Diálogo Intercultural [Dicionário Global]
Diálogo Intercultural [Dicionário Global]
[Créditos fotográficos: Susana Alves-Jesus]
O mundo é um lugar estranho. Num tempo de acelerada compressão espácio-temporal, o contacto entre diferentes culturas tornou-se cada vez mais comum. Nas áreas de contacto, sobretudo quando o desconhecimento e a ignorância relativamente ao Outro são a regra, emergem tensões, incompreensões mútuas e, não raras vezes, conflitos e violência, simbólica e/ou material. Assim, mais do que um conceito, o diálogo intercultural constitui, por um lado, um fecundo campo de reflexão epistemológica e ética, na medida em que nos obriga a repensar a alteridade, e, por outro, uma ideia que, em várias latitudes, se tem institucionalizado, inspirando a elaboração de políticas para a sua promoção e para a defesa dos direitos humanos. Ao abordar estas duas facetas do diálogo intercultural, não isentas de controvérsia, proporcionamos ao leitor uma chave de entrada de uma das temáticas mais fascinantes da atualidade social e política. Como veremos, a teoria e a prática do diálogo intercultural influenciam-se mutuamente, e qualquer tentativa de aproximação a este fenómeno requer que sejamos capazes de reconhecer os desafios daqui resultantes.
Aproximações a um problema complexo
Na esteira de Tamayo (2019), pode entender-se o diálogo intercultural como uma alternativa ao conflito entre culturas ou, recorrendo à expressão celebrizada por Samuel Huntington, uma alternativa ao “choque das civilizações”. Neste sentido, “o diálogo constitui uma alternativa ao fundamentalismo e ao integrismo cultural, religioso e étnico. É um antídoto contra a ideologia do ‘choque’ ou o confronto entre culturas” (TAMAYO, 2019, 132). Trata-se, pois, de estabelecer pontes e ligações, de construir empatia e solidariedade, em suma, de encontrar um chão comum a partir do qual, respeitando e valorizando as diferenças, se possa aprofundar convergências e relações num mundo que, mesmo sujeito a um inegável impulso homogeneizador, encontra na diversidade um dos seus principais motores de desenvolvimento e transformação.
A noção de que o diálogo intercultural emerge como alternativa histórica ao processo, violento e opressivo, de uniformização monocultural inerente à globalização surge também com Fornet-Betancourt (2000). Para este autor, o diálogo intercultural é um projeto de reestruturação cooperativa e solidária da universalidade do mundo neoliberal, procurando preservar a pluralidade epistemológica, respeitando e valorizando a diversidade cultural. A tónica é, pois, colocada na inter-relação, na inteligibilidade e na reciprocidade entre diferentes culturas, ultrapassando hierarquias e assimetrias de poder. Assumindo que o diálogo intercultural é condição sine qua non para a reconstrução intercultural dos direitos humanos, Santos (2006) defende a existência de cinco condições fundamentais para que este processo possa desenvolver-se.
Em primeiro lugar, a consciência da incompletude cultural, ou seja, de que nenhuma cultura pode reivindicar para si um estatuto de universalidade, na medida em que é daqui que resulta a autorreflexividade que antecede e impulsiona o diálogo. Em segundo lugar, o reconhecimento de que as culturas não são monolíticas e, pelo contrário, encerram em si uma enorme variabilidade. O diálogo intercultural sai tanto mais reforçado quanto maior for o reconhecimento da multiplicidade de Outros que a comunidade cultural de referência possibilita. Por outras palavras, quanto maior a porosidade e a empatia de uma dada cultura, mais consequente a praxis do diálogo intercultural. Em terceiro lugar, a necessidade de sincronizar o tempo do diálogo intercultural, ou seja, de perceber que nenhuma cultura pode unilateralmente estabelecer o momento em que ele ocorre. A mesma rejeição da unilateralidade, no que diz respeito aos parceiros e/ou interlocutores do diálogo intercultural e ao tipo de questões, temas e debates que lhe dão forma, constitui a quarta condição. São múltiplos os fatores de convergência entre comunidades culturais que justificam e legitimam o diálogo, e quaisquer imposições unilaterais constituiriam uma intolerável manifestação de imperialismo cultural. Por fim, em quinto lugar, os princípios da igualdade e da diferença devem caminhar lado a lado para que um diálogo intercultural verdadeiramente emancipatório possa desenvolver-se. Como afirma Santos: “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2006, 428).
