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    Constitucionalismo Moçambicano [Dicionário Global]

    Contextualização histórica

    O constitucionalismo é a “a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade” (CANOTILHO, 2023, 77).

    O constitucionalismo moçambicano, baseado na lei mãe, a Constituição da República de Moçambique, assegura os direitos e deveres do povo e define a linha de orientação do país e do sistema político e jurídico adotado.

    A história do constitucionalismo moçambicano é recente, tendo em conta a data da conquista da independência e nascimento de Moçambique como estado independente, hoje com 49 anos de existência. Vivenciou três Constituições (1975, 1990 e 2004), que definiram o sistema político e o regime jurídico do país, assim como a natureza do Estado atual.

    A aceção do constitucionalismo moçambicano aqui apresentada considera os marcos históricos a partir do período em que Moçambique foi efetivamente constituído Estado, depois de um período colonial, em que o território que compõe o Estado moçambicano era uma província ultramarina ou Região Autónoma de Portugal, que conheceu colonização marcante. O constitucionalismo verdadeiramente moçambicano partiu de um regime nacionalista revolucionário e de afirmação da identidade, de “concepção monista do poder e institucionalização de partido único” (MIRANDA, 1997, I, 237), evoluindo até ao Estado de Direito Democrático da atualidade com as suas próprias vicissitudes.

    O Preâmbulo da Constituição da República de Moçambique (CRM) dá uma ilustração e visão do processo histórico, dos fundamentos e das várias fases de crescimento do constitucionalismo moçambicano, desde as bases da Luta Armada de Libertação Nacional, do sistema socialista adotado após a independência, passando para um Estado democrático centralizado, e até à descentralização atual, em processo de afirmação.

    A Constituição da República de Moçambique, como em outras geografias, é o principal instrumento de promoção e proteção dos direitos e liberdades fundamentais.

    O constitucionalismo moçambicano dos nossos dias assenta na legalidade, na separação de poderes, na democracia, na pluralidade de expressão, no pluralismo jurídico e na independência do território, elementos estes que regem o país como nação.

     

    Evolução da Constituição Moçambicana: Principais marcos

    Ao abordar a evolução do constitucionalismo moçambicano, é preciso considerar os principais marcos da evolução da Constituição moçambicana, parte dos quais estão expressamente plasmados no Preâmbulo. É também necessário ter em conta as atualizações/revisões da Constituição, realizadas ao longo do tempo, desde 1975.

    A filosofia da luta armada de libertação nacional, o direito à autodeterminação dos povos e a conquista da independência de Moçambique marcam e definem o sistema que foi adotado no constitucionalismo moçambicano. Este tem por base a democracia popular, a liberdade do povo, livre do colonialismo, procurando a justiça social para todos sem distinção, o acesso à terra, a bens e serviços e/ou direitos de que os moçambicanos estavam privados no período anterior a 1975. Com o decorrer do tempo, e já com os direitos e as liberdades fundamentais dos moçambicanos consagrados em documento jurídico-constitucional, que define Moçambique como verdadeiro Estado autónomo (cf. GOUVEIA, 2018, 459), o constitucionalismo moçambicano assistiu a uma nova era, na década de 1990, levando a cabo a democratização e introduzindo o multipartidarismo. Passa assim de um sistema de partido único para um sistema multipartidário, “alicerçado na separação e interdependência de poderes e no pluralismo jurídico”. Estes poderes foram reforçados e aprofundados na atual Constituição, de 2004, que foi recentemente atualizada (2018 e 2019).

    O constitucionalismo moçambicano pós-independência passou por quatro períodos. O primeiro corresponde ao iniciado com a Constituição de 1975, que adotou um regime inspirado no socialismo soviético, caracterizado pela democracia popular e com um sistema de partido único. O segundo período é o da Constituição de 1990, que representa a transição constitucional, tendo nele lugar a adoção do regime jurídico-constitucional do Estado de Direito democrático, caracterizado pela separação dos poderes executivo, judicial e legislativo, a introdução do multipartidarismo e das regras básicas da democracia representativa – assinala-se nesta fase a celebração do Acordo Geral de Paz e a instituição de um órgão legislativo resultante de escolha democrática, através de um processo de eleição multipartidária por via do sufrágio universal direto, tendo no horizonte o exercício do poder político constitucionalmente consagrado e a criação das autarquias locais. O terceiro período do constitucionalismo moçambicano corresponde à consolidação do Estado de Direito democrático e foi instituído com a Constituição de 2004, a primeira aprovada por um parlamento multipartidário, que sofreu atualizações em 2018 e 2023, sucessivamente, com destaque para a organização do poder político.

