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    Democracia

    O conceito de democracia é complexo, multidimensional e pouco consensual. A liberalização dos regimes políticos e as recentes vagas de democratização foram acompanhadas pela constante (re)definição e refinamento conceptual do conceito de democracia. A teoria da democracia é profusa e tem gerado várias propostas conceptuais sobre “o que é a democracia… e não é” (SCHMITTER & KARL, 1991) ou “o que deveria ser” (COLLIER & LEVINTSKY, 1997).

     

    Aproximação conceptual

    Um dos primeiros contributos sistematizados para a compreensão do conceito de democracia foi enunciado por Joseph Schumpeter, na sua obra seminal Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942), na qual rejeita as definições prescritivas clássicas de democracia de que os titulares de cargos públicos seriam eleitos pelo povo para a realização do “bem comum”. O enunciado clássico traduz a existência de um “bem comum” que, através da vontade popular, concretizaria a tomada de decisão política. A abordagem schumpeteriana afirma que “o método democrático é um arranjo institucional para chegar a decisões políticas, através do qual os indivíduos adquirem o poder de decidir, através da luta competitiva pelo voto popular” (SCHUMPETER, 2003, 269). Esta formulação elimina definitivamente as assunções relacionadas com o “bem comum”, sublinhando o mecanismo institucional da competição política através do qual desvincula a legitimidade democrática da “vontade do povo”. Assim, a democracia é um método reconhecido de “competição pelo voto livre”, em que os cidadãos têm a oportunidade de produzir governos, isto é, aceitar ou rejeitar quem os vai governar, através do voto (SCHUMPETER, 2003).

    Robert Dahl oferece-nos neste domínio uma proposta bem estabelecida na literatura através das obras Polyarchy: Participation and Opposition (1971) e Democracy and Its Critics (1989). A proposta de Dahl distingue regimes democráticos da poliarquia, como um conjunto de arranjos institucionais que permitem oposição política e estabelecem o direito à participação política. A poliarquia é um “regime relativamente democratizado (mas incompleto) […] fortemente inclusivo e amplamente aberto à participação política” (DAHL, 1971, 31). Os atributos da competição e participação políticas são os elementos cardeais da poliarquia e concretizam, grosso modo, a legitimidade dos sistemas políticos e da ação dos governantes bem como a realização do indivíduo na comunidade política (DAHL, 1989). Nestes termos, Dahl formulou um conjunto de garantias institucionais que enformam as poliarquias: 1) a existência de eleitos constitucionalmente vinculados que controlam as decisões do governo sobre as políticas públicas, 2) a prática regular de eleições livres e justas, como um mecanismo necessário para comparar e escolher as principais figuras do governo, conduzidas de um modo em que o uso da coerção é relativamente incomum, 3) este sufrágio deve ser universal e inclusivo: praticamente todos os adultos têm o direito a votar (capacidade eleitoral ativa) e 4) a candidatar-se a cargos eletivos (capacidade eleitoral passiva), 5) a existência de liberdades e garantias que permitem aos cidadãos expressar-se sem medo de represálias ou punições sobre as suas ideias e o posicionamento político, incluindo as suas críticas em relação aos funcionários públicos, ao governo, ao regime, à ordem socioeconómica e à ideologia dominante, 6) os cidadãos têm o direito de aceder a fontes alternativas de informação, que devem ser reguladas e protegidas por lei, e 7) o direito a formar associações relativamente autónomas incluindo partidos políticos e grupos de interesse independentes para atingir os seus direitos (DAHL, 1989, 221).

    O referencial teórico partilhado por Schumpeter e Dahl encontra-se ancorado no atributo da competição política, enfatizando a ideia de que a eleição para cargos públicos é feita através de eleições competitivas e de uma participação inclusiva dos cidadãos, na presença de determinadas liberdades cívicas e políticas. A poliarquia de Dahl oferece uma conceptualização procedimental de democracia. Contudo, a democracia como sistema de governação não se caracteriza apenas pelo conjunto de regras e procedimentos básicos a estabelecer quem tem direito a tomar decisões coletivas. A democracia é também um conjunto de valores fundamentais historicamente construído.

    Neste sentido, O’Donnell (1994) sugere que outros atributos sustentam o edifício conceptual de democracia, designadamente os freios e contrapesos (checks and balances), na medida em que é necessária a existência de um sistema horizontal de responsabilização recíproca dos detentores de cargos públicos, destinado a limitar os poderes executivos e a proteger o constitucionalismo, o Estado de direito e o processo deliberativo (O’DONNELL, 1994, 60-62).

    Na contemporaneidade, Adam Przeworski valida o racional minimalista do conceito de democracia. Defende que a democracia é um “sistema no qual os partidos políticos perdem eleições, e onde são produzidas oportunidades regulares para a substituição dos governantes” (PRZEWORSKI, 1991, 10). Em termos operacionais, a democracia deverá fornecer a seleção da estrutura legislativa e executiva através de eleições competitivas, a existência de uma oposição política com oportunidade de governar e concretizar a alternância política, após um intervalo de tempo razoável (dois mandatos) (PRZEWORSKI, 2010, 169).

