política do império (1824)

    O primeiro movimento constitucional nacional seria desencadeado pela aristocracia intelectual que licenciada na Europa, especialmente, pela Universidade de Coimbra, transportou as ideias divulgadas pelas revoluções liberais, para os principais centros culturais localizados no Rio de Janeiro e em Pernambuco. Palavras como “liberalismo”(®), “parlamentarismo”, “constitucionalismo”, “federalismo(®)”, “democracia(®)” e “república” passaram a agitar os pensadores nacionais, cogitando-se inclusive que fosse aplicada a Constituição do Porto, elaborada pela metrópole (SILVA, 2005, 73-74). Contudo, o efetivo caminho constitucional brasileiro iniciou-se com um passo para trás. Em novembro de 1823, o imperador D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte e Legislativa, à qual competia a elaboração da primeira Constituição, por entender que o projeto em discussão não era digno de sua pessoa, e, num discurso proferido em 3 de maio de 1823, se autodeclarou imperador constitucional e defensor perpétuo do Império (BARROSO, 2015, 48; BONAVIDES et al., 1991, 25). O seu ato, de estilo napoleónico, correspondeu a uma reação ao projeto de matriz liberal, que limitava os poderes do imperador (concretamente, limitava o poder de veto e de dissolução da Câmara dos Deputados), bem como subordinava as forças armadas ao Parlamento.

    Em meio a este cenário, seria outorgada pelo Conselho de Estado, em 25 de março de 1824, a primeira Constituição – Constituição Política do Império do Brasil –, popularmente designada de Constituição imperial, que reafirmou a independência, ao reconhecer que o Brasil era uma associação política de cidadãos que formavam uma nação livre e que não admitia laços de união ou federação com outras nações (art. 1.º), passando o território a estar dividido em províncias (art. 2.º) e adotando como tipo de governo a monarquia hereditária (art. 3.º). Todavia, o modelo de separação de poderes(®) adotado foi a proposta de Benjamin Constant, que estabelecia coexistir, para além dos poderes legislativo, executivo e judiciário, um poder moderador (art. 10.º).

    O poder moderador, exercido pelo imperador (que também acumulava a função de chefe supremo da nação), correspondia a uma espécie de poder dos poderes, visto autorizar o seu titular a exercer influência sobre os demais poderes. Assim, o imperador poderia: (i) dissolver a Câmara dos Deputados e escolher os senadores, atuando assim sob o poder legislativo; (ii) suspender os magistrados, interferindo no judiciário; e (iii) escolher e exonerar os ministros, agindo diretamente no poder executivo. Em razão desta opção, no Brasil imperial “o rei reinava, governava e administrava” (SILVA, 2005, 76). Contudo, o período imperial seria marcado por uma série de movimentos e rebeliões (Balaiada, 1838-1841; Cabanada, 1832-1835; Sabinada, 1837-1838; República de Piratini, 1836), deflagradas pelos opositores ao sistema político – os federalistas –, cujo objetivo era a implantação de uma monarquia federal, mas também por movimentos favoráveis à adoção da forma de república, como a Inconfidência Mineira (1789) e a Revolução de Pernambuco (1817).

    Com o decreto n.º 1 de 15 de novembro de 1889, o federalismo torna-se o princípio que estrutura o Estado, dando fim à fase do império, passando o poder a estar nas mãos de republicanos, civis e militares (SILVA, 2005, 77).

    Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891)

    Em 3 de dezembro de 1889, o então governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca nomeou uma comissão para a elaboração do projeto de uma nova constituição que serviria após a sua publicação como texto-base para as discussões travadas pela Assembleia Constituinte (decreto n.º 510 de 22 de junho de 1890).

    Em 24 de fevereiro de 1891, foi aprovada a primeira Constituição republicana, cujas principais medidas foram: (i) a adoção do federalismo como forma de Estado e do presidencialismo, ao estilo norte-americano, como forma de governo; (ii) o fim do regime vitalício do Senado; (iii) a adoção da tripartição de poderes de Montesquieu(®), em substituição do modelo anterior; (iv) alteração do estatuto das províncias, que passaram a ser estados, e do município neutral, que se tornou o Distrito Federal; e (v) a adoção de uma declaração de direitos dedicada à liberdade(®), segurança individual e propriedade(®). O projeto republicano de matriz liberal tinha, portanto, como objetivo que a lei maior neutralizasse (ainda que teoricamente) o poder pessoal dos governantes, afastando-se da proposta da Constituição anterior (BONAVIDES et al., 1991, 249-252).

