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    Convenção de Istambul

    A Convenção de Istambul, nome pelo qual é conhecida a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, é um instrumento jurídico internacional inovador, adotado em Istambul em 11 de maio de 2011. A Convenção foi ratificada por Portugal em 2013 e, um ano depois, entrou em vigor.

    Embora se exigissem apenas dez ratificações para entrar em vigor, a verdade é que, entre ratificações e acessões, o número se cifrou em 39, nele se incluindo países não europeus como o Cazaquistão, Israel e Tunísia.

    A adoção da Convenção de Istambul foi o culminar de um conjunto de recomendações do Comité dos Ministros dos Estados-Membros do Conselho da Europa sobre a necessidade de proteção das mulheres contra todas as formas de violência. A violência de género é, de acordo com o preâmbulo da Convenção de Istambul, uma expressão da desigualdade estrutural entre homens e mulheres e do histórico desequilíbrio entre ambos. Daí que a eliminação dos atos de violência pressuponha não apenas uma eficaz prossecução e punição criminais dos agressores, mas também uma estratégia que, a montante, contribua para o reconhecimento da igualdade, de facto e de direito, entre homens e mulheres.

    Nesse sentido, a Convenção de Istambul, nutrindo-se dos princípios assinalados nas recomendações prévias do Conselho da Europa, assim como nos mais relevantes instrumentos jurídicos internacionais, consagrou uma resposta abrangente e coordenada que busca a prevenção da violência, a proteção das vítimas e uma prossecução criminal mais eficaz dos agressores.

    A prevenção da violência constitui, pois, o ponto de partida para uma mudança estrutural da sociedade, a começar nos mais jovens. Nos Estados Partes recai a obrigação de concretizar este vetor preventivo, através de campanhas de sensibilização, da reforma dos currículos escolares, da formação de profissionais e de programas dirigidos a agressores. O sector privado e a comunicação social podem e devem assumir um papel interventivo na prevenção da violência contra as mulheres. O raio de alcance da sua intervenção e, em alguns casos, a proximidade com a comunidade colocam-nos numa posição privilegiada para consciencializar e reforçar o respeito pelos direitos fundamentais de uma forma mais eficaz.

    Num outro plano de atuação, inserem-se as medidas de proteção e apoio às vítimas de violência, quando não haja sido possível prevenir os atos de violência. Estas medidas de proteção e apoio são implementadas tendo em conta os interesses e necessidades específicas das vítimas de violência, nomeadamente quando sejam menores de idade. Portanto, não é suficiente que se preveja o acesso ao sistema de justiça penal. É preciso ir mais longe e providenciar à vítima um sistema de suporte ou de apoio que se baseie no respeito integral dos seus direitos e nas suas específicas necessidades, e que contribua para o seu empoderamento e autonomia. Referimo-nos a medidas como o aconselhamento jurídico e psicológico, a assistência financeira, o alojamento, a educação, a formação e assistência na procura de emprego ou o acesso a cuidados de saúde.

    Aliás, mesmo que a vítima não deseje apresentar queixa contra o agressor ou testemunhar contra este, deverá ainda assim beneficiar deste conjunto alargado de medidas de proteção e apoio, onde se incluem, além das previamente mencionadas, outras, como o acesso à informação, a serviços de apoio especializados, ou o acesso a casas de abrigo.

    Do ponto de vista judiciário e, particularmente, criminal, a Convenção de Istambul apresenta contributos particularmente importantes. Desde logo, o dever de os Estados preverem nos respetivos ordenamentos jurídicos mecanismos de reação judicial contra o agressor e, naquelas hipóteses em que o Estado não tenha cumprido as suas obrigações de prevenção e proteção das vítimas, contra o próprio Estado.

    Às vítimas deve ser assegurado o direito a exigir o pagamento de uma indemnização cuja responsabilidade caberá, como não podia deixar de ser, ao agressor. No entanto, a indemnização poderá subsidiariamente ser paga pelo Estado, por seguros ou pela segurança social.

    É igualmente de relevar na Convenção a exigência incriminatória de comportamentos como o assédio sexual, o aborto e esterilização forçados, a mutilação genital feminina, o casamento forçado, a violência sexual, a violência física, a violência psicológica e a perseguição. Entendeu o Conselho da Europa ser este o mínimo denominador comum no que se refere aos comportamentos intoleráveis no seio comunitário, a ponto de se justificar a intervenção jurídico-criminal dos Estados e a limitação de direitos fundamentais inerente à aplicação de sanções criminais.

    Além de definir os traços típicos das condutas a serem criminalizadas, a Convenção determina que a aplicação de causas de justificação baseadas na cultura, nos costumes, na religião, na tradição ou na honra deve ser completamente excluída pelos Estados. A título de exemplo, o responsável por um casamento forçado não poderá validamente invocar razões culturais para explicar o seu comportamento e, com isso, evitar a punição criminal. A opção da Convenção é explicável pelo facto de muitos dos comportamentos assinalados terem precisamente na sua base uma motivação cultural, religiosa ou social, pelo que a admissão de cultural defenses obstaculizaria qualquer pretensão punitiva.

