Convenção Europeia dos Direitos Humanos [Dicionário Global]
Convenção Europeia dos Direitos Humanos [Dicionário Global]
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), ou, como hoje é denominada em Portugal (por força da lei n.º 45/2019, de 27 de junho), Convenção Europeia dos Direitos Humanos, é uma convenção internacional elaborada no âmbito do Conselho da Europa (criado em 1949) e assinada em Roma a 4 de novembro de 1950, tendo entrado em vigor em 3 de setembro de 1953 (data do depósito do 10.º instrumento de ratificação). Ao elenco de partes contratantes originárias – Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega e Reino Unido, ou seja, os membros fundadores do Conselho da Europa – juntar-se-iam mais tarde outros Estados, incluindo Portugal, que, pouco após a Revolução de 25 de abril de 1974 e a instauração da democracia, aderiu ao Conselho da Europa e, posteriormente, à CEDH (tendo sido assinada a 22 de setembro de 1976, e o instrumento de ratificação sido depositado a 9 de novembro de 1978). Atualmente, são parte da CEDH todos os 47 Estados que integram o Conselho da Europa, onde se incluem todos os 28 Estados-Membros da União Europeia (UE).
Celebrada num contexto histórico marcante – poucos anos após o termo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) –, a CEDH constituiu o primeiro instrumento que, a nível europeu, visou conferir reconhecimento e proteção aos direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), aprovada a 10 de dezembro de 1948. No plano internacional, além da DUDH, a CEDH só foi antecedida pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 9 de dezembro de 1948. A CEDH antecede também a criação da (então denominada) Comunidade Económica Europeia, instituída pelo Tratado de Roma, de 1957, mas, de algum modo, também está na sua génese, ou, dito de outro modo, constituiu uma “antecâmara” da UE, afirmando-se no preâmbulo que “a finalidade do Conselho da Europa é realizar uma união mais estreita entre os seus Membros e que um dos meios de alcançar esta finalidade é a protecção e o desenvolvimento dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”.
De referir, em qualquer caso, que, embora todos os Estados-Membros da UE, isoladamente considerados, sejam parte da CEDH, o mesmo não acontece com a UE enquanto tal. Através do protocolo n.º 14, de 13 de maio de 2004 (art. 17.º, n.º 1), foi aditado um novo n.º 2 ao art. 59.º da CEDH para permitir a adesão da UE. Essa adesão está prevista no Tratado da União Europeia, desde a revisão operada pelo Tratado de Lisboa (art. 6.º, n.º 2), assinado a 13 de dezembro de 2007. Apesar de sucessivas propostas nesse sentido, a UE ainda não aderiu à CEDH, não tendo ainda sido encontrada forma de ultrapassar o parecer negativo emitido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (parecer n.º 2/13, de 18 de dezembro de 2014). Por conseguinte, os atos e omissões das instituições, órgãos e organismos da UE não são sindicáveis perante o TEDH, não estando os tribunais da UE (Tribunal de Justiça e Tribunal Geral) juridicamente vinculados à jurisprudência do TEDH.
O texto originário da CEDH foi alterado e complementado por diversos protocolos posteriores. Atualmente, a CEDH integra 59 artigos, distribuídos por dois títulos: título I – Direitos e Liberdades; e título II – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
Atentando no título I, verifica-se serem os seguintes os preceitos que a integram: direito à vida (art. 2.º); proibição da tortura (art. 3.º); proibição da escravatura e do trabalho forçado (art. 4.º); direito à liberdade e à segurança (art. 5.º); direito a um processo equitativo (art. 6.º); princípio da legalidade (art. 7.º); direito ao respeito pela vida privada e familiar (art. 8.º); liberdade de pensamento, de consciência e de religião (art. 9.º); liberdade de expressão (art. 10.º); liberdade de reunião e de associação (art. 11.º); direito ao casamento (art. 12.º); direito a um recurso efetivo (art. 13.º); proibição de discriminação (art. 14.º); derrogação em caso de estado de necessidade (art. 15.º); restrições à atividade política dos estrangeiros (art. 16.º); proibição do abuso de direito (art. 17.º); e limitação da aplicação de restrições aos direitos (art. 18.º). Protocolos posteriores vieram completar e aperfeiçoar o catálogo, aditando o direito de propriedade, o direito à instrução e o direito a eleições livres (Protocolo Adicional, de 20 de março de 1952), a proibição da prisão por dívidas e a liberdade de circulação (protocolo n.º 4, de 16 de setembro de 1963), a abolição da pena de morte (protocolo n.º 6, de 28 de abril de 1983), bem como o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, o direito a indemnização por erro judiciário, o princípio ne bis in idem e a igualdade entre cônjuges (protocolo n.º 7, de 22 de novembro de 1984).