    Entretanto, como declarado por Amaro Cavalcanti, na 7.ª sessão do Congresso Constituinte de 13 de dezembro de 1890 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1924, 530), a Constituição republicana não foi um projeto original, pois o seu articulado assentava em valores e princípios(®) que correspondiam “[…] ao texto da Constituição norte-americana, completado com algumas disposições das Constituições suíça e argentina”. Este relato, aponta José Afonso da Silva (2005, 79), era uma justificativa para a discrepância entre o texto constitucional e a realidade nacional, ilustrada pela falta de eficácia social e os conflitos de poderes.

    Após as eleições de 1891, o Marechal Deodoro da Fonseca assume o cargo de presidente e Floriano Peixoto (também militar) o de vice. Face às tentativas da oposição, feitas por Prudente de Moraes, para destituição do governo através do impeachment (instrumento que ainda necessitava ser regulamentado), o presidente dissolveu o Congresso, declarou estado de sítio e, posteriormente, renunciou ao cargo. Empossado como novo presidente, Peixoto optou por contrariar a sua obrigação constitucional de convocar novas eleições, permanecendo no cargo e exonerando os governadores. Sobre essa sucessão presidencial e o espírito da época, Bonavides et al. (1991, 254) alertam que “[o]s militares não prestaram à Constituição o respeito devido, principalmente porque o princípio federativo lhes era estranho, dotados que eram de um desejo de centralização e hierarquia mal disfarçados”. Como descreve Afonso da Silva (2005, 79), “estala a guerra civil”.

    Por sua vez, o próximo presidente, Prudente de Moraes (1894-1898), foi o responsável por reintroduzir a oligarquia no poder, fortalecendo os poderes regionais e locais em detrimento do poder central, o que passaria à História como a política dos governadores ou o fenómeno do coronelismo. Este fenómeno correspondeu a um sistema extralegal, dotado de um poder real e efetivo, com base na coerção da força e na lei oral, com influência suficiente para eleger governadores, senadores, deputados e inclusive o presidente da república. Como resultado, o regime do coronelismo contribuiu também para a dissonância entre a realidade e a Constituição (SILVA, 2005, 79-80).

    2.ª Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934)

    Com a chegada do século XX, a Constituição de 1891 passou por uma grande reforma em 1926, visando alterações institucionais que, na prática, em nada modificaram a vida política quotidiana dos cidadãos (BONAVIDES et al., 1991, 255). Atuavam neste cenário partidos políticos que não representavam a vontade nacional, o que fomentou desde a política do coronelismo aos movimentos do Cangaço e da Jagunçada, nos sertões do Nordeste, que exemplificam os desequilíbrios sociais. Com uma população insatisfeita, a crise da lavoura do café e o nascimento do sindicalismo(®) nacional, a paisagem esteve a poucos passos para uma revolta armada. Essa inquietude rapidamente inflamaria os quartéis militares.

    Nesta sequência de fatos, deflagrou a Revolução de 1930 – em verdade, um golpe de Estado – e subiu ao poder Getúlio Vargas, que, através do decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930, para além de instituir um governo provisório, atribuiu a esse mesmo governo o exercício cumulativo das funções do executivo e do legislativo até que fosse eleita uma assembleia constituinte. Mais, também dissolveu o Congresso Nacional, bem como todas as assembleias legislativas estaduais e as câmaras municipais, suspendeu as garantias constitucionais e retirou do judiciário a competência de apreciar os atos e decretos do governo. Em relação ao coronelismo, promoveria uma série de reformas, como o desarmamento dos coronéis e o fim da política dos governadores. Vargas dedicou também atenção ao sistema eleitoral, decretando em 1932 o Código Eleitoral, que instituiu uma justiça eleitoral com competência para validar os processos eleitorais. Neste mesmo ano de 1932, teve lugar a Revolução Constitucionalista liderada pelo estado de São Paulo.

    Sob um clima de desconfiança e protestos, a Assembleia Constituinte prevista no citado decreto aprovou a segunda Constituição da República, promulgada em 16 de julho de 1934 (SILVA, 2005, 81-82; BONAVIDES et al., 1991, 275-279). Embora esse texto não fosse bem estruturado, apresentou novos conteúdos, ampliando os poderes da União e do poder executivo; adotou uma posição mais rigorosa frente à matéria dos tributos; modificou também o poder legislativo, que passou a ser composto apenas pela Câmara dos Deputados, passando o Senado a ser um órgão que atuava em colaboração com aquele; e, no campo político, instituiu o voto feminino; um catálogo de direitos individuais; um título dedicado à ordem económica e social e outro destinado à família(®), educação e cultura, inaugurando assim o Estado Social(®), resultado de uma clara influência da Constituição de Weimar.

