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  • Constitucionalismo Timorense [Dicionário Global]

    Constitucionalismo Timorense [Dicionário Global]

    Introdução

    O “Conceito Ocidental de Constituição” (SOARES, 1986, 36), dirigido à garantia da legitimidade (em sentido amplo) do exercício do poder é a resposta histórica da modernidade ao problema da legitimidade do exercício do poder. Por isso, uma entrada enciclopédica sobre o constitucionalismo timorense implica a consideração de diferentes dimensões da resposta constitucional dada à mesma questão milenar no mais novo país do século XX. Em Timor-Leste, o constitucionalismo formal na Constituição da República Democrática de Timor-Leste, de 2002, convive com dimensões de um constitucionalismo material que anima o povo timorense desde muito antes da aprovação da Constituição formal e inclusivamente com uma natureza constitucional real, que acontece, muitas vezes, à margem da própria Constituição formal vigente no país. Esta é a riqueza multidimensional do constitucionalismo timorense que interessa aqui adequadamente considerar.

    A identidade constitucional timorense

    A construção deste constitucionalismo timorense multifacetado tem a sua base na afirmação da diferença constitutiva de metade da ilha do crocodilo, na qual as especificidades locais conviveram com uma (quase) permanente presença estrangeira. Os primórdios da afirmação de uma nova identidade nacional são (hoje) remetidos para uma relação nem sempre pacífica dos reinos locais com a administração colonial portuguesa, mesmo que indireta, personificada na figura de D. Boaventura, no período de transição para o século XX, reforçado pela primeira luta nacional contra o invasor japonês na Segunda Guerra Mundial (MENDES, 2005, 148). Estas foram as bases da primeira República Democrática de Timor-Leste, cuja independência foi declarada em 28 de novembro de 1975 e reestabelecida em 20 de maio de 2002.

    Neste período, a luta de libertação nacional afirmou-se nas diferentes frentes, armada, clandestina e internacional, numa ação muito aberta ao Direito Internacional, uma das marcas do constitucionalismo timorense contemporâneo. Desde a resolução 1514 (XV) de 1960 (Declaração de Concessão de Independência aos Povos e Países Colonizados), bem como a resolução 1541 (XV) sobre os “Princípios que devem guiar os Membros na determinação da obrigação de transmissão de informação exigida pelo artigo 73.º, e) da Carta”, que se afirmou o direito à autodeterminação do povo timorense. No entanto, a invasão da Indonésia, de 7 de dezembro de 1975, contrariou esta pretensão soberana, apesar da sua reafirmação internacional na resolução da Assembleia Geral da ONU 3485 (XXX), de 12 de dezembro de 1975, e, no dia 22 de dezembro de 1975, a resolução do Conselho de Segurança 384 (obrigatória, ao abrigo do artigo 25.º da Carta das Nações Unidas), que condenou a invasão de Timor-Leste e incumbiu o secretário-geral das Nações Unidas de acompanhar a situação, para o que é nomeado primeiro representante especial Guicciardi. Mesmo o Tribunal Internacional de Justiça foi chamado a intervir neste processo e, apesar de, na decisão sobre os méritos de 30 de junho de 1995, ter decido não poder exercer a sua jurisdição sobre a questão apresentada, uma vez que isso impunha a anterior pronunciação sobre o poder de Portugal ou da Indonésia celebrar tratados em nome de Timor-Leste, reconheceu também a natureza erga omnes do direito à autodeterminação dos povos – o que, “levado às suas ultimas consequências”, deveria ter conduzido a uma solução diferente.

    A luta de libertação nacional durou vinte e quatro anos, com diversas vicissitudes que ainda hoje condicionam, formal, material e realmente, o constitucionalismo timorense. A superação das divisões internas de 1975, invocadas como razão da invasão estrangeira depois da declaração unilateral da independência, não foi fácil, e apenas no final do século XX permitiu unificar as diferentes dimensões da luta de libertação nacional, superando também nova cisão no início dos anos 80, permitindo a convivência do partido político que havia declarado a independência, eleitoralmente dominante, até à assembleia constituinte, com uma figura carismática na liderança da frente armada de Xanana Gusmão, detido no início dos anos 90, e a quem sucedeu Taur Matan Ruak. Ainda hoje a Constituição formal faz referência a esta intransigente defesa da soberania popular por uma reduzida força militar sempre presente no território (a “gloriosa luta das FALINTIL”, como refere o art. 11.º da CRDTL).

