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    Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã [Dicionário Global]

    A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (DDMC) é um texto escrito por Olympe de Gouges em 1791. Tendo por contraponto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC) de 1789, a DDMC constitui-se, essencialmente, como um manifesto pelos direitos das mulheres. O texto foi redigido no período revolucionário (Revolução Francesa), desejando a sua autora que o mesmo fosse decretado pela Assembleia Nacional, à semelhança do que sucedera, em 1789, com a DDHC. Tal ensejo, porém, nunca se viria a concretizar.

    A DDMC integra-se numa publicação de 1791, intitulada Les Droits de la Femme. A la Reine. Foram dados à estampa apenas cinco exemplares. A publicação principia com uma carta dedicada à Rainha Marie-Antoinette, reveladora da afeição da autora à monarquia constitucional e à família real. Segue-se a conhecida interpelação ao Homem (“Homem, és capaz de ser justo?”). Neste breve escrito, está presente, de modo impressivo, um tema que perpassa a obra de Olympe de Gouges: a natureza. É certo que esta é a época dos “direitos naturais”. Contudo, no debate sobre a igualdade entre homens e mulheres, a natureza era um tópico utilizado tanto pelos que defendiam a igualdade, como por aqueles que se lhe opunham. De Gouges não negava a existência de uma diferença sexual, mas considerava-a irrelevante para a capacidade (e direito) de participação na vida pública. Para ela, toda a desigualdade social advém do desprezo da sociedade pelas relações naturais.

    Após este texto introdutório, encontra-se a DDMC propriamente dita, composta por um preâmbulo, 17 artigos e um postâmbulo, a que se segue um post scriptum sobre uma nova “forma do contrato social entre homem e mulher”.

    A DDMC espelha, em certa medida, a DDHC. No entanto, não se trata de uma cópia servil, que se limite a substituir ou a acrescentar a palavra “mulher”. As subtilezas da linguagem utilizada e, particularmente, as marcas de distinção face ao texto da DDHC são reveladoras da originalidade deste texto precursor.

    Desde logo, o primeiro parágrafo do preâmbulo afigura-se quase um decalque do preâmbulo da DDHC, invocando os “direitos naturais, inalienáveis e sagrados das mulheres”. Uma comparação mais detalhada permite, contudo, descortinar diferenças significativas. De Gouges assume-se como a voz das mulheres: “As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam constituir-se em Assembleia Nacional”. Esta frase inaugural da DDMC ilustra a disparidade de significado entre a DDMC e a DDHC. Desde logo, quanto aos seus destinatários: os autores da DDHC dirigem-se aos seus pares, ao passo que a DDMC se dirige àqueles que se pressupõem superiores às mulheres e que, efetivamente, detêm o poder de manter ou alterar o seu estado de opressão. Na DDMC, porque é essencial saber quem fala, de Gouges invoca as mulheres, cujos direitos reivindica, por meio das relações nas quais os homens as reconhecem (“As mães, as filhas, as irmãs”). Ao fazê-lo, contudo, de Gouges também evidencia que os homens que se constituíram em Assembleia Nacional não representavam as mulheres. É este, portanto, o primeiro direito exigido: o direito das mulheres se constituírem em Assembleia Nacional, ou seja, de serem reconhecidas como cidadãs.

    Seguem-se 17 artigos, o mesmo número que se encontra na DDHC. O primeiro artigo afirma o princípio da igualdade ao proclamar que “a mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem”. De Gouges evidencia a natureza relacional da desigualdade da mulher, ou seja, a desigualdade da mulher radica na sua subordinação: é uma desigualdade na sua relação com o homem. É, portanto, na comparação com o homem, face a este, que se constrói a igualdade da mulher. Talvez por isso, no art. II, de Gouges confira ao direito de resistência primazia entre os demais direitos naturais e imprescritíveis “da mulher e do homem”, precedendo-o da palavra “sobretudo”, em comparação com o texto da DDHC.