    3.ª Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1937)

    Embora Getúlio Vargas tenha sido o responsável por promover reformas desenvolvimentistas, com o texto de 1934, em verdade, repetiu um comportamento do passado, ao revogar a Constituição de 1934 e outorgar uma nova Carta Constitucional em 10 de novembro de 1937, instaurando o Estado Novo.

    A Constituição de 1937 atribuiu novas funções ao poder executivo, como a possibilidade de emitir decretos-leis, reduzir o papel do Parlamento nacional e reformar o sistema representativo, inspirou-se na Constituição da Polónia – o que lhe rendeu a alcunha de “a Polaca” – e reproduziu elementos dos regimes autoritários europeus. Coube também a esta Constituição delegar ao Estado a função de orientar/coordenar a economia nacional, cuja efetivação originou uma série de nacionalizações, e ainda modernizou o aparelho burocrático do Estado, incentivou a industrialização e implantou um programa de proteção do trabalho nacional, a partir da premissa da defesa do mercado nacional, com repercussão até aos dias atuais.  No entanto, como todas as funções dos poderes executivo e legislativo foram alocadas ao presidente da república, a Constituição de 1937 foi uma letra morta, sofrendo 21 emendas através de leis constitucionais que modificavam o seu texto “[…] ao sabor das necessidades e conveniências do momento e, não raro, até do capricho do chefe do governo” (SILVA, 2005, 83). Edgard Carone (1976, 142) descreve a Constituição de 1937 como sendo “[…] uma amálgama entre fórmulas fascistas, nacionalistas e de caráter liberal, a última como solução de camuflagem”.

    4.ª Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1946)

    No período pós-Segunda Guerra, enquanto o Brasil ainda permanecia sob o governo de Vargas, teve início, especialmente na Europa, um movimento de recomposição e reformulação dos princípios constitucionais (SILVA, 2005, 83-84), que influenciou um movimento nacional de oposição ao Estado Novo. Após a saída de Vargas e a posse de um governo militar, liderado pelo general Eurico Gaspar Dutra, foi instaurada uma assembleia constituinte, na qual encontrava-se representada uma panóplia de correntes políticas, da direita conservadora, passando pelo centro democrático e progressista, à esquerda socialista(®) e comunista (estes pela primeira vez com assento). Todavia, diferente das cartas anteriores, que possuíam um anteprojeto, os documentos que serviram de inspiração foram as constituições de 1891 e 1934, recuperando assim o princípio federativo, a autonomia dos municípios, a liberdade religiosa e de culto, a liberdade de pensamento (exceto no que tocava aos espetáculos públicos), e estabeleceram também que o estado de sítio seria matéria reservada ao Congresso Nacional, que retornava ao bicameralismo (ou seja, reintroduzia a Câmara dos Deputados e o Senado). Como novidade, o art. 146.º determinava limites à intervenção estatal no setor económico, tendo em atenção o interesse público e os direitos fundamentais(®), o que seria interpretado pela doutrina como sendo o ponto de equilíbrio entre o Estado social(®) e o Estado de direito(®) (BONAVIDES et al., 1991, 412).

    Contudo, embora esse momento possa ser considerado como de redemocratização do Brasil, uma vez que teve como fontes as antigas cartas, argumenta a doutrina que houve também uma repristinação dos problemas e discrepâncias entre a realidade e o texto constitucional. Conforme destaca Afonso da Silva (2005, 85), a Magna Carta “nasceu de costas para o futuro, fitando saudosamente os regimes anteriores”. Mais uma vez, “[n]inguém percebeu que a Constituição por si só não poderia garantir os princípios expressos em seu texto” (BONAVIDES et al., 1991, 410). A Constituição de 1946 permaneceria em vigor até ao movimento armado de 1964, ano no qual as estruturas constitucionais colapsaram.

