Corte Interamericana de Direitos Humanos [Dicionário Global]
Corte Interamericana de Direitos Humanos [Dicionário Global]
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é o órgão jurisdicional do sistema regional interamericano, composta por sete juízes nacionais de Estados-Membros da OEA, eleitos a título pessoal pelos Estados Partes da Convenção.
A Corte Interamericana apresenta competência consultiva e contenciosa. Por meio de sua competência consultiva, a Corte desenvolve a interpretação de disposições da Convenção e de outros tratados de proteção dos direitos humanos no Estados americanos, editando Opiniões Consultivas, nos termos do art. 64.º da Convenção Americana. Por meio de sua competência contenciosa, a Corte julga casos em que há violação a direitos ou liberdades protegidos pela Convenção Americana, proferindo sentenças e ordenando medidas de reparação, nos termos do art. 63.º da Convenção Americana.
No plano consultivo, qualquer membro da OEA – parte ou não da Convenção – pode solicitar o parecer da Corte em relação à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. A Corte ainda pode opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos internacionais, efetuando, assim, o “controle da convencionalidade das leis”. Ressalte-se que a Corte não efetua uma interpretação estática dos direitos humanos enunciados na Convenção Americana, mas, tal como a Corte Europeia, realiza interpretação dinâmica e evolutiva, de forma a interpretar a Convenção considerando o contexto temporal da interpretação, o que permite a expansão de direitos.
Até 2023, a Corte havia emitido 29 opiniões consultivas. No exercício de sua competência consultiva, a Corte Interamericana tem desenvolvido análises aprofundadas a respeito do alcance e do impacto dos dispositivos da Convenção Americana. Dentre as opiniões emitidas pela Corte, destaca-se o parecer acerca da impossibilidade da adoção da pena de morte no Estado da Guatemala (Opinião Consultiva n.º 3, de 1983). Merece destaque também o parecer emitido pela Corte sobre a filiação obrigatória de jornalistas, por solicitação da Costa Rica (Opinião Consultiva n.º 5, 1985). Em outro parecer (Opinião Consultiva n.º 8, de 30 de janeiro de 1987), por solicitação da Comissão Interamericana, a Corte considerou que o habeas corpus é garantia de proteção judicial insuscetível de ser suspensa, ainda que em situações de emergência, em respeito ao art.º 27 da Convenção Americana. Mencione-se, ainda, o parecer emitido, por solicitação do México (Opinião Consultiva n.º 16, 1999), em que a Corte considerou violado o direito ao devido processo legal, quando um Estado não notifica um preso estrangeiro de seu direito à assistência consular. Também merece realce a Opinião Consultiva n.º 21, de 2014, a respeito dos direitos e garantias de crianças no contexto da migração e/ou em necessidade de proteção especial. Por sua vez, na Opinião Consultiva n.º 22, de 2016, a Corte Interamericana tratou da titularidade dos direitos de pessoas jurídicas no âmbito do sistema interamericano, à luz da Convenção Americana e do Protocolo de San Salvador (art. 8.º). Em 2017, foi emitida a Opinião Consultiva n.º 23, a respeito de meio ambiente e direitos humanos, esclarecendo o alcance das obrigações estatais em relação ao meio ambiente. Cabe ainda destaque à Opinião Consultiva n.º 24, a respeito do direito à identidade de gênero e ao matrimônio igualitário, emitida em 2017, realçando que os direitos à intimidade e à privacidade são insuscetíveis de ingerência estatal, resguardando a vivência interna de cada indivíduo, o que e como cada pessoa sente, como se vê e como se projeta na sociedade. Adicione-se a Opinião Consultiva n.º 25, a respeito do instituto do asilo, emitida em 2018, enfocando reconhecimento do asilo como direito humano no sistema interamericano de proteção. Acrescente-se, ademais, a Opinião Consultiva n.º 26, emitida em 2020, a respeito da denúncia à Convenção Americana e à Carta da OEA e seus efeitos sobre as obrigações estatais em matéria de direitos humanos. Já a Opinião Consultiva n.º 27, emitida em 2021, versa acerca do alcance dos direitos à liberdade sindical, negociação coletiva e greve e sua relação com outros direitos, sob a perspectiva de gênero. A Opinião Consultiva n.º 28, emitida em 2021, enfoca o instituto da reeleição presidencial indefinida nos regimes presidencialistas no contexto do sistema interamericano de direitos humanos. Por fim, a Opinião Consultiva n.º 29, emitida em 2022, trata de enfoques diferenciados relativamente a determinados grupos de pessoas privadas de liberdade.