    O fim da ocupação chegou na sequência do acordo de 5 de maio de 1999, entre Portugal e a Indonésia, que previa a realização de um referendo sobre o exercício do direito à autodeterminação do povo timorense, sob supervisão da Organização das Nações Unidas, através da United Nations Missions in East Timor (UNAMET), criada pela resolução 1246 (1999), de 11 de junho. Foi esmagadora a vitória da independência, com 78,5% dos timorenses a votarem contra a proposta de autonomia que a integração oferecia, numa votação a que compareceram 98,6 % dos eleitores recenseados. A resolução 1272 (1999) do Conselho de Segurança da ONU, de 25 de outubro de 1999, criou a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET, no acrónimo em inglês), adotada ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, considerando a situação em Timor-Leste uma ameaça para a paz e a segurança coletiva. A UNTAET foi investida de poderes inéditos nas operações das Nações Unidas, sendo depois replicada noutros locais, com a responsabilidade geral pela administração de Timor-Leste, um verdadeiro reino de governo absolutista fora de tempo (CHOPRA, 2001, 27), concentrando poderes legislativos, executivos e judiciais, a que acrescia uma cláusula residual pela qual poderia “adotar todas as medidas necessárias para cumprir o seu mandato”.

    O procedimento constituinte

    A Constituição da República Democrática de Timor-Leste foi aprovada em 22 de maio de 2002 como primeiro ato do mais novo Estado independente do novo milénio, em 20 de maio de 2002. Na preparação das estruturas do que viria a ser o Estado timorense independente e autónomo impunha-se a preparação do procedimento constituinte. Duas opções que se confrontavam. Por um lado, uma das propostas defendia um “procedimento constitucional direto”, orientado pelo Conselho Nacional timorense segundo o modelo de “Convenção”, que serviu no procedimento constitucional americano e que a União Europeia tentou replicar. Este modelo defendia a realização de um referendo ou a própria eleição de uma Assembleia Constituinte para formalizar a sua aprovação. Por outro lado, defendia-se uma opção constituinte dita “complexa” e “puramente conceptual” alicerçada em duas etapas eleitorais. Uma primeira eleição para uma Assembleia Constituinte que preparasse a redação e aprovasse uma nova Constituição, seguida de eleições gerais, previsivelmente legislativas e presidenciais. A duração, com uma sobrecarga de atos eleitorais e potencial conflitualidade (entre atores políticos timorense concorrentes, mas também entre estes e as organizações internacionais presentes no território) do segundo tipo de procedimento, levou os defensores da primeira opção a oferecer melhores garantirias de legitimação processual e legitimidade material, relacionando as opções constituintes com a “vinculação do texto a uma história, uma cultura e um universo linguístico peculiar” (VASCONCELOS, 2006, 70). Em particular, pretendia-se promover um amplo debate nacional através de um “programa de Educação Cívica”, auscultando as populações nos diferentes distritos timorenses. Entretanto, o decurso do tempo e o adiamento do “Programa para a Educação Cívica” levaram ao abandono desta opção, a dado momento pacífica, entre os diferentes atores internacionais e locais, mas que foi perdendo adeptos, nomeadamente entre os membros do Conselho Nacional.

    Assim, no final de 2000, foram iniciados os preparativos para a eleição da Assembleia Constituinte. Adotou-se um sistema eleitoral misto, com um círculo plurinominal único para todo o território, com base proporcional, que elegeu 75 deputados, mais 13 círculos uninominais, de acordo com os atuais distritos, de base maioritária e limitados aos aí residentes, sendo o quadro legislativo para as eleições definido pelo Regulamento da UNTAET n.º 2001/1. O art. 5.º, n.º 2 do Regulamento da UNTAET n.º 2001/2 sobre a eleição de uma Assembleia Constituinte para a elaboração de uma Constituição para um Timor-Leste independente democrático antecipava já a possível conversão da Assembleia Constituinte em Assembleia Legislativa ordinária, para fazer face a constrangimentos económicos existentes. Assim, pelo art. 167.º da CRDTL, a Assembleia Constituinte arrogou-se poderes de Assembleia Legislativa ordinária. Como previsto, seguiram-se as eleições presidenciais, nas quais Xanana Gusmão obteve 82.68% dos votos e Francisco Xavier do Amaral, 17,31%. O novo presidente da República tomou posse no dia da declaração da restauração da independência, em 20 de maio de 2002.

