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  • Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina

    Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina

    A Convenção para a Proteção do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e Medicina, abreviadamente designada por Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (CDHB), entrou em vigor em 1 de dezembro de 1999, após perto de uma década de trabalho por parte do Comité Diretor de Bioética do Conselho da Europa. Foi ratificada pelo decreto do presidente da República Portuguesa n.º 1/2001, de 3 de janeiro, que também ratificou o seu Protocolo Adicional que Proíbe a Clonagem de Seres Humanos.

    Esta Convenção segue na esteira de vários outros instrumentos jurídicos internacionais com vista à proteção dos direitos humanos, caminho que começou a ser trilhado desde as duas Grandes Guerras Mundiais do século XX: “a aniquilação em massa de muitos milhões de seres humanos por motivos ideológicos, o genocídio de vários povos, os campos de concentração, a tortura, as pseudo-experimentações ‘científicas’ fizeram de inúmeros seres humanos vítimas e cobaias de experiências inqualificáveis” (ROSETA, 2003, 10-11). Assim, além de uma mera Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), foi, pois, criado o Conselho da Europa, em 1949. O ano seguinte veria surgir a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, com força vinculativa para os Estados, tendo sido, pela primeira vez, criados órgãos para assegurar o seu efetivo respeito: a Comissão e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

    Várias outras convenções relativas aos direitos humanos se lhes seguiram (como a Carta Social Europeia de 1961, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais de 1966, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, etc.). Contudo, o desenvolvimento contínuo e avassalador da técnica, da medicina e da biologia viriam a levantar questões éticas e jurídicas prementes, que não podiam ser deixadas de parte. Como refere o preâmbulo da CDHB, os Estados-Membros do Conselho da Europa e os seus signatários, conscientes da necessidade de continuar a salvaguardar os direitos humanos e o respeito pela dignidade do ser humano, conscientes de que “a utilização imprópria da biologia e da medicina podem conduzir a actos que podem pôr em perigo a dignidade humana”, mas reconhecendo que “os progressos da biologia e da medicina devem ser utilizados para o benefício das gerações presentes e futuras”, concordaram na redação do texto aqui em análise.

    Assim, “[a] Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, o primeiro instrumento jurídico internacional no campo da bioética” (CAMPOS, 2001, 77), nos termos do seu art. 1.º, tem como objetivo “protege[r] o ser humano na sua dignidade e na sua identidade e garant[ir] a toda a pessoa, sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos seus outros direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina”. Para tanto, cada uma das Partes da Convenção “deve adoptar, no seu direito interno, as medidas necessárias para tornar efectiva a [sua] aplicação”.

    Contudo, as Partes não conseguiram chegar a consenso sobre a definição de “pessoa”, mais concretamente, sobre o início da vida humana. A questão não se punha em termos biológicos (o início da vida humana ocorre no momento da fecundação, que cria um ser irrepetível, caso a natureza siga o seu curso normal), mas, em termos jurídicos: os de saber quando e em que termos é que a vida humana deve ser protegida juridicamente, ou seja, a inexistência de consenso sobre o começo da vida humana “resulta sobretudo do facto de a protecção jurídica do começo da vida humana não ser uma questão biológica […], mas sim normativa, valorativa, tendo por base a realidade científica” (SILVA, 1997, 35). Assim, adotou-se a expressão “ser humano”, suficientemente “neutra e abrangente” para permitir a sua aplicação “à pessoa humana em todas as fases da sua evolução” (CAMPOS, 2001, 77) e “decidiu-se não definir o ser humano e deixar-se aos países membros a aplicação do que se enuncia no artigo primeiro em função do acordo interno nacional” (QUINTANA-TRIAS, 1997, 23).