    Várias críticas têm sido apontadas aos elementos minimalistas definidores de democracia, nomeadamente, o foco excessivo no atributo eleitoral – “falácia do eleitoralismo” (DIAMOND, 1999) –, na medida em que a dimensão da competição se sobreponha a outras dimensões (e.g. liberdades civis ou inclusão) que deve ser considerado no “bloco de construção” das propriedades da democracia.

    Recentemente, a investigação sobre a qualidade da democracia tem merecido atenção dos cientistas políticos (como SCHMITTER & KARL, 1991). Essa agenda de investigação trouxe alguns contributos importantes para esclarecer a estrutura conceptual da democracia. Por exemplo, Schmitter e Karl discutiram sobre “O que a democracia é… e o que não é”. Os autores destacaram que a democracia não é apenas um conjunto único e igualitário de instituições, é um “sistema de governação em que os governantes são responsabilizados por suas ações na esfera pública pelos cidadãos, agindo indiretamente por meio da competição e cooperação de seus representantes eleitos” (SCHMITTER & KARL, 1991, 76). Na esteira de Schmitter e Karl, O’Donnell sublinha o atributo da participação política, argumentando que num “regime democrático, o acesso aos principais cargos governamentais é decidido através de eleições competitivas, livres, igualitárias, decisivas e inclusivas, e quem vota tem o direito de ser eleito […], a existência de pelo menos dois partidos políticos competitivos têm a possibilidade razoável de apresentar suas opiniões a todos os eleitores” (O’DONNELL, 2004).

    Essas definições de democracia discutidas aqui reconhecem, em particular, o atributo eleitoral e da competição política e, portanto, como o motor institucional para a seleção de governantes por meio do voto popular competitivo.

     

    Tipos de democracia

    Não existe um arranjo institucional único em termos de organização dos sistemas políticos (polity) e da comunidade política. Os arranjos institucionais democráticos têm variado ao longo dos tempos e atravessado vários países. São o resultado de diferentes percursos históricos, culturas, tradições, economias e características socioeconómicas. Todos esses fatores contribuíram para o alicerçar das instituições democráticas, a sua organização e funcionamento.

     

    Democracia direta

    “Governo do povo, pelo povo e para o povo” (Abraham Lincoln). Este é o truísmo geral presente na defesa da democracia direta. Advogava a intervenção direta dos cidadãos na vida pública e política, atribuindo ao indivíduo a virtude cívica de dedicação à comunidade, em que os cidadãos assumiam a preocupação pelos problemas coletivos. Remete para o postulado de que a realização do ideal democrático exige também o ideal de realização plena dos cidadãos (DAHL, 1989).

    Um exemplo clássico da democracia direta encontra-se associado à democracia grega, em que a assembleia representativa de todos os cidadãos (Ecclesia) concretizava o princípio máximo da soberania popular, no envolvimento direto dos cidadãos nos assuntos da cidade. A democracia grega é entendida como uma democracia não intermediada, em que o Estado, a sociedade e o governo direto dos cidadãos se apresentam como uma entidade homogénea. Todavia, este modelo clássico de organização da comunidade política continha as suas dificuldades e paradoxos, e deixou claro, à altura, a impraticabilidade de realização do governo direto e a participação de todos os cidadãos. A aplicabilidade desta fórmula estaria condicionada pelo número de cidadãos elegíveis ao envolvimento da decisão política (apenas homens não escravos; as mulheres e os estrangeiros estariam excluídos), e a aplicação do princípio da soberania popular só seria possível quando confinado a pequenos Estados.

    A impraticabilidade sustentada do “governo pelo povo” nas sociedades complexas de larga escala foi o principal ímpeto aos fundadores do governo representativo, garantindo que o governo da vida pública e política seria assegurado por um corpo selecionado de governantes. Entre os fundadores da democracia americana, James Madison entendia que o governo direto constituía uma ameaça à liberdade individual, enquanto o constitucionalismo (república democrática) funcionaria como controlo aos perigos potenciais das massas e, nesse sentido, os cidadãos confiavam aos representantes o exercício livre do poder. Prevalecia a defesa do interesse coletivo contra a tirania da maioria favorecida pela democracia direta. No entanto, existem mecanismos disseminados dentro das democracias representativas, de democracia direta ou participativa dos cidadãos na decisão política, nomeadamente os referendos, a iniciativa legislativa ou assembleias populares institucionalmente reconhecidas, e.g. nos cantões suíços (Landgemeinde).

     

    Democracia representativa

    Corresponde a um sistema no qual a comunidade política governa indiretamente através de representantes eleitos. A lógica da construção do governo representativo encontra-se ancorada na institucionalização do processo de tomada de decisão em sociedades complexas, através da criação de instituições políticas capazes de concretizar essas decisões, garantindo a responsabilidade política e de accountability perante as decisões políticas.

