• PT
  • EN
  • Constitucionalismo Cabo-verdiano [Dicionário Global]

    Constitucionalismo Cabo-verdiano [Dicionário Global]

    Os Direitos Humanos na Constituição Cabo-Verdiana de 1992

    1. Poderíamos começar por dizer que a Constituição cabo-verdiana de 1992 é amiga e protetora dos direitos humanos. É amiga porque dedica-lhe três títulos em que, como veremos adiante, consagra um conjunto complexo de direitos fundamentais para a pessoa humana, permitindo até que “As leis ou convenções internacionais poderão consagrar direitos, liberdades e garantias não previstos na Constituição” (art. 17.º). Mas, a Constituição não se esqueceu de assegurar a tutela efetiva mista – jurisdicional e não jurisdicional – desses direitos, quando estabelece no seu art. 17.º, que tem por epígrafe “Âmbito e sentido dos direitos, liberdades e garantias”, um complexo conjunto articulado de normas-garantias dos direitos humanos. Assim, para assegurar o integral respeito desses direitos, proíbe no n.º 2 desse art. 17.º a restrição desses direitos pela via da interpretação – “[A] extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos pela via da interpretação” – e consagra a Declaração Universal dos Direitos do Homem como instrumento parametrizador da interpretação das normas relativas aos direitos fundamentais – “[As] normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Finalmente, proíbe a retroatividade das leis restritivas dos direitos fundamenais e não permite que essas leis diminuam o conteúdo e a extensão desses direitos.

    1. Nesta Constituição os direitos humanos estão organizados por “títulos” e estes desdobram-se em “capítulos”, sendo que cada título trata de uma especifica categoria de direitos. Assim:

    1. No título I, “Princípios Gerais”, consagra-se as seguintes matérias: Reconhecimento da inviolabilidade dos direitos, liberdades e garantias (art. 15.º); Responsabilidade das entidades públicas (art. 16.º); Âmbito e sentido dos direitos, liberdades e garantias (art. 17.º); Força Jurídica (art. 18.º); Direito de resistência (art. 19.º); Tutela dos direitos, liberdades e garantias (art. 20.º); Provedor de Justiça (art. 21.º); Acesso à Justiça (art. 22.º); Princípio de universalidade (art. 23.º); Princípio da igualdade (art. 24.º); Estrangeiros e apátridas (art. 25.º); Regime dos direitos, liberdades e garantias (art. 26.º); e Suspensão dos direitos liberdades e garantias (art. 27.º).

    Estabelecem-se neste título o que poderíamos denominar de regime geral (principiológico e normativo) dos direitos fundamentais da pessoa humana, que recobre os demais títulos, bem como o regime das garantias do exercício e da proteção desses direitos.

    1. O título II, “Direitos, Liberdades e Garantias Individuais”, oferece um catálogo de direitos, liberdades e garantias que a Constituição assegura a toda a pessoa que viva ou transita pelo território do Estado cabo-verdiano, abrindo o capítulo I com a consagração do mais importante e decisivo direito da pessoa humana, o direito á vida, e à integridade física e moral, sem o qual nenhum outro pode ser operatório. Assim, e sem pretender ser exaustivo:
    2. 1) No capítulo I: o direito à vida, e à integridade física e moral (art. 28.º); o direito à liberdade (art. 29.º); o direito à liberdade e à segurança pessoal (art. 30.º); e, em síntese, um conjunto complexo de direitos que asseguram o exercício da liberdade, com destaque para a regulação dessa matéria no direito e no processo penal, através da consagração do regime da prisão preventiva (art. 31.º); aplicação da lei penal (art. 32.º); proibição da prisão perpétua ou de duração ilimitada (art. 33.º); princípios do processo penal, desde logo a presunção da inocência, a escolha do defensor, o direito de não prestar declarações sobre factos que lhe sejam imputados (art. 35.º); habeas corpus (art. 36.º); as inviolabilidades do domicílio e da correspondência (arts. 43.º e 44.º); o habeas data, direito este de extrema importância na atualidade (art. 46.º); liberdade de expressão e de informação (art. 48.º); liberdade de aprender, de educar e de ensinar (art. 50.º); liberdade de deslocação e de emigração (art. 51.º), que é um direito que o cabo-verdiano historicamente sempre exerceu e de que não prescinde; liberdade de associação (art. 52.º); liberdade de reunião e de manifestação (art. 53.º).
    3. 2) No capítulo II, a Constituição consagra um amplo conjunto de direitos de participação política e de exercício da cidadania, que recobre os arts. 55.º a 60.º, nomeadamente o direito à participação na vida pública, o direito de participação na direção dos assuntos públicos, o direito de participação na organização do poder político, direito de antena, direito de petição e de ação popular e liberdade de imprensa.
    4. 3) O capítulo III trata dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, iniciando-se com ao reconhecimento constitucional do direito ao trabalho (art. 61.º); e prosseguindo com o direito à retribuição (art. 62.º); e outros direitos (art. 63.º); liberdade de associação profissional e sindical (art. 64.º); liberdade de inscrição em sindicatos (art. 65.º); direito à greve e proibição do lock-out (art. 67.º).