    Segundo Daniel Serrão, este art. 1.º foi um dos mais difíceis de redigir, acabando por fazer “uma subtil distinção entre ser humano e pessoa humana, sem definir estes conceitos; a contrapartida para a aceitação desta formulação do art. 1.º por parte de numerosos países entre os quais Portugal foi a aprovação proposta para a elaboração do protocolo sobre a protecção do embrião e do feto” (SERRÃO, 1997, 19). De facto, Portugal já ratificou vários Protocolos Adicionais à Convenção, o primeiro dos quais, que proíbe a clonagem humana, no mesmo decreto que ratificou a própria Convenção, como vimos. Seguiu-se-lhe o decreto do presidente da República n.º 19/2017, de 20 de fevereiro, que ratificou o Protocolo Adicional à Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina, Relativo à Investigação Biomédica (apesar de este protocolo se aplicar ao conjunto de atividades de investigação com intervenção no ser humano no campo da saúde, não se aplica à investigação em embriões in vitro, mas apenas à investigação em fetos e embriões in vivo, cf. o seu art. 2.º), e o decreto do presidente da República n.º 153/2017, de 21 de dezembro, que ratifica o Protocolo Adicional à Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina, relativo a Testes Genéticos para Fins de Saúde. Apesar de as ratificações destes Protocolos Adicionais se terem verificado mais tarde, a verdade é que os seus princípios (que, aliás, já decorrem da própria Convenção) foram tidos em consideração na legislação portuguesa, nomeadamente na Lei sobre a Procriação Medicamente Assistida (LPMA: lei n.º 32/2006, de 26 de julho, já com sucessivas alterações).

    Naturalmente, a CDHB não pretende impedir o avanço da ciência e da técnica, que beneficiarão a espécie humana e a sociedade no seu todo, mas visa encontrar “os equilíbrios justos mas difíceis entre os direitos e os interesses (i) do indivíduo, (ii) da sociedade, (iii) da ciência e (iv) da espécie humana” (ARCHER, 1997, 13). No entanto, a Convenção reconhece desde logo no seu art. 2.º o princípio do “primado do ser humano”, estabelecendo que “[o]s interesses e o bem-estar do ser humano deverão prevalecer sobre o interesse exclusivo da sociedade ou da ciência”. O seu texto foi “retirado da ‘Declaração de Helsínquia’ […] [não só] como a evocação de um princípio já aceite, mas sim como o corroborar da actualidade e validade daquele enunciado” (NEVES, 2003, 27-28). Este princípio dá uma orientação muito clara sobre quais os interesses prevalecentes (indivíduo vs. sociedade), particularmente no domínio da investigação científica (Capítulo V da Convenção). E é assim por respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, cujo corpo não pode ser considerado um meio para se atingir um fim: “assegurar o respeito do corpo humano é uma condição sine qua non do respeito devido à pessoa” (SILVA, 1997, 34).

    Este princípio encontra-se plasmado, desde logo, na Capítulo II, que trata do consentimento. O art. 5.º exige o consentimento informado do indivíduo para que se lhe possa ministrar qualquer intervenção no domínio da saúde. Os artigos seguintes (6.º a 9.º) preveem, ainda, medidas de proteção das pessoas que não tenham capacidade para consentir, como é o caso dos menores, cuja opinião, ainda assim, deve ser tida em conta, em função da sua idade e da sua maturidade, e em quem tais intervenções só são admitidas com “a autorização do seu representante, de uma autoridade ou de uma pessoa ou entidade designada pela lei”; o mesmo se diga de adultos que não possam consentir por incapacidade mental, doença ou razões similares, prevendo, ainda, o art. 7.º que “a pessoa que sofra de uma doença mental grave não pode ser submetida, sem o seu consentimento, a uma intervenção que tenha por objecto o tratamento dessa doença”, a não ser que a ausência desse tratamento possa ser gravemente prejudicial à sua saúde. No entanto, o art. 9.º reitera que a vontade previamente expressa pelo paciente, quando ainda estava em condições de a exprimir, deve ser tida em consideração no que toca a intervenções médicas futuras. Por outro lado, o art. 8.º permite que intervenções indispensáveis à saúde da pessoa sejam feitas em situações de urgência em que não seja possível obter o consentimento informado do paciente.