    Outro tópico de relevo encontra-se na definição de nação que de Gouges apresenta no art. III: “nada mais do que a reunião da mulher e do homem”. A nação é, na DDMC, uma entidade eminentemente política, detentora da “soberania”. Ao caracterizá-la como uma união sexuada, ou seja, ao evidenciar o sexo como constitutivo dos membros da nação, de Gouges toca no cerne de uma questão que, apenas dois séculos mais tarde, dominaria o debate público: a paridade. De modo paralelo, no art. XV, a “sociedade” enunciada no artigo simétrico da DDHC é substituída por “a massa das mulheres, unida pela contribuição, à massa dos homens”. A definição de nação que emerge do art. III é, também, essencial para a interpretação do art. XVI, no qual de Gouges afirma a nulidade da Constituição “se a maioria dos indivíduos que compõem a Nação não cooperou na sua redação”.

    Também quanto à compreensão da liberdade, de Gouges apresenta uma visão precursora. Com efeito, o art. IV exibe uma redação bastante distinta da que se encontra no lugar paralelo da DDHC. Enquanto aqui se procura uma definição de liberdade de cunho liberal, na DDMC a autora alia a liberdade à justiça. Situando-se entre os oprimidos, de Gouges demonstra a consciência de uma intrínseca relação entre estes dois valores. Transcendendo o conceito negativo de liberdade que é afirmado na DDHC (“A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo […]”), de Gouges afirma a liberdade e a justiça como exigências de correção da injustiça (“A liberdade e a justiça consistem em devolver tudo o que pertence a outrem […]”). Essa injustiça, praticada contra a mulher, é nomeada por de Gouges e consiste na “tirania perpétua que o homem lhe opõe”.

    Igualmente relevante, pela sua originalidade, é o art. VII da DDMC. Com efeito, a sua redação diverge profundamente da DDHC, cujo art. VII inicia a enunciação dos direitos dos cidadãos em matéria criminal. De Gouges afirma contundentemente a igualdade de tratamento da mulher: “Nenhuma mulher é exceção […]”. A necessidade desta afirmação advém de uma prática judicial reiterada de favorecimento em relação às mulheres em matéria penal, que resultava na sua menor condenação. Na verdade, as razões pelas quais se negava às mulheres o acesso aos direitos civis e políticos – como a sua natureza emotiva e influenciável ou o seu fraco entendimento – eram as mesmas que, frequentemente, serviam como atenuantes quando lhes era imputado um crime (com exceção, evidentemente, dos crimes contra a ordem familiar, como o adultério ou o infanticídio). Por isso, ao afirmar que “nenhuma mulher é exceção”, de Gouges rejeita a atribuição à mulher de quaisquer características que permitam a sua discriminação.

    O art. X acolhe a mais célebre afirmação de de Gouges: “[…] a mulher tem o direito de subir ao cadafalso; deve igualmente ter o direito de subir à Tribuna […]”. Considerando que a sua autora foi guilhotinada pelos jacobinos, em 1793, precisamente por ousar fazer ouvir a sua voz na esfera pública, esta afirmação impressiona, desde logo, pelo seu cariz profético. Neste artigo, como no subsequente, de Gouges enuncia as injustiças sofridas pelas mulheres. Sujeitas à lei, nenhuma palavra lhes é permitido dizer sobre essa lei que também as governa.

    Outra das mais originais afirmações de de Gouges encontra-se no art. XI, que reformula o direito à liberdade de expressão à luz de uma experiência exclusivamente feminina: a maternidade. Para de Gouges, a concretização do direito à liberdade de expressão para a mulher “[…] assegura a legitimidade dos pais para com os filhos. Toda a cidadã pode, portanto, dizer livremente: eu sou a mãe de uma criança, que lhe pertence, sem que um preconceito bárbaro a obrigue a dissimular a verdade […]”. Ao conteúdo deste artigo não será alheia a experiência pessoal de de Gouges, cuja mãe terá mantido uma relação extraconjugal com um homem nobre, seu provável pai. Com efeito, a luta pelo direito de os filhos serem reconhecidos pelos seus pais e poderem usar o nome destes foi uma das grandes causas defendidas por de Gouges, a par com a luta pelos direitos das mulheres e pelo fim da escravatura.