    A atualização da Constituição em 2018 centrou-se na componente da descentralização, que inclui a governação provincial e distrital, bem como a alteração do pacote autárquico e do regime de eleição das autarquias locais. Cingiu-se em grande medida à regulação da matéria de eleição dos governadores provinciais e administradores distritais, que deixaram de ser indicados por nomeação do chefe de Estado e do partido que lidera o Governo, como resultado das eleições gerais. Passou-se assim para um processo de eleição local por sufrágio universal direto, para escolha do governador ou administrador e dos membros da Assembleia Provincial/Distrital, com a participação livre dos partidos políticos. Este processo determina como governador provincial o cabeça de lista do partido político, coligação de partidos ou grupo cidadãos que obtiver a maioria no sufrágio, ficando contudo o chefe de Estado com o poder de nomear o secretário de Estado na província. A realização das primeiras eleições distritais estava prevista para o ano de 2024. Essa marcação foi, porém, revista por uma norma de previsão geral e sem compromisso temporal (com a referência da realização das primeiras eleições distritais), sendo apontada para quando estiverem “criadas as condições para a sua realização” (CRM, art. 331, n.º 3 – nova redação).

    A primeira Constituição da República de Moçambique (1975) passou por revisões constitucionais pontuais, que abarcaram o aperfeiçoamento das competências dos órgãos do Estado, em 1978, e a introdução de cargos políticos, como o de presidente do Parlamento e o de primeiro ministro, em 1986.

    A segunda Constituição, de 1990, referente ao período de transição constitucional, foi preponderante para se alcançar o Acordo Geral de Paz, em 1992, no conflito armado que envolveu o Governo do partido único liderado pela FRELIMO e a RENAMO. Esta registou algumas revisões, em número de sete, com destaque para a efetivação do Parlamento multipartidário, no que concerne aos mecanismos eleitorais (cf. SHENGA, 2022, 427-428).

    A terceira Constituição, de 2004, sofreu duas grandes revisões, em 2018 e 2023. Esta última, uma revisão pontual, tinha como objeto principal a governação descentralizada, provincial, distrital e relativa às autarquias locais.

    Fundamentos do constitucionalismo moçambicano

    Na Constituição de 2004, o constitucionalismo moçambicano manteve as linhas de orientação da Constituição de 1990. Tem como fundamentos a soberania do povo, segundo uma visão coletivista, e introduz os princípios da economia de mercado e da laicidade do Estado – que pressupõe “uma separação institucional entre o Estado e as Confissões religiosas” (MACIE, 2022, 236) –, do Estado unitário e democrático, autárquico, assim como os princípios da liberdade e da igualdade, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais, com destaque para a família, como valor fundamental para a sociedade moçambicana. Estabelece também o fortalecimento dos princípios e garantias da legalidade e constitucionalidade e do respeito pelas garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

    O constitucionalismo moçambicano, não obstante ser vivamente marcado por compromissos dos partidos políticos com assento parlamentar na Assembleia da República, com relevante participação da sociedade civil, é progressista e de justiça social (CHAIMITE, 2021, 164). Tem reforçado, no texto constitucional, os direitos e liberdades fundamentais, enquanto valores fundamentais da democracia, tal como o pluralismo jurídico, com grande ênfase no respeito pela dignidade da pessoa humana. Como corolário, trata-se de um constitucionalismo assente nos direitos humanos, como expressamente consagra o texto constitucional, integrando as normas de direito internacional e a observância e aplicação no Estado moçambicano dos referidos direitos e da Carta Africana dos direitos humanos (CRM, capítulo II, arts. 17 e 18).

    Sublinhamos que a família constitui um dos fundamentos do constitucionalismo moçambicano. O valor fundamental da família é baseado na filosofia africana do ubuntu, que nutre o conceito de humanidade e solidariedade (RAMOSE, 2010, 139), sendo considerada a base da unidade e o alicerce da edificação de toda a sociedade (MBITI, 1990, 175).