    É também o respeito pela dignidade da pessoa humana que pauta as normas que obrigam à confidencialidade da informação sobre a saúde do ser humano (Capítulo III, art. 10.º, que consagra o direito ao respeito pela vida privada relativamente a informações sobre a sua saúde e o seu direito à informação e a não ser informada, se assim o preferir), nomeadamente no que toca à informação genética.

    O Capítulo IV, relativamente ao genoma humano, proíbe qualquer forma de discriminação contra uma pessoa, em razão do seu património genético, indo ao ponto de apenas permitir testes preditivos de doenças genéticas ou de predisposição genética para certas doenças, para fins médicos e sob aconselhamento genético adequado. Esta norma visa evitar a potencial discriminação de que podem ser alvo pessoas cujos genes as possam predispor a vir a sofrer no futuro de certas doenças, nomeadamente por parte de entidades empregadoras ou companhias seguradoras, sem falar das questões éticas relativas à tentação de segregação de pessoas consideradas indesejáveis em termos genéticos (SILVA, 1997, 52 e 53). Daí que o art. 13.º proíba intervenções que visem modificar o genoma humano, a não ser por razões preventivas, de diagnóstico ou terapêuticas. Esta norma visa também evitar a violação do “eventual direito que as gerações futuras terão em herdar um património genético não manipulado” em virtude de uma eventual “engenharia genética eugénica” (SILVA, 1997, 54). A proibição de discriminação em razão das características genéticas da pessoa alarga-se também ao seu sexo: o art. 14.º apenas admite a utilização de técnicas de procriação assistida para determinar o sexo de uma criança, quando visem evitar uma doença hereditária grave relacionada com o sexo.

    O Capítulo V, relativo à investigação científica, admite que esta seja feita livremente, mas sob reserva das disposições da Convenção e de outras disposições legais que assegurem a proteção do ser humano. Assim, a liberdade de investigação não é absoluta, “encontrando-se limitada pelos direitos humanos fundamentais” (SILVA, 1997, 57). Nos termos do art. 16.º, a experimentação científica em seres humanos deverá sempre submeter-se ao seu consentimento informado, que deverá ser prestado por escrito, concretamente para cada intervenção específica; além disso, deverá ser atual e livre, podendo ser retirado a qualquer momento; à cautela, ainda assim, a Convenção exige que cada projeto de investigação seja aprovado por uma entidade competente, que avalie de forma independente o seu mérito científico, a sua importância e utilidade e a sua aceitabilidade ética; para tanto, o art. 16.º exige, ainda, que “o risco que a pessoa possa correr não seja desproporcional aos potenciais benefícios da investigação e que não haja nenhuma alternativa a esta investigação, de eficácia comparável. Estes requisitos já se encontravam plasmados na lei portuguesa, no decreto-lei n.º 97/94 de 9 de abril, relativamente aos ensaios clínicos a realizar em seres humanos. O art. 17.º da CDHB estabelece requisitos apertados para proteção das pessoas que não tenham capacidade para consentir numa investigação nos termos do art. 5.º (nomeadamente, que esta não se oponha, que seja dada a autorização prevista no art. 6.º e que a referida investigação não possa realizar-se, ao invés, sobre pessoas capazes de consentir). Finalmente, o art. 18.º, n.º 1 obriga os Estados Partes a assegurar que a investigação em embriões in vitro, quando admitida pela respetiva lei, assegure uma proteção adequada do embrião, uma norma muito vaga, que abre grande margem de discricionariedade a cada Estado. Já não é o caso do n.º 2 do art. 18.º, que proíbe em absoluto a criação de embriões humanos para fins de investigação científica.