No plano contencioso, a competência da Corte para o julgamento de casos é, por sua vez, limitada aos Estados Partes da Convenção que reconheçam tal jurisdição expressamente, nos termos do art. 62.º da Convenção. Apenas a Comissão Interamericana e os Estados Partes podem submeter um caso à Corte Interamericana, não estando prevista a legitimação do indivíduo, nos termos do art. 61.º da Convenção Americana.
A Corte tem jurisdição para examinar casos que envolvam a denúncia de que um Estado Parte violou direito protegido pela Convenção. Se reconhecer que efetivamente ocorreu a violação, determinará a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado. A Corte pode ainda condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima. A decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento. Se a Corte fixar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução de sentença desfavorável ao Estado. Até 2023, dos 24 Estados Partes da Convenção Americana de Direitos Humanos, 22 haviam reconhecido a competência contenciosa da Corte.
No exercício de sua jurisdição contenciosa, até 2023, a Corte Interamericana havia proferido 484 sentenças, das quais 371 referem-se a exceções preliminares, sentenças de mérito (que avaliam fundamentalmente se houve violação ou não) e sentenças sobre reparação, enquanto 91 são relacionadas à interpretação de sentença e outras questões. Havia ainda adotado 713 medidas provisórias, como tutelas de urgência, em situações de gravidade, urgência e danos irreparáveis.
No plano da jurisdição contenciosa, referência obrigatória é o leading cases “Velasquez Rodriguez”, atinente ao desaparecimento forçado de indivíduo no Estado de Honduras. Acolhendo denúncia encaminhada pela Comissão Interamericana, a Corte condenou o Estado de Honduras ao pagamento de indenização aos familiares do desaparecido, em decisão de 1989. Após o caso Velasquez Rodriguez, dois outros julgamentos foram proferidos pela Corte Interamericana, ambos envolvendo desaparecimentos no Estado de Honduras.
No caso Barrios Altos, em virtude da promulgação e aplicação de leis de anistia (uma que concede anistia geral aos militares, policiais e civis, e outra que dispõe sobre a interpretação e alcance da anistia), o Peru foi condenado a reabrir investigações judiciais sobre os fatos em questão, relativos ao “massacre de Barrios Altos”, de forma a derrogar ou tornar sem efeito as leis de anistia mencionadas, em sentença proferida pela Corte em 2001. No mesmo sentido, destaca-se o caso Almonacid Arellano em face do Chile, cujo objeto era a validade do decreto-lei n.º 2.191/78 – que perdoava os crimes cometidos entre 1973 e 1978, durante o regime Pinochet – à luz das obrigações decorrentes da Convenção Americana de Direitos Humanos. Decidiu a Corte pela invalidade do mencionado decreto-lei de “autoanistia”, por implicar a denegação de justiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa-humanidade, em sentença emitida em 2006. No caso Gomes Lund, e outros contra o Brasil, a Corte Interamericana, em 2010, condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia, durante as operações militares ocorridas na década de 70. Na mesma direção, em 24 de fevereiro de 2011, no caso Gelman contra o Uruguai, a Corte Interamericana decidiu que a Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva carecia de efeitos jurídicos, por sua incompatibilidade com a Convenção Americana e com a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, não podendo impedir ou obstar a investigação dos fatos, a identificação e eventual sanção dos responsáveis por graves violações a direitos humanos.