    A sucessão dos Estados

    A restauração da independência de Timor-Leste é um exemplo recente dos dilemas do processo de sucessão internacional dos Estados. A continuidade (mesmo que subsidiária) do ordenamento jurídico indonésio, recusado pela luta de libertação nacional, ilustra uma transição sempre condicionada, nos termos do art. 165.º da Constituição, supostamente interpretado autenticamente pela lei n.º 10/2003, de 10 de dezembro, ao passo que a recusa de vinculação externa a compromissos assumidos pelo Estado ocupante (art. 158.º da Constituição) demonstra a rutura da afirmação soberana. Está ainda por resolver, definitivamente, a questão da propriedade da terra, limitada aos nacionais, nos termos do art. 54.º da Constituição, mas na qual soluções legais intermédias de continuidade e rutura serão também discutidas. A prática lusófona recente em matéria de sucessão de Estados, e de ordenamentos jurídicos, em especial, considerando também a transferência do exercício da soberania em Macau, em 1999, é ilustrativa do regime contemporâneo vigente em matéria de sucessão dos Estados. Ambas estas soluções parecem confirmar o afastamento de soluções puras de sucessão universal ou tábula rasa, confirmando a preferência pela tutela de posições jurídicas sujeitas a sistemas jurídicos que se sucedem no tempo, adotando soluções de sucessão condicionada, que impõem sempre um delicado equilíbrio, nem sempre uniforme ou claro, na ponderação de princípios conflituantes – soberania e continuidade (CUNHA, 2019, 377).

    A constituição formal

    A Constituição formal da República Democrática de Timor-Leste entrou em vigor em 20 de maio de 2002 e integrou Timor-Leste no convívio dos Estados que seguiram a opção proclamada no art. 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791: um texto escrito que consagra a organização do poder político segundo o princípio da separação de poderes e a defesa dos direitos dos cidadãos (Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, 2011, 15).

    Sistema de Governo

    O sistema de Governo vigente na CRDTL replica um padrão semipresidencial de inspiração lusófona que, no entanto, tem uma muito bem identificada origem, desde que foi batizado por Duverger, com base na experiência da Constituição Francesa. O traço essencial definidor do sistema de Governo semipresidencial é a eleição universal e direta do PR e do Parlamento. Os diferentes tipos de semipresidencialismo dependem, no entanto, da avaliação feita das relações estabelecidas pelos dois eixos de relações de dependência política entre os diferentes órgãos de soberania (VASCONCELOS e CUNHA, 2009, 231).

    Tradicionalmente, nos sistemas semipresidenciais, o Governo não tem legitimidade democrática direta, mas apenas indireta, pela dependência política do Parlamento (de cujos resultados eleitorais emana e perante o qual responde em permanência, através da aprovação ou não recusa do programa de Governo, sessões de perguntas, moções de censura ou de confiança) e do PR, que também controla politicamente a ação do Governo (na sua constituição e destituição e, quotidianamente, entre outras formas, pelo exercício do direito de veto ou promulgação dos diplomas legais). São diferentes as variações do sistema de Governo semipresidencial, em diferentes ordenamentos jurídico-constitucionais, com opções de traços mais presidenciais, de gabinete ou parlamentaristas. Os poderes de direção política do PR são mais ricos, por exemplo, em França, onde o PR pode presidir ao Conselho de Ministros e tem maior margem de manobra na escolha do PM e na Constituição do Governo do que em Portugal ou em Timor-Leste, onde o PR se encontra mais estritamente vinculado aos resultados eleitorais na constituição do Governo e onde não pode presidir ao Conselho de Ministros.

    Em termos jurídico-constitucionais comparados, o PR confrontou-se, em Portugal, com a formação de um Governo que excluía o partido mais votado nas eleições legislativas de 2015, reproduzindo-se um problema comparável com aquele experimentado em 2007, em Timor-Leste. Em ambos os casos, o PR observou a vontade da maioria parlamentar. Contudo, em Portugal foi nomeado um Governo dirigido pelo PM, indigitado pelo partido mais votado, em homenagem ao princípio democrático, ao passo que, em Timor-Leste, o PR indigitou o PM com apoio parlamentar maioritário (CUNHA, 2009, 99).