    É também o respeito pela dignidade do ser humano que explica a consagração de normas que pugnam pelo acesso universal e equitativo dos cidadãos aos cuidados de saúde (art. 3.º) e as que proíbem a comercialização do corpo humano, não permitindo retribuição por nenhuma das suas partes, órgãos ou tecidos, sendo que a utilização de uma parte do corpo humano que tenha sido removida só pode ser utilizada para o fim para o qual foi feita a remoção, de acordo com os devidos consentimentos e informações (Capítulo VII, arts. 21.º e 22.º, respetivamente). É também de acordo com esta ratio que a nossa LPMA apenas admite a gestação de substituição a título gratuito, “porque garant[e] a liberdade da gestante e assim salvaguard[a] a sua dignidade” (GUIMARÃES, 2018, 184).

    O Capítulo VI dedica-se à questão da colheita de órgãos e de tecidos de dadores vivos para fins de transplante, só sendo esta admitida em ultima ratio (para benefício do paciente-beneficiário, quando não exista órgão ou tecido disponível de pessoa já falecida) e mediante o respetivo consentimento informado do dador, que aqui tem de ser obrigatoriamente expresso, ou por escrito ou perante uma entidade oficial (art. 19.º). O art. 20.º proíbe a colheita de órgãos de pessoa incapaz de consentir de acordo com o art. 5.º, abrindo apenas exceção para os casos em que estejam preenchidos requisitos cumulativos muito apertados (como o beneficiário ser irmão ou irmã do dador; o potencial dador não se opor; não existir mais nenhum doador compatível; a doação ter o potencial de salvar a vida do beneficiário e mediante a autorização prevista no art. 6.º, n.os 2 e 3, da entidade competente).

    Bibliografia

    Impressa

    ARCHER, L. (1997). “Três comentários breves à nova Convenção”. In P. M. da Silva (ed.). Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina: Anotada (13-15). Lisboa: Edições Cosmos.

    GUIMARÃES, M. R. (2018). “As particularidade do regime do contrato de gestação de substituição no direito português e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2108”. Revista de Bioética y Derecho, 44, 179-200.

    INSTITUTO DE BIOÉTICA (org.) (2003). Direitos do Homem e Biomedicina – Actas da Oficina sobre a Convenção para a Protecção do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e Medicina. Lisboa: Universidade Católica Editora.

    NEVES, M. P. (2003). “Artigo 2.º – Primado do Ser Humano”. In Instituto de Bioética (org.). Direitos do Homem e Biomedicina – Actas da Oficina sobre a Convenção para a Protecção do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e Medicina (27-44). Lisboa: Universidade Católica Editora.

    QUINTANA-TRIAS, O. (1997). “Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina”. In P. M da Silva (ed.). Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina: Anotada (21-24). Lisboa: Edições Cosmos.

    ROSETA, P. (2003). “Conferência de abertura”. Instituto de Bioética (org.). Direitos do Homem e Biomedicina – Actas da Oficina sobre a Convenção para a Protecção do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e Medicina (9-18). Lisboa: Universidade Católica Editora.

    SERRÃO, D. (1997). “Um percurso difícil”. In P. M. da Silva (ed.). Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina: Anotada (17-20). Lisboa: Edições Cosmos.

    SERRÃO, D. (2003). “Comentário ao artigo 1.º – Objectivo e finalidade”. Instituto de Bioética (org.). Direitos do Homem e Biomedicina – Actas da Oficina sobre a Convenção para a Protecção do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e Medicina (19-26). Lisboa: Universidade Católica Editora.

    SILVA, P. M. da (1997). Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina: Anotada. Lisboa: Edições Cosmos.

     

    Digital

    CAMPOS, A. de (2001). “A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina”. Revista Portuguesa de Saúde Pública, 19 (1), 77-78, https://run.unl.pt/bitstream/10362/101139/1/RUN%20-%20RPSP%20-%202001%20-%20v19n1a007%20-%20p77-78.pdf (acedido a 26.02.2024).

     

    Autora: Sónia Moreira

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