    Bernard Manin (1997), na obra The Principles of Representative Government, advoga que a democracia representativa corresponde a uma forma de governo na qual as decisões são tomadas por representantes eleitos e são implementadas por funcionários a quem esses representantes delegam algumas tarefas de governo. O autor destaca os principais elementos que enformam o governo representativo, a saber: a) os governantes são selecionados periodicamente pela via eleitoral, b) o processo de decisão dos que governam mantém um certo grau de independência face aos desejos do eleitorado, embora os cidadãos sejam livres de se expressar e emitir exigências, c) os governados podem exprimir as suas opiniões e aspirações políticas sem que estas sejam sujeitas ao controlo dos que governam, e d) as decisões políticas submetem-se à aprovação, antecedida de debate.

    Assim, a ideia do governo representativo corporiza o poder dos cidadãos em escolher aqueles que governam, através de eleições periódicas, mantendo os eleitos responsáveis pelas suas decisões no quadro de um sistema constitucional. É através das instituições políticas que é concretizada a intermediação entre governantes e governados, o que, numa aceção moderna, expressa a vontade dos cidadãos.

     

    Modelos de democracias: Modelo maioritário versus consensual

    Entre as democracias representativas, existem diferentes escolhas em termos de desenho institucional, i.e., como é que as instituições políticas são desenhadas e organizadas, como funcionam e quais os objetivos que pretendem cumprir. As democracias exibem uma variedade de instituições políticas, como os parlamentos ou os tribunais, sistemas partidários e grupos de interesse.

    Na obra seminal Patterns of Democracy: Government Forms and Performance in Thirty-Six Countries, Arendt Lijphart (1999) distingue dois modelos de democracia: o modelo maioritário (Westminster) e o consensual. Os arranjos institucionais, as práticas políticas e os padrões de interação entre atores políticos são os eixos diferenciadores destes dois modelos.

    O modelo maioritário concretiza na dimensão executivo-partidos políticos as seguintes características: a) a concentração do poder executivo num só partido político, predominando o executivo em relação ao legislativo (modelo de Westminster), b) sistema bipartidário, em que existem dois partidos políticos no sistema político e que alternam no poder, c) sistema eleitoral maioritário, em que predomina a estrutura de votação first-past-the post, no qual o partido político que vence ganha tudo, e d) pluralidade de grupos de interesse. Na dimensão federal-unitária, o modelo maioritário ilustra a) uma organização política unitária e centralizada; b) a concentração do poder legislativo (unicameral), c) flexibilidade constitucional, as reformas constitucionais são realizadas no parlamento através de maiorias simples, d) ausência de sistema de freios e contrapesos (checks and balances) na legislação produzido pelo parlamento e e) os bancos centrais estão sob alçada do poder executivo.

    Em contraste, o modelo consensual preconiza na dimensão executivo-partidos a) a possibilidade da existência de governos compostos por diferentes partidos políticos (coligação), b) um equilíbrio institucional e de poderes entre o executivo e o legislativo, c) um sistema multipartidário privilegiando a heterogeneidade social, d) um sistema eleitoral de representação proporcional em que todos os partidos políticos em competição têm a possibilidade de obter representação, em resultado da conversão proporcional da percentagem de votos obtidos em mandatos e e) a existência de um sistema corporativo de interesses que permite o compromisso e a concertação. No eixo federal-unitário, o modelo consensual ilustra a) a divisão do poder político em várias entidades territoriais (federal e decentralizado), institucionalizando a diversidade cultural, etnolinguística ou histórica, b) o bicameralismo forte, c) as alterações à constituição, que requerem maiorias reforçadas, d) a garantia da constitucionalidade das leis pelo Tribunal Constitucional e e) a existência de bancos centrais independentes.

    Bibliografia

    BUDGE, I. (1996). The New Challenge of Direct Democracy. Cambridge: Polity Press.

    COLLIER, D. & LEVITSKY, S. (1997). “Democracy with Adjectives: Conceptual Innovation in Comparative Research”. World Politics, 49(3), 430-451.

    DAHL, R. (1971). Polyarchy: Participation and Opposition. New Haven, CT: Yale University Press.

    DAHL, R. (1989). Democracy and Its Critics. New Haven: Yale University Press.

    DIAMOND, L. (1999). Developing Democracy. Toward Consolidation. Baltimore/London: Johns Hopkins University Press.

    LIJPHART, A. (1999). Patterns of Democracy: Government Forms and Performance in Thirty-Six Countries. New Haven, CT: Yale University Press.

    MANIN, B. (1997). The Principles of Representative Government. Cambridge: Cambridge University Press.

    O’DONNELL, G. (1994). “Delegative Democracy”. Journal of Democracy, 5, 55-69.

    O’DONNELL, G. (2004). “The Quality of Democracy: Why the Rule of Law Matters”. Journal of Democracy, 15, 32-46.

    PRZEWORSKI, A. (1991). Democracy and the Market: Political and Economic Reforms in Eastern Europe and Latin America. Cambridge: Cambridge University Press.

    PRZEWORSKI, A. (2010). Democracy and the Limits of Self-Government. New York: Cambridge University Press.

    SCHMITTER, P. & KARL, T. (1991). “What Democracy Is … and Is Not”. Journal of Democracy, 2, 75-88.

    SCHUMPETER, J. (2003). Capitalism, Socialism and Democracy. London: Routledge.

     

    Autora: Teresa Ruel

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