    Constituição do Brasil (1967)

    O movimento de 1964 encetou o segundo golpe de Estado durante o século XX no Brasil. Encabeçado por uma junta militar, a bandeira do movimento pregava a devolução da democracia ao país e a busca por um milagre brasileiro. Entretanto, novamente o caminho escolhido foi o da centralização e fortalecimento do poder executivo, que chancelou prisões políticas e a aplicação de práticas de tortura(®) aos que seguiam ou simpatizavam com o presidente deposto, com os partidários de ideologias de esquerda (conformando uma espécie de expurgo ideológico) e com os que se pronunciavam contra o regime autoritário (BONAVIDES et al., 1991, 429-431 ss.; SILVA, 2005, 86).

    No decurso da política adotada, entre os anos de 1964 e 1966 foi instituído o regime dos atos institucionais (AIs), que deu origem inicialmente a quatro atos e 15 emendas constitucionais que visavam reformar os poderes legislativo e judiciário, mas também o sistema financeiro e tributário. Assim, as principais medidas implementadas via atos institucionais foram: (i) a suspensão e restrição das garantias constitucionais individuais, com destaque à supressão dos direitos políticos(®) e a possibilidade de cassação de mandatos legislativos nas três esferas – federal, estadual e municipal – sem direito de apreciação judicial, que ficou conhecido por cláusula de excludência (AI-1); (ii) a extinção dos partidos políticos, a adoção do modelo de eleição indireta para os cargos de presidente da república e vice, a atribuição de competências ao presidente da República para emitir atos complementares e decretos-leis em matéria de segurança nacional, bem como a possibilidade de decretar o encerramento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas em caso de estado de sítio (ou fora dele) (AI-2); (iii) a estatuição de eleição indireta para os cargos de governadores e vice-governadores (AI-3); e (iv) a convocação do Congresso Nacional para a discussão de proposta de uma nova Constituição (AI-4) (BONAVIDES et al., 1991, 430; BARROSO, 2015, 483).

    De acordo com a doutrina, os AIs foram a manifestações de uma “[…] legalidade paralela e supraconstitucional do regime militar” (BARROSO, 2015, 485), muito apreciada pelos chefes do executivo, como demonstra a gestão do Presidente marechal Castelo Branco, autor de três atos institucionais, 36 atos complementares, 312 decretos-lei e 3746 atos punitivos no espaço de apenas um ano (entre 1965 e 1966) (BONAVIDES et al., 1991, 432). Todavia, num futuro próximo, seria publicado em 1968 mais um ato institucional, o famoso AI-5, que, para além de englobar as medidas previstas nos atos anteriores, acrescentou ao poder executivo novas competências, quais sejam: (i) a possibilidade de intervenção direta nos estados e municípios; (ii) a suspensão do habeas corpus(®); (iii) a determinação de consequências específicas para os casos em que os direitos políticos fossem cassados; e, por fim (iv) concessão do poder absoluto ao presidente da República para decretar o estado de sítio. Este período ficou marcado pelo acirramento da censura à imprensa e às artes, a perseguição violenta aos opositores políticos e a extinção da atividade política, sendo identificado na História pela expressão “anos de chumbo” (BARROSO, 2015, 484).

    Entretanto, cerca de um ano antes da adoção do AI-5, entrou em vigor, em 15 de março de 1967, uma nova constituição, sob a presidência do marechal Arthur Costa e Silva, designada a “Carta Super-polaca” (CAPANEMA, 1987, itálico nosso), cuja vontade original não esteve representada por uma assembleia constituinte, mas sim pelo poder constituinte congressual, que nasceu da transformação do órgão legislativo em organismo reformador, pautado pela falta de independência dos seus membros e que teve como finalidade evitar uma assembleia popular (BONAVIDES et al., 1991, 432-433).

    Inspirada na Carta de 1937, o conteúdo da Constituição de 1967 estava vocacionado para a segurança nacional e para novas atribuições de poderes à União e ao presidente da República, reformulou novamente o sistema tributário e a discriminação das rendas, ampliou a técnica do federalismo cooperativo, atualizou o orçamento e os programas plurianuais de investimento, implementou medidas de combate à inflação, reduziu a autonomia individual e suspendeu direitos e garantias fundamentais, limitando por exemplo o direito à propriedade.

    Em 1969, a Emenda Constitucional n.º 1 modificou a Constituição de 1967, gerando um debate doutrinário que dividiu opiniões entre os autores que consideravam ser tecnicamente a EC n.º 1 uma nova constituição outorgada – defendem esta linha de pensamento Afonso da Silva (2005) e Barroso (2015) – e os que argumentavam que, como o sistema não teria sido alterado pela EC n.º 1, não se poderia considerar que a carta em vigor tivesse sido revogada, mas sim sofrido uma substancial alteração – posição defendida, por exemplo, por Pontes de Miranda (1970) e Pinto Ferreira (1974).