    1. O título III, “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais” – arts. 68.º a 82.º – dedica-se à iniciativa privada, aos direitos de propriedade privada, à segurança social, à saúde, à habitação e ao ambiente. Mas, também aqui, a Constituição não se esquece dos direitos da família, que define como célula base de toda a sociedade, das crianças, dos jovens e dos idosos, bem como do direito à educação, à cultura e ao desporto.

    1. Importa dizer que nesta Constituição há lugar para o que ela designa por deveres fundamentais – arts. 83.º a 86.º –, pois entende-se que não basta consagrar direitos, sendo que, para que estes possam ser efetivados e respeitados, não pode deixar-se de impor a cada um dos titulares daqueles direitos deveres para com a família, a sociedade e o Estado, bem como o respeito pela liberdade dos outros. Impõe-se ainda a cada indivíduo o dever de não discriminar o seu semelhante e de respeitar a Constituição e as leis. Deste modo, o cidadão cabo-verdiano e os estrangeiros que vivem no território nacional recebem da Constituição direitos, mas esta impõe-lhes correlativos deveres, por se entender que o exercício de direitos implica o cumprimento de deveres conexos à concretização do gozo, pelos outros, desses direitos.

    1. Mas, se a Constituição se limitasse a consagrar um catálogo de direitos, sem oferecer garantias jurídico-constitucionais capazes de assegurar não só a proteção desses direitos, como ainda o seu efetivo exercício, mesmo contra o Estado, estaríamos perante um texto semanticamente interessante, mas vazio de dimensão concretizadora. Exatamente porque a Constituição quer que essa dimensão se realize quotidianamente e não quer que os poderes públicos impeçam o exercício dos direitos, ela teve o cuidado de estabelecer mecanismos jurisdicionais, não jurisdicionais e mistos (jurisdicional e não jurisdicional) de tutela desses direitos.

    1. No que se refere à tutela jurisdicional, a Constituição consagra no seu art. 20.º um instrumento específico e célere, o recurso de amparo, e no art. 22.º, instrumentos clássicos e normais de acesso à justiça, a saber:

    No que se refere ao recurso de amparo, diz o art. 20.º que: “a todos os indivíduos é reconhecido o direito de requerer ao Tribunal Constitucional, através do recurso de amparo, a tutela dos seus direitos, liberdades e garantias fundamentais, constitucionalmente reconhecidos, nos termos da lei” e com observância do disposto nas alíneas a) e b) para a interposição desse recurso.

    Faz-se notar que a Constituição cabo-verdiana é a primeira Constituição lusófona a consagrar esse recurso, estabelecendo que “pode ser requerido em simples petição, tem carácter urgente e o seu processamento deve ser baseado no princípio da sumariedade”. Trata-se, portanto, de um mecanismo simples, despido de formalismos e que impõe urgência decisória. Trata-se ainda de um recurso que pode ser interposto contra todos os poderes públicos, incluindo o judicial, o que, aliás, era reconhecido expressamente no texto original consagrador desse recurso, em 1992 – art. 20.º alínea a), quando aí se referia aos poderes públicos, estabelecendo expressamente que esse recurso “só pode ser interposto contra actos ou omissões dos poderes públicos lesivos dos direitos liberdades e garantias fundamentais, depois de esgotadas todas as vias de recurso ordinário”.