    Relativamente à mensuração das sanções criminais, a Convenção declara que estas devem ser efetivas, proporcionais e dissuasoras, conferindo alguma liberdade aos Estados para determinarem a espécie de sanções criminais e balizarem abstratamente o quantum sancionatório. Apesar disso, a Convenção prevê um catálogo de circunstâncias que, se não fizerem parte do ilícito típico, deverão atuar no momento de determinação da sanção a aplicar ao agente do crime, agravando-a. São exemplos de circunstâncias agravantes a reiteração do comportamento ou a utilização de uma arma.

    A fechar o capítulo que se debruça sobre as medidas de natureza jurídico-substantiva, está a proibição de mecanismos alternativos de resolução de litígios de natureza obrigatória. Ora, embora a proibição pura e simples de mecanismos como a mediação penal pudesse suscitar dúvidas, atendendo às suas potencialidades, não é exatamente isso que a Convenção de Istambul prevê. No art. 48.º proíbe-se antes que os mecanismos de resolução alternativa de litígios sejam de uso obrigatório, impondo-se, consequentemente, a participação neles dos intervenientes, maxime, a vítima. Não se querendo aqui questionar se, nessas hipóteses de intervenção obrigatória, estaríamos, ainda assim, perante verdadeiras expressões de justiça restaurativa, o que parece resultar da Convenção é um desejo de proteção da vítima. A confirmação desta ideia emana do relatório explicativo da Convenção de Istambul, onde se afirma que as “[v]ítimas de tal violência nunca podem participar nos processos de resolução alternativa de litígios em pé de igualdade com o agressor”. Indo um pouco mais longe na leitura do relatório explicativo e no seu confronto com o que ficou plasmado na Convenção, não é porventura arriscado defender-se que o que verdadeiramente se pretendia com a Convenção era vedar completamente o recurso a mecanismos alternativos de resolução de litígios, mesmo quando a participação da vítima fosse voluntária. Só esta interpretação é consentânea com o seguinte trecho do relatório explicativo: “É da natureza de tais crimes que essas vítimas ficam invariavelmente com um sentimento de vergonha, desamparo e vulnerabilidade, enquanto o perpetrador exala uma sensação de poder e domínio. Para evitar a reprivatização de violência doméstica e violência contra as mulheres e para permitir que a vítima procure justiça, é responsabilidade do Estado providenciar acesso a processos judiciais presididos por um juiz neutro, norteados pelo princípio do contraditório e respeitadores das leis nacionais em vigor”.

    O sistema de justiça penal, no modo como prevê a promoção e a prossecução do procedimento criminal e o papel que nele ocupa a vítima e os direitos que lhe devem ser reconhecidos, é também amplamente abordado nos arts. 49.º e seguintes da Convenção.

    A eficiência e a eficácia da justiça criminal são objetivos assinalados pela Convenção neste contexto, não sendo porém esquecido que devem estes ser concatenados com o respeito pelos direitos da vítima. A investigação e prossecução criminal devem ser eficazes e decorrer sem atrasos injustificados, mas não à custa dos direitos que devem ser assegurados às vítimas, sob pena de se perpetuar o ciclo de vitimização. De igual modo, incumbe aos Estados a previsão e implementação de medidas de proteção da vítima, assim se assegurando a participação livre desta nas diversas etapas do procedimento criminal.

    Um dos aspetos mais interessantes da Convenção de Istambul é a criação de um grupo de peritos sobre o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica, designado GREVIO, que tem por função a monitorização do modo como os Estados Partes estão a implementar a Convenção. Na escolha dos membros deste órgão atenderam-se a critérios diversos, como: a competência académica ou profissional em matérias como direitos humanos, igualdade de géneros, violência contra as mulheres e violência doméstica, ou assistência e proteção das vítimas; a diversidade geográfica; a representação dos mais relevantes sistemas jurídicos; a ligação a entidades competentes na área da violência contra as mulheres e da violência doméstica; a imparcialidade, independência e elevado carácter moral. Além disso, procurou-se garantir um equilíbrio entre o número de peritos do género masculino e do feminino.

    A sua atuação é pormenorizada e balizada por um regulamento interno (Rules of Procedure), adotado em Estrasburgo em 2015, sendo de salientar o dever de preparação de um relatório sobre as medidas de implementação da Convenção de Istambul adotadas pelos Estados. A adoção do relatório pelo GREVIO é antecedida de um relatório redigido pelos Estados com base num questionário preparado pelo GREVIO. Efetuada a análise do relatório submetido pelos Estados, o GREVIO goza da faculdade de solicitar informações adicionais e, se entender que as informações recebidas são insuficientes, visitar o Estado em questão. Tendo realizado as diligências necessárias, o GREVIO prepara então um projeto de relatório onde descreve e analisa o ponto de situação quanto às medidas estatais de implementação da Convenção, dando oportunidade ao Estado em questão para se pronunciar sobre o conteúdo do projeto. Só depois o GREVIO adota o relatório e as respetivas conclusões, transmitindo-os ao Estado e ao Comité de Partes.