     

    Desafios do constitucionalismo moçambicano

    A ampla implementação dos direitos fundamentais e sociais coloca desafios de efetivação dos direitos plasmados na Constituição, o que se traduz num desafio ao constitucionalismo, com o risco de transformar o texto constitucional em letra-morta.

    Quando não é efetivamente disponibilizado o acesso à justiça e ao patrocínio judiciário do Estado aos cidadãos carenciados, o constitucionalismo moçambicano fica comprometido. A justiça torna-se muitas vezes inacessível por razões infraestruturais e pelos seus elevados custos, mas também devido à iliteracia jurídica e à baixa escolaridade generalizada da maioria da população, que fica por isso excluída desse acesso.

    A independência do poder judicial é um dos aspetos mais complexos de enfrentar. Apesar de a Constituição prever a independência e a imparcialidade dos tribunais, é patente uma fraca capacidade de exercício e de fazerem valer o poder, pressionando os poderes executivo e legislativo a criar condições materiais e regulamentares, uma vez que é aos Tribunais, como instituição, que cabe assegurar a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição, em suma, “assegurar o direito humano ao julgamento justo” (COMOANE, 2021, 206). Quando a independência do poder judicial é ameaçada, a natureza constitucional dos poderes do Estado de Direito democrático é consequentemente posta em causa.

    Pertinência do constitucionalismo moçambicano no âmbito dos direitos humanos

    O constitucionalismo é relevante no âmbito da afirmação dos direitos humanos, na medida em que define as linhas mestras de orientação do Estado, com vista ao respeito e à promoção dos direitos humanos. A Constituição de Moçambique estabelece como um dos objetivos fundamentais do Estado “a defesa e promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei” (CRM, 2004, art. 11.º), segundo os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta Africana. O constitucionalismo moçambicano define o âmbito e alcance do Direito Internacional dos direitos humanos e, por essa via, salvaguarda os direitos humanos fundamentais e os meios de vinculação do Estado moçambicano à normas e instrumentos internacionais. Os direitos humanos são uma meta a atingir pelo Estado moçambicano, traçada como um dos seus objetivos fundamentais.

    Desde logo, pode-se inferir que o constitucionalismo moçambicano assegura a conformidade do Estado com os instrumentos internacionais de execução dos direitos humanos, como as declarações e convenções, reconhecendo-se o seu valor no ordenamento jurídico moçambicano.

    Bibliografia

    Impressa

    CANOTILHO, J. (2023).  Direito Constitucional e Teoria da Constituição. (7.ª ed.). Lisboa: Leya.

    COMOANE, P. (2021). “O princípio constitucional da independência do poder judicial”. O Guardião, 2, 203-218;

    Constituição da República de Moçambique de 2004 (atualizada pela lei n.º 1/2018 de 12 de junho e pela lei nº 11/2023 de 23 de agosto).

    GOUVEIA, J. (2018). “O constitucionalismo de Moçambique e a Constituição de 2004”. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, 51 (152), 449-475.

    MACIE, A. (2021). “O princípio da laicidade do Estado”. O Guardião, 2, 219-270.

    MBITI, J. (1990). African Religions & Philosophy. Oxford/Portsmouth: Heinemann.

    MIRANDA, J. (1997). Manual de Direito Constitucional. (t. I: O Estado e os Sistemas Constitucionais). (6.ª ed. rev. e atualizada). Coimbra: Coimbra Editora.

    RAMOSE, M. (2010). “Globalização e ubuntu”. Epistemologias do Sul, 2, 175-220.

    RIBEIRO, L. (dir.) (2022). O Guardião: Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Rui Baltazar dos Santos Alves. Maputo: Conselho Constitucional.

    RODRIGUES, F. (2022). “A (des)arrumação sistemática dos direitos, liberdades e garantias na Constituição Moçambicana de 2004”. O Guardião, 3, 545-585;

    SHENGA, C. (2022). “O efeito das emendas constitucionais sobre a descentralização em Moçambique”. O Guardião, 3, 426-445.

    Relatório Anual da Ordem dos Advogados de Moçambique sobre os Direitos Humanos em Moçambique, 2016 (2018). OAM.

    Digital

    CHAIMITE, A. & GÉRCIO, R. (2021). “Vinte anos da Constituição moçambicana: Avanços e desafios”. Revista do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania, 6 (2), https://revistadoidcc.com.br/index.php/revista/article/view/129/114 (acedido a 23.02.2024).

     

    Autora: Orquídea Massarongo-Jona

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