Como se vê, trata-se de um elenco heterogéneo, que mistura o reconhecimento de verdadeiros direitos ou liberdades (v.g., direito à vida, direito à liberdade e à segurança, direito ao respeito pela vida privada e familiar, liberdade de pensamento, de consciência e religião, direito ao casamento, liberdade de circulação, direito de propriedade) com a proibição de adoção de condutas lesivas desses direitos ou liberdades (proibição da tortura, proibição da escravatura e do trabalho forçado, proibição de discriminação, proibição de pena de morte), o estabelecimento de pressupostos ou de limites à restrição de direitos (princípio da legalidade – nulla poena sine lege –, derrogação em caso de estado de necessidade, limitação da aplicação de restrições aos direitos, proibição de prisão por dívidas) e ainda a limitação ao exercício desses mesmos direitos (proibição de abuso de direito), sem esquecer a previsão de garantias de proteção e de reparação (direito a um processo equitativo, direito a um recurso efetivo, direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, direito a indemnização por erro judiciário).
De sublinhar que, se, em alguns casos, a CEDH se limita a enunciar genericamente determinados direitos e liberdades, noutros casos, por seu turno, a CEDH vai mais longe e detalha com mais pormenor as faculdades que integram o conteúdo do direito e desenvolve os corolários que dele decorrem. Veja-se, paradigmaticamente, o que se refere a propósito do direito de propriedade, dispondo o art. 1.º do Protocolo Adicional que, gozando todos do “direito ao respeito dos seus bens”, tal significa que “[n]inguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional”; ou, de forma ainda mais expressiva, no tocante ao direito a um processo equitativo, preceituando o art. 6.º da CEDH que “[q]ualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça”. Nesta linha, sob a capa de um único direito, o processo equitativo desdobra-se em múltiplas garantias, mais concretamente: (i) de que a causa do interessado seja examinada por um tribunal independente e imparcial; (ii) que esse tribunal seja instituído por lei; (iii) que o exame da causa seja efetuado de forma equitativa e pública; (iv) que a decisão surja num prazo razoável. Este elevado grau de concretização permite que o regime da CEDH, segundo resulta da Convenção e tal como interpretado e aplicado pelo TEDH, produza um verdadeiro efeito conformador sobre o ordenamento jurídico internacional dos diversos Estados europeus que são parte da Convenção. De resto, Portugal tem sido objeto de diversas condenações pelo TEDH, com fundamento em violação de obrigações emergentes da CEDH (incluindo dos seus Protocolos), destacando-se condenações por morosidade na justiça (em violação do referido direito a uma decisão em “prazo razoável”) e por ilegítima restrição da liberdade de expressão (tendo o TEDH censurado o Estado Português por diversas situações em que os tribunais nacionais condenaram jornalistas ou colunistas a indemnizar figuras públicas com fundamento em textos de opinião publicados a seu respeito).
Para garantia dos direitos e liberdades previstos na CEDH, foi instituído (em 1959) o TEDH, com sede em Estrasburgo, que efetuou a sua primeira sessão em fevereiro de 1959 e, até hoje, realizou já cerca de 20 mil julgamentos. O protocolo 11 à CEDH, de 11 de maio de 1994, procedeu à eliminação da Comissão Europeia dos Direitos Humanos, razão pela qual, desde 1998, o TEDH representa o único sistema internacional de controlo da observância dos direitos humanos de caráter exclusivamente jurisdicional.