    Além deste relatório, a Convenção de Istambul prevê um procedimento de monitorização mais urgente para hipóteses de situações graves de violência contra as mulheres. Do que aqui se trata é de permitir que o GREVIO possa solicitar aos
    Estados a apresentação de um relatório onde se detalhem as medidas tomadas para prevenir casos de violência grave, sistemática ou recorrente contra mulheres.

    No que se refere ao Estado português, foi publicado em 2019 um relatório de avaliação das medidas adotadas em Portugal tendo em vista a implementação das soluções da Convenção de Istambul. Neste relatório foram tomados em consideração o contributo inicial de Portugal, que consistiu essencialmente num relatório onde foi descrito o grau de cumprimento da Convenção de Istambul, assim como a apreciação efetuada pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres e pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas.

    As conclusões do GREVIO foram globalmente positivas para Portugal. Foi especialmente destacado o esforço português de consciencialização para possíveis medidas preventivas da violência doméstica, tendo ainda sido assinalado o seu papel pioneiro na concretização de três programas de ação focados no problema da mutilação genital feminina. Portugal é, no entender do GREVIO, um exemplo de comprometimento significativo na promoção da igualdade entre homens e mulheres e na eliminação da violência contra as mulheres. Para tanto foi fundamental a atuação da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), organismo nacional que, oficialmente desde 1977, embora sob outro nome, se tem revelado fundamental nos progressos alcançados em matéria de consciencialização e eliminação de todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres. Ainda assim, e talvez por isso mesmo, no entender do GREVIO deveriam ser conferidos poderes de atuação adicionais e proporcionais recursos ao CIG, para que se torne possível uma cooperação interagências e uma coordenação interministerial mais intensas e robustas.

    Menos positiva foi, no entanto, a verificação de algumas lacunas ou falhas na redação típica dos crimes de violação, de assédio sexual e de violência doméstica.

    O crime de violação no ordenamento jurídico português, entretanto alterado pelas leis n.º 101/2019, de 6 de setembro, e 45/2023, de 17 de agosto, exige não apenas a ausência de consentimento livre, mas também a verificação de um constrangimento da vítima à prática de atos de natureza sexual, o que para o GREVIO explica as baixas taxas de denúncia e condenação por este crime.

    É também denunciada pelo GREVIO a falta de implementação do art. 40.º da Convenção de Istambul relativo à criminalização do assédio sexual, entendido como “qualquer conduta indesejada verbal, não-verbal ou física, de carácter sexual, tendo como objetivo violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando esta conduta cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo, seja objeto de sanções penais ou outras sanções legais”. E é proposta a alteração do art. 170.º do Código Penal, que, sob a epígrafe de importunação sexual, criminaliza a prática de atos de carácter exibicionista, a formulação de propostas de teor sexual e o constrangimento a contactos de natureza sexual, na medida em que a matéria aí proibida não coincide totalmente com aquela descrita no art. 40.º da Convenção.

    Mas foi quanto ao crime de violência doméstica que o GREVIO mais se deteve. Embora tivesse reconhecido como positiva a alteração da natureza do crime de violência doméstica para passar a ser um crime público, não ficando, por isso, a promoção do procedimento criminal dependente da queixa do ofendido, não deixou ainda assim de observar algumas deficiências na implementação da Convenção de Istambul: a natureza subsidiária do crime de violência doméstica perante outros crimes mais graves, a diminuta taxa de condenação e uso generalizado da suspensão da execução da pena de prisão, a falta de informação sobre outras formas de violência contra as mulheres, o risco de vitimização secundária, e a falta de proteção e apoio suficiente às vítimas durante o procedimento criminal.

    Estas foram apenas algumas das considerações encontradas no relatório preparado pelo GREVIO.

    É inegável que Portugal tem envidado esforços assinaláveis na luta contra todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres. O progresso a que assistimos no nosso país tem sido internacionalmente reconhecido e motivo de merecido louvor. No entanto, subsiste ainda muito trabalho a realizar, antes se poder afirmar incondicionalmente que se alcançou, em Portugal e no mundo, uma igualdade plena e efetiva entre mulheres e homens. A Convenção de Istambul é o mais importante instrumento jurídico internacional neste domínio, mas nada mais é que o suporte ou alicerce sobre o qual os Estados devem assentar um edifício jurídico, social, económico e social que corporize o plano traçado na Convenção.

    Bibliografia

    Autor: Pedro Freitas

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