    Constituição da República Federativa do Brasil (1988)

    Durante o período da Ditadura Militar, foram constantes as manifestações populares contrárias ao regime, especialmente após o AI-5. Assim, a partir de 1982-1084, coligaram-se aos movimentos da sociedade civil organizações associativas como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa e os sindicatos dos trabalhadores, com o apoio também da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que clamavam por uma alteração na ordem constitucional e no pacto social. Era necessário um reequilíbrio, que deveria começar por reinstituir as eleições diretas a cargos como o de presidente da República. Foi neste cenário que decorreu o movimento popular conhecido por Diretas Já.

    Entretanto, as eleições decorridas em 1985 ainda se pautaram pelo método indireto, assumindo o poder Tancredo Neves, sob o slogan da Nova República, de base democrática e social, que promoveria um programa de transição. Todavia, quem daria o passo concreto para a abertura democrática seria o vice de Neves, José Sarney, que assumiu a presidência após o falecimento do primeiro, dando cumprimento ao programa. Sarney, no uso das suas atribuições, instituiu uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (decreto n.º 91.450, de 18 de julho de 1985) composta por “notáveis” a quem competia pesquisar os interesses da nação. Contudo, o relatório produzido pela Comissão acabou por não servir de anteprojeto. Entretanto, na sequência, encaminhou para o Congresso Nacional a proposta de convocação de uma constituinte. Neste contexto, a Assembleia Nacional Constituinte – livre e soberana – foi convocada através da Emenda Constitucional n.º 26, de 27 de novembro de 1985. Em verdade, esta Assembleia foi composta pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado, sob a presidência do presidente do Supremo Tribunal Federal, cujo trabalho, embora tenha sido dificultado pela ausência de um anteprojeto, deu origem à Constituição Federal da República de 1988, conhecida como Constituição Cidadã (BARROSO, 2015, 490; SILVA, 2005, 88-89). Com um texto inovador e distante das suas congéneres pretéritas, o seu corpo é composto por nove títulos, que se dedicam: (i) aos princípios fundamentais; (ii) aos direitos e garantias fundamentais; (iii) à organização do Estado; (iv) à organização dos poderes; (iv) à defesa do Estado e das instituições democráticas; (vi) à tributação e ao orçamento; (vii) à ordem económica e financeira; (viii) à ordem social; e (ix) às disposições constitucionais gerais, perfazendo atualmente um total de 250 artigos e 120 artigos na parte destinada aos Atos das Disposições Transitórias.

    Com três décadas de vigência, a carta de 1988 tem, até ao momento, assegurado a estabilidade institucional, a alternância democrática no poder de partidos com espectros políticos distintos e um longo catálogo de direitos fundamentais, embora também já tenha tido encontros com episódios de crise (como, por exemplo, os dois impeachments presidenciais). Todavia, é consenso na doutrina que o seu texto é a representação da vitória de “[…] gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional” (BARROSO, 2015, 482), ou seja, encerra em si a consolidação da passagem de um Estado autoritário para um Estado democrático de Direito.

    Bibliografia

    BARROSO, L. R. (2015). Curso de Direito Constitucional Contemporâneo (5.ª ed.). São Paulo: Saraiva.

    BONAVIDES, P. (2000). “A evolução constitucional do Brasil”. Estudos Avançados, 14, 40, 155-176.

    BONAVIDES, P. et al. (1991). História Constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

    CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL (1924). Annaes do Congresso Constituinte da República (vol. I) (2.ª ed.). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.

    CAPANEMA, G. (1987). Constituição. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.

    CARONE, E. (1976). A Terceira República: 1937-1945. São Paulo: Difel.

    FERREIRA, P. (1974). Curso de Direito Constitucional (vol. 1) (3.ª ed.). São Paulo: Saraiva.

    JOBIM, N. de A. (2004). “A Constituinte vista por dentro – Vicissitudes, superação e efetividade de uma história real”. In J. A. L. Sampaio (coord.). Quinze Anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey.

    LEAL, A. (2014). História Constitucional do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial.

    LIMA, J. A. de O. (2013). A Gênese do Texto da Constituição de 1988. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas.

    MIRANDA, P. de (1970). Comentários à Constituição de 1967: Com a Emenda n.º 1 de 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais.

    SILVA, J. A. da (2005). Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores.

    Autora: Larissa A. Coelho

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