    As estruturas do Poder Local

    A tradicional separação de poderes teve, na história europeia medieval, uma dimensão territorial, como ensinava Barbosa de Melo, que ainda hoje se sente nos países, como Timor-Leste, onde o peso das estruturas locais e tradicionais do poder é ainda muito significativo. Este tem sido, aliás, um dos desafios mais relevantes em Timor-Leste, como noutros países da CPLP, nos últimos anos, com a implementação de autoridades de governo local. Em vários destes exercícios, as estruturas tradicionais de Poder têm sido integradas no propósito constitucional de descentralização territorial, pela criação de pessoas coletivas de território, com órgãos eleitos. Não foi esta a solução escolhida em Timor-Leste, onde as estruturas tradicionais de Poder nos Sucos foram criadas como Associações Públicas, nos termos do art. 4.º da lei n.º 9/2016, de 8 de julho, tendo como consequência a exclusão da participação dos partidos políticos nas respetivas eleições.

    No início do século XX, todos os países de língua oficial portuguesa tinham municípios para a sua organização territorial. No cumprimento deste mandato constitucional, Timor-Leste, como outros países em desenvolvimento da CPLP, favoreceram o princípio do gradualismo, ainda que em diferentes modalidades. O gradualismo pode referir-se à criação de todos ou apenas alguns dos municípios, independentemente do grau territorial, ab initio ou gradual, e pode também ser utilizado para determinar gradualmente a relação entre a administração central e local, em particular os termos da transferência de poderes, competências ou recursos, ou a determinação da intensidade do controlo. A tensão é evidente na maioria dos países, na implementação gradual pragmática do que é um mandato constitucional único para uma descentralização igual para todo o território nacional.

    Em Timor-Leste, o princípio do gradualismo tem sido seguido na divisão de poderes entre o Governo central e os municípios. Cumprindo o mandato constitucional dos arts. 5.º e 71.º, a lei n.º 11/2009, de 7 de outubro, alterada pela lei n.º 4/2016, de 25 de maio, e pela lei n.º 14/2021, de 7 de julho, o território da República Democrática de Timor-Leste foi dividido em municípios e uma região administrativa especial (a lei n.º 3/2014, de 18 de junho criou a Região Administrativa Especial de Oe-cússe Ambeno, entretanto alterada pela lei n.º 3/2019, de 15 de agosto), todos eles subdivididos em postos administrativos. Os órgãos municipais ainda não foram eleitos, e estão fortemente dependentes do Governo, executando as competências ministeriais através de contratos interadministrativos que incluem também as regras sobre o respetivo financiamento. Este é o modelo particular de implementação gradual do mandato constitucional que impõe o Governo local democrático em Timor-Leste.

    O regime de direitos fundamentais

    A Constituição define o primeiro traço característico de proteção dos Direitos Fundamentais – alicerçada na ideia central do constitucionalismo liberal, revolucionária à data, hoje pacífica, apesar dos muitos desafios ainda pendentes – da igualdade e universalidade de todos os homens, na CRDTL, protegido no art. 16.º. A jurisprudência do Tribunal de Recurso tem afirmado uma jurisprudência própria de proteção de Direitos Fundamentais, desde a transição sob a administração transitória da ONU (JERÓNIMO, 2012, 105).

    Na sua dimensão formal, a Constituição estabelece um regime geral de proteção de Direitos Fundamentais que parte da sua igualdade e universalidade, no art. 16.º. Na garantia da universalidade dos Direitos Fundamentais, este regime afirma os Direitos Fundamentais previstos na Constituição como direitos de todos, resultado da condição humana e reconhecidos independentemente de qualquer outra qualidade. A formulação do princípio da igualdade na CRDTL apresenta uma reforçada preocupação no cumprimento de um ideal de igualdade material entre os cidadãos timorenses, colocados perante condições desiguais de poder. Assim se estabelece uma pormenorizada regulamentação específica, a propósito da realização da igualdade material, logo nos “Princípios Gerais” do regime de Direitos Fundamentais. Em especial, refere-se à “Igualdade entre mulheres e homens” (art. 17.º); à “Proteção da Criança” (art. 18.º), à “Juventude” (art. 19.º), à “Terceira idade” (art. 20.º) e ao “Cidadão portador de deficiência” (art. 21.º). Tradicionalmente, estas preocupações são remetidas para o regime específico de Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC), pelo qual se impõe a obrigação do Estado de repor a “igualdade de oportunidades” perante as desigualdades materiais em que, fenomenologicamente, por força da natureza, do contexto social ou da própria predisposição individual, os cidadãos se encontram.