O TEDH é composto por tantos juízes quantos os Estados contratantes (art. 20.º), os quais são eleitos pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (art. 22.º) para um mandato de 9 anos, não renovável (art. 23.º, n.º 1). Os juízes do TEDH deverão gozar da mais alta reputação moral e reunir as condições requeridas para o exercício de altas funções judiciais ou ser jurisconsultos de reconhecida competência (art. 21.º, n.º 1), não podendo, durante o respetivo mandato, exercer qualquer atividade incompatível com as exigências de independência, imparcialidade ou disponibilidade exigidas por uma atividade exercida a tempo inteiro (art. 21.º, n.º 4) e não podendo, também, ser afastados das suas funções, salvo se os restantes juízes decidirem, por maioria de dois terços, que o juiz em causa deixou de corresponder aos requisitos exigidos (art. 23.º, n.º 3).
O TEDH tem por missão assegurar o respeito dos compromissos que, para os Estados contratantes, decorrem da CEDH e dos seus protocolos (art. 19.º), e a sua competência abrange todas as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção e dos respetivos protocolos que lhe sejam submetidas nas condições previstas na própria CEDH (art. 32.º, n.º 1).
A este respeito, importa assinalar que qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação, por qualquer Estado que integre a CEDH, dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos pode apresentar uma queixa junto do TEDH (art. 34.º). No entanto, por força do denominado princípio da subsidiariedade, o Tribunal só pode ser chamado a intervir depois de “esgotadas todas as vias de recurso internas” (art. 35.º, n.º 1); além disso, a queixa tem de ser apresentada num prazo de quatro meses a contar da data da decisão interna definitiva (mesmo art. 35.º, n.º 1, na redação que lhe foi dada pelo protocolo n.º 15, de 24 de junho de 2013, sendo que, anteriormente, o prazo era mais alargado, de seis meses).
Decidido o litígio, por decisão fundamentada (art. 45.º, n.º 1), a parte vencida pode requerer a devolução do assunto ao tribunal pleno, sendo que, se não o fizer no prazo de três meses, a sentença torna-se definitiva (arts. 43.º, n.º 1, e 44.º, n.º 2, alínea b)), devendo ser publicada (art. 44.º, n.º 3) e tornando-se vinculativa para o Estado que tiver sido condenado (art. 46.º, n.º 1). A execução da sentença definitiva (seja a inicialmente proferida, seja a resultante da reapreciação pelo tribunal pleno) é acompanhada pelo Comité de Ministros, o qual, se considerar que a decisão não está a ser cumprida, pode desencadear junto do TEDH um procedimento com vista à determinação das medidas a adotar (art. 46.º, n.os 2 a 5).
Ainda que possa declarar a existência de uma violação da CEDH (ou de qualquer um dos seus Protocolos) por um Estado contratante, independentemente da função estadual em que se insere o ato ou omissão lesivos, o TEDH não se sobrepõe ao Estado (não declara a invalidade de atos legislativos nem anula atos administrativos ou decisões judiciais), cabendo ao Estado tomar as providências necessárias para suprimir a lesão provocada; quando muito, se tiver ocorrido violação da CEDH e o ordenamento jurídico interno do Estado incumpridor “não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação”, o TEDH poderá atribuir à parte lesada “uma reparação razoável, se necessário” (art. 41.º).
Enquanto convenção internacional, a CEDH complementa o catálogo e regime de proteção dos direitos fundamentais previstos nas constituições de cada um dos Estados contratantes, prevalecendo (a um nível infraconstitucional) sobre disposições normativas ou atos singulares que contrariem aquele mesmo regime.
O sistema adjetivo/processual de garantia instituído não é perfeito e conhece algumas limitações, mas, ao longo de várias décadas, a jurisprudência do TEDH – vinculativa para os Estados que integram a CEDH – tem assumido um papel muitíssimo relevante na afirmação e tutela dos direitos fundamentais no espaço europeu.
Bibliografia
Impressa
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Digital
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TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (s.d.), https://gddc.ministeriopublico.pt/faq/tribunal-europeu-dos-direitos-humanos-tedh (acedido a 10.03.22).
Autor: Marco Caldeira