    Já no que se refere a instrumentos clássicos e normais de acesso à justiça, a Constituição, no seu art. 22.º, confere a todos o direito de recorrer aos Tribunais para a tutela dos seus direitos em prazo razoável e proíbe a denegação da justiça por insuficiência de meios económicos ou indevida dilação da decisão. Para além disso, para proteger bens essenciais coletivamente relevantes para o efetivo gozo dos direitos fundamentais, como a saúde, a habitação, o meio-ambiente, a qualidade de vida e o património cultural, confere a cada um ou a associações de defesa desses interesses difusos “o direito de promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra esses direitos […]” – art. 22.º, n.º 2  – concedendo assim a pessoas coletivas o direito de defender esses interesses difusos.

    1. No que se refere à tutela não jurisdicional desses direitos, esta é assegurada pelo provedor de Justiça – art. 21.º –, a quem “todos podem apresentar queixas, por acções ou omissões dos poderes públicos” e pelo direito de resistência – art. 19.º –, quando se reconhece “a todos os cidadãos o direito e não obedecer a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão ilícita, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

    1. O mecanismo misto de tutela dos direitos fundamentais tem uma dupla natureza, a jurisdicional e a não jurisdicional, e está estabelecido no n.º 2 do art. 17.º, onde se proíbe a restrição desses direitos pela via da interpretação – “[A] extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos pela via da interpretação”. Na verdade, sob o ponto de vista jurisdicional, esta disposição proíbe os juízes de fazer interpretações restritivas desses direitos, impondo-lhes até, de forma indireta, que a interpretação jurisdicional deverá ser no sentido de conceder máxima amplitude prática e o mais elevado nível de proteção desses direitos, e deverá ser conforme com o sentido internacionalmente atribuído a essas normas pela doutrina e pela jurisprudência internacional, o que resulta da disposição do art. 17.º, n.º 3. De facto, essa disposição constitucional estabelece que “[As] normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”. É assim imposto aos juízes o dever de aceder ao Direito Internacional dos Direitos do Homem, no momento em que exercem a sua função judicativa de interpretação e de integração dos direitos fundamentais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem é assim constituída em instrumento parametrizador da interpretação e da integração das normas relativas aos direitos fundamentais, sem prejuízo da consagração desses direitos em convenções internacionais – como acontece com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos – que também devem ser considerados judicialmente, no momento da interpretação e da integração dessas normas.

    Sob o ponto de vista da tutela não jurisdicional, essa proibição de restrição dos direitos fundamentais pela via da interpretação aplica-se às entidades administrativas, no quadro dos procedimentos administrativos que impliquem a tarefa de interpretar e de integrar essas normas, o que está também consagrado no n.º 2 do art. 17.º.

    1. Resulta do que se acaba de expor que a Constituição da República de Cabo Verde de 1992 consagra um extenso e sólido catálogo de direitos humanos que não pretende constituir em mera semântica constitucional. Por isso, faz acompanhar esse catálogo de robustos e eficazes mecanismos, a nível jurisdicional, não jurisdicional e misto de tutela desses direitos, oferecendo assim, quer aos cidadãos nacionais, quer aos estrangeiros que vivam ou transitem pelo território de Cabo Verde, os instrumentos indispensáveis à defesa e ao efetivo gozo desses direitos. Desta forma, contribui para a consolidação e para a prática de uma cultura de respeito pelos direitos fundamentais e estimula o efetivo gozo desses direitos.

    Bibliografia

    BRITO, W. et al. (2009). Aspectos Polémicos da Extradição em Cabo Verde e no Espaço Lusófono. Praia: Fundação Direito e Justiça.

    FAUSTINO, M. e M. & MORAIS, A. M. (2000). Direitos Humanos nas Prisões em Cabo Verde. Praia: Associação para a Solidariedade e Desenvolvimento Zé Moniz.

    Plano Nacional de Acção para os Direitos Humanos e a Cidadania em Cabo Verde (2003). Praia: Tipografia Santos.

    SILVA, M. R. P. (1992). O Regime dos Direitos Sociais na Constituição de Cabo Verde de 1992. Coimbra: Almedina.

     

    Autor: Wladimir Brito

    Autor:
    Voltar ao topo
    a

    Display your work in a bold & confident manner. Sometimes it’s easy for your creativity to stand out from the crowd.