    No postâmbulo que segue, de Gouges destaca o papel das mulheres na Revolução Francesa e urge-as a assumir a sua condição política e a combater pelo reconhecimento da sua igualdade, à semelhança do que ela própria faz. Para de Gouges, a igualdade política é também dependente da igualdade na relação conjugal com o homem (“[…] qualquer caminho para a fortuna está fechado para a mulher que o homem adquire tal como adquire o escravo das costas africanas”) e, por isso, publica ainda a “Forma do contrato social entre homem e mulher”, ou seja, o que considera o ideal do contrato de casamento.

    Com efeito, na sequência da Revolução Francesa, as mulheres conquistaram alguns direitos civis (como o direito ao divórcio), mas os direitos políticos ficaram por realizar, para grande desilusão de todas aquelas que apoiaram e viveram a Revolução. A própria Constituição de 1791, ao estabelecer os requisitos para se ser considerado um cidadão “ativo” e ao enunciar os seus direitos, estabelecia duas categorias de cidadãos (aos “cidadãos ativos” opor-se-iam os “cidadãos passivos”), e as mulheres pertenciam à segunda categoria.

    A DDMC não teve o efeito pretendido pela sua autora, tendo sido ignorada pelo seu tempo. De Gouges foi condenada à morte apenas dois anos após a sua publicação. Passados os conturbados anos da Revolução Francesa, as mulheres (especialmente, as casadas) viram a sua situação e os seus direitos civis sofrerem um forte retrocesso. A memória de Olympe de Gouges permaneceu viva apenas entre alguns movimentos de mulheres que lutavam pela igualdade. De um modo geral, a história encarregou-se de apagar o contributo de de Gouges, incluindo a sua DDMC, como aconteceu com os escritos de tantas outras mulheres, que apenas a partir dos anos 80 do século XX têm vindo a ser “redescobertos” pela academia e por um público mais vasto. De facto, as primeiras edições completas da DDMC surgiram apenas a partir do final da década de 70 do século XX, sendo a primeira publicação francesa deste género editada por Benoîte Groult, em 1986. A pretexto do bicentenário da Revolução Francesa, a vasta obra de Olympe de Gouges começou, finalmente, a ser publicada e debatida. Em Portugal, onde o texto é, em geral, desconhecido fora dos meios académicos especializados, existe uma edição da Nova Delphi, de 2010.

    A DDMC integra um momento essencial da luta pelos direitos das mulheres. Trata-se de um texto que, de modo abrangente, chama a atenção para aspetos concretos da situação da mulher e do modo como esta se constituía socialmente de modo diferente do homem. Ao fazê-lo, coloca em evidência a falsidade do pressuposto universalismo dos “direitos do homem”, ou seja, ao estender os “direitos do homem” à mulher, não é apenas o âmbito subjetivo dos direitos que se alarga, mas também o seu conteúdo. Assim, independentemente das intenções da sua autora, é possível afirmar que a DDMC de Olympe de Gouges se constitui, objetivamente, como uma crítica à ausência de uma intencionalidade verdadeiramente universal da DDHC e como uma interpelação, nos dias de hoje, sobre a concretização dessa universalidade através dos direitos humanos.

    Bibliografia

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    CASTAN, N. (2002). “Criminelle”. In G. Duby et al. (coords.). Histoire des Femmes en Occident (539-553). (vol. III). S.l.: Perrin.

    ESCALLIER, C. (2010). “Prefácio”. In O. de Gouges. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (7-23). Funchal: Nova Delphi.

    GREEN, K. (2014). A History of Women’s Political Thought in Europe, 1700-1800. Cambridge: Cambridge University Press.

    REUTER, M (2019). “Equality and Difference in Olympe de Gouges’ Les Droits de la Femme. A la Reine”. Australasian Philosophical Review, 3 (4), 403-412.

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    SCOTT, J. W. (1996). Only Paradoxes to Offer: French Feminists and the Rights of Man. Cambridge: Harvard University Press.

    Autora: Miriam Rocha

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