Declaração das Cortes de Leão [Dicionário Global]
Declaração das Cortes de Leão [Dicionário Global]
Os decretos emanados da reunião extraordinária da curia regis realizada no claustro do Mosteiro de Santo Isidoro de Leão em 1188 são percecionados como um elemento essencial na história do parlamentarismo europeu ao atestarem, pela primeira vez, uma presença institucional do “povo” no seio de reuniões que, até então, eram certamente restritas aos monarcas e aos magnates leigos e eclesiásticos dos reinos da Cristandade ocidental.
Esta abertura à presença de membros das cidades e vilas numa esfera de debate político teve como pano de fundo geral o desenvolvimento de um contexto urbano a nível da Cristandade ocidental e central, o qual permitiu uma valorização da atividade mercantil e artesanal, bem como o recrudescer de lutas antissenhoriais, ambas justificativas da assunção de um mais efetivo papel político destas novas elites urbanas. No caso de Leão, esta conjuntura global entrecruzou-se com um contexto socioeconómico específico, de grandes e prementes necessidades financeiras, resultantes de uma pressão militar e do esgotamento do tesouro régio, causados por uma guerra endémica contra castelhanos, portugueses e almóadas e por alienações efetuadas no tempo do rei Fernando II (n. 1137 – m. 1188). Diante dessa difícil realidade social, política e económica de um reino que acabara de herdar, Afonso IX de Leão (r. 1188-1230) decidiu reunir extraordinariamente a sua curia, na qual o inovador acesso de representantes concelhios tem sido percebido como uma concessão e uma contrapartida do novo monarca à necessária ajuda financeira por parte dos concelhos leoneses para fazer face à crise.
Com o propósito de endereçar tais necessidades, nesta curia regis – precursora do que viriam a tornar-se mais tarde as Cortes realizadas com a participação do clero, da nobreza e dos representantes dos concelhos – foram tomadas duas grandes decisões: o cancelamento das muitas doações efetuadas no reinado de seu pai, Fernando II, e a redação de um conjunto de regulações (decreta). Este ordenamento jurídico, elaborado com o propósito de manter a justiça e a paz em todo o reino de Leão, incidiu sobretudo em disposições destinadas a promover o fortalecimento do primado da lei (compromisso régio a cumprir a lei e os procedimentos e decisões judiciais), a garantia da ordem pública e a proteção da propriedade privada.
É hoje aceite que a participação de representantes eleitos das cidades e vilas leonesas na curia extraordinária de 1188 não foi a primeira presença “citadina” em manifestações políticas importantes, pois é conhecida a presença de homens-bons dos concelhos na coroação imperial de Afonso VII (1135) e no acordo matrimonial da infante Berenguela, filha de Afonso VII (1187). Mas, ao contrário destes últimos, nos quais o “povo” manteve certamente um papel mais passivo, os representantes camarários foram expressamente convocados para esta curia e foram incluídos nos seus resultados, uma vez que os membros dos municípios leoneses fariam doravante parte dos que devem ser ouvidos antes de o rei declarar guerra e paz (Decreto IV). O documento consagrou também disposições mais técnicas relacionadas com estes homens-bons dos burgos leoneses, ao consagrar que o seu testemunho poderia ser requerido para que uma queixa pudesse ser recebida pela justiça régia, caso o senhor ou o bispo não fornecesse a necessária garantia solicitada pelo acusado (Decreto V), para aferir que os magistrados de uma qualquer terra negaram o acesso à justiça ao queixoso (Decreto IX) ou para justificar a ausência em processo judicial (Decreto XI). De igual modo, estes homens-bons, à semelhança dos bispos e nobres, deveriam cumprir as ordens e vontades régias (Decreto XVII).
Pertencentes sobretudo ao domínio judicial e político, as disposições contidas nestes decreta testemunham a primeira presença de representantes urbanos no seio de uma instituição (Cortes) que viria a ser relacionada, mais tarde, com um órgão colegial de representação que constitui hoje o arquétipo da democracia representativa (Parlamento). É através dessa associação à dimensão “parlamentar” que as Cortes de Leão, realizadas em 1188, são percecionadas como o marco inicial de um “Estado de Direito”, reconhecido pela UNESCO, em 18 de junho de 2013, ao classificar os respetivos decretos como Memória do Mundo, enquanto “manifestação documental mais antiga do sistema parlamentar europeu”.
Bibliografia
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Autor: Mário Farelo