No caso “A Última Tentação de Cristo”, em 2001, a Corte condenou o Chile em virtude de censura prévia à exibição cinematográfica do referido filme, decorrente da violação aos direitos de liberdade de pensamento e expressão, bem como de liberdade de consciência e religião, assegurados nos arts. 12.º e 13.º da Convenção Americana. Entendeu a Corte que a censura prévia, autorizada pelo art.º 19 da Constituição chilena, era incompatível com as dimensões individual e social da liberdade de expressão, condição essencial a toda sociedade democrática. A Corte demandou do Chile a reforma de sua legislação doméstica, que foi implementada por esse Estado, compreendendo a adoção de nova lei e a reforma da Constituição, de forma a abolir a censura prévia.
Cabe também menção ao caso Villagran Morales contra a Guatemala, em que esse Estado foi condenado pela Corte, em virtude da impunidade relativa à morte de cinco meninos em situação de rua, brutalmente torturados e assassinados por dois policiais nacionais da Guatemala. Entre as medidas de reparação ordenadas pela Corte estão: o pagamento de indenização pecuniária aos familiares das vítimas; a reforma no ordenamento jurídico interno visando à maior proteção dos direitos das crianças e adolescentes guatemaltecos; e a construção de uma escola em memória das vítimas. Nesse caso, a Corte afirmou que o direito à vida não pode ser concebido restritivamente. Introduziu a visão de que o direito à vida compreende não apenas uma dimensão negativa – o direito a não ser privado da vida arbitrariamente –, mas uma dimensão positiva, que demanda dos Estados medidas positivas apropriadas para proteger o direito à vida digna – o “direito a criar e desenvolver um projeto de vida”. Essa interpretação lançou um importante horizonte para a proteção dos direitos sociais.
Quanto aos direitos dos povos indígenas, destaca-se o relevante caso da comunidade indígena Mayagna Awas Tingni contra a Nicarágua, em que a Corte, em 2001, reconheceu o direito dos povos indígenas à propriedade coletiva da terra, como uma tradição comunitária, e como um direito fundamental e básico à sua cultura, à sua vida espiritual, à sua integridade e à sua sobrevivência econômica. Acrescentou que, para os povos indígenas, a relação com a terra não é somente uma questão de possessão e produção, mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras.
No caso Lagos del Campo e no caso Trabalhadores Demitidos de Petroperu, ambos contra o Estado do Peru, decididos em 2017, ineditamente, a Corte Interamericana considerou restar caracterizada uma violação autônoma do art. 26.º da Convenção Americana. Em sentido similar, destaca-se a sentença proferida em 2018, no caso Poblete Vilches y Otros contra o Estado do Chile, que consolidou relevantes parâmetros interamericanos a respeito do direito à saúde envolvendo pessoa idosa, com ênfase ao direito ao consentimento informado. No mesmo sentido, cabe menção à sentença do caso Cuscul Pivaral contra o Estado da Guatemala, proferida em 2018, em que, também ineditamente, a Corte condenou um Estado por violar o dever de progressivamente implementar o direito à saúde, em situação envolvendo pessoas vivendo com HIV na Guatemala. Em 2020, no caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) contra o Estado da Argentina, a Corte Interamericana, de forma inédita, reconheceu a responsabilidade internacional do Estado por violação autônoma dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais de comunidades indígenas, com destaque para os direitos ao meio ambiente saudável, à alimentação e à água, no contexto da pandemia, tendo por fundamento o art. 26.º da Convenção Americana.
Como revelam as decisões da Corte Interamericana, o sistema interamericano tem por alicerce três dimensões: a) a centralidade das vítimas (o chamado victim centric approach); b) os estândares interamericanos (o corpus juris interamericano); e c) o instituto da reparação integral. Por meio do instituto da reparação integral e de seu amplo alcance, sustenta-se que violações estruturais têm causas estruturais, a impulsionar a incidência do mandato transformador do sistema interamericano em desmantelar violações estruturais a direitos humanos. O mandato transformador do sistema interamericano permite, assim, impulsar mudanças estruturais em marcos normativos e políticas públicas, buscando romper com a perpetuação de violações, com fundamento no dever de prevenção dos Estados. A vocação maior do sistema interamericano é proteger direitos, mas também transformar realidades, tendo como inspiração maior a prevalência da dignidade humana.
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Autora: Flávia Piovesan