    O alcance pleno desta formulação principial não é, contudo, claro, mas aponta para uma aproximação a um conceito unitário de Direitos Fundamentais, em larga medida, superando a tradicional distinção entre Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais (DLG) e os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Estas diferenças, mais do que de natureza entre os Direitos Fundamentais previstos em cada um dos catálogos, são opções constituintes de regime jurídico que, na CRDTL, se encontram limitados à exigência de restrição por lei dos Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais, nos termos do art. 24.º e do art. 95.º, n.º 2 e) da Constituição. A Constituição resolve a questão da natureza jus-fundamental dos DESC ao incluir entre os catálogos de Direitos Fundamentais também os DESC –  assim, retirados da disponibilidade das opções políticas contingentes e controlados judicialmente. Os direitos (ditos de liberdade ou sociais) têm a mesma estrutura normativa, deontológica, construída linguisticamente. Nem a maior indeterminabilidade das normas que atribuem direitos sociais os afasta da sua natureza normativa jusfundamental – na verdade, pela concretização legal, até podem adquirir maior determinabilidade do que as normas constitucionais protetoras de DLGP, além de que o seu âmbito de proteção sempre se estende, pelo menos, a um mínimo de proteção dos DESC garantido pelo Estado Social de Direito. Nesta construção, mais relevante do que a distinção DLGP vs. DESC é aquela traçada entre direitos negativos (tradicionalmente associados a abstenções do Estado, no dever de respeito pelos Direitos Fundamentais) e direitos positivos (tradicionalmente associadas aos deveres de proteção e promoção dos Direitos Fundamentais), mas que, atualmente, se constata poder ser encontrada em ambos os catálogos de Direitos Fundamentais (DLGP e DESC) (NOVAIS, 2010, 396).

    O peso dos regimes consuetudinários

    O art. 2.º, n.º 4 da Constituição da República Democrática de Timor-Leste, de 2002, estabelece que “O Estado reconhece e valoriza as normas e os usos costumeiros de Timor-Leste que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do direito costumeiro”. Da perspetiva do constitucionalismo de Estado, esta relação pode ser construída como um conflito de princípios entre o princípio da constitucionalidade e o princípio do pluralismo jurídico.

    O legislador não resolveu as mais difíceis questões suscitadas pelo Direito costumeiro, na legitimidade dinástica dos liurais (reis ou senhores da terra, agora como poder largamente simbólico) ou da figura do Matandook (feiticeiros/curandeiros), do costume do barlaque (referindo-se ao conjunto de obrigações reciprocamente assumidas pelas famílias dos nubentes) e do Tara bandu (conjunto de proibições relativas ao uso de bens da comunidade, em especial, dos seus recursos naturais), do sistema de escala social, com limitadas possibilidades de mobilidade (compostas pelos Datu, aristocratas, Ema-reina, povo ou comuns, e pelos Ata, “escravos”), com referência à Uma-lulik (Casa Sagrada) (CUMMINS, 2010, 78). O legislador parece deixar assim estes subsistemas normativos vogar nas águas da autorregulação, enquanto as partes envolvidas o aceitarem, mesmo que algumas destas práticas comportem potenciais ameaças para o projeto previsto na Constituição de 2002 (JERÓNIMO, 2010, 101), de uma comunidade organizada sob o princípio do Estado de Direito, em que os Direitos Fundamentais são gozados em condições de igualdade e em que o exercício do poder é legitimado democraticamente através de eleições. A solução de qualquer conflito de princípios procura sempre assegurar a máxima eficácia de cada um dos princípios por graus.

    Uma perspetiva adequada do funcionamento sistemático de ordenamentos jurídicos plurais não admite que qualquer um dos sistemas normativos alicerçado em fundamentos de validade próprios se pronuncie acerca da validade do outro – o princípio aqui formulado é o da “dupla contingência”, na relação entre “ego” e “alter” (TEUBNER, 1997, 149). Esta solução tem, necessariamente, consequências sobre a proteção dos direitos fundamentais, na relação com a alteridade, incluindo a proteção da diferença construída como um “direito de liberdade” (PINTO, 1999, 160), na Constituição da República Democrática de Timor-Leste, construída a partir do disposto no art. 30.º (CUNHA, 2019, 65). Este é um dos exemplos da riqueza multifacetada do constitucionalismo timorense, muito mais complexa do que a expressão formal na Constituição da República Democrática de Timor-Leste permitira expressar.

    Bibliografia

    Impressa

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    Digital

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    Autor: Ricardo Sousa da Cunha

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