Não se pense, porém, que existe consenso em torno das virtudes do diálogo intercultural ou, mais especificamente, da interculturalidade. Longe disso. A partir de um artigo de Meer & Modood (2012), publicado nas páginas do Journal of Intercultural Studies há uma década, gerou-se um debate em torno das diferenças existentes entre multiculturalismo e interculturalismo. O argumento inicial era o de que este, enquanto discurso político, partilhava com o multiculturalismo o foco no encorajamento da comunicação entre diferentes culturas e o reconhecimento do carácter dinâmico das identidades, mas era menos persuasivo no plano da agência política. Como tal, rematavam Meer & Modood: “atualmente, ele não pode, pelo menos intelectualmente, eclipsar o multiculturalismo” (MEER & MODOOD, 2012, 192).
A reação de Wieviorka (2012), por exemplo, colocou a tónica na necessidade de aperfeiçoamento conceptual do multiculturalismo, em vez da sua substituição, pura e simples, pelo conceito extremamente vago de interculturalismo, ao mesmo tempo que criticava o etnocentrismo anglo-saxónico adotado por aqueles autores. Levey (2012), por seu turno, admitindo uma dose significativa de ambiguidade semântica entre os dois conceitos, que, mais do que iluminar, obscurece quaisquer considerações analíticas, chama a atenção para a influência crescente da agenda intercultural junto do Conselho da Europa e de outras instituições europeias.
Como veremos mais adiante, a tendência de institucionalização da interculturalidade, que então despontava, aprofundou-se ao longo da última década, em simultâneo com o desenvolvimento de políticas de gestão da diversidade e promoção do diálogo intercultural.
Mais recentemente, Araújo (2018), analisando criticamente aquilo que designa como indústria da interculturalidade – onde o diálogo intercultural assume um lugar central –, discute algumas narrativas que limitam o alcance da agenda intercultural. Apesar de ter como referência o contexto português, parece possível um certo grau de generalização, na medida em que se trata de tendências observáveis noutros países com passados coloniais.
Assim, por um lado, a afirmação da interculturalidade parece assentar na despolitização do colonialismo e do racismo, tratando-se de um processo de ocultação, higienização e neutralização de algumas das expressões mais brutais de opressão e dominação perpetradas por culturas que, em algum momento do seu passado, desempenharam um papel relevante na afirmação do sistema colonial e esclavagista. Por outro, a interculturalidade encontra-se associada à falaciosa noção primordialista (nativista?) de que determinados países partem de uma homogeneidade étnica fundacional e, com o avanço da globalização, se foram tornando mais heterogéneos e multiculturais. Para esta autora, trata-se de uma leitura presentista e a-histórica que invisibiliza as longas trajetórias de articulação entre colonizadores e colonizados, dissociando as migrações da história do (pós-)colonialismo. Por outras palavras, o discurso intercultural carece de densidade histórica e, por isso, apesar de sedutor e cada vez mais influente em termos políticos, não deixa de ser superficial e simplista.
À luz do que foi dito, percebe-se que o diálogo intercultural constitui uma problemática multifacetada, que encerra em si inúmeros alçapões conceptuais, éticos e políticos (ver ELIAS & MANSOURI, 2020). Não obstante, desde que devidamente alicerçado em práticas de tradução intercultural que possibilitem a existência de um diálogo fecundo e inteligível entre diferentes comunidades culturais, parece preservar algum potencial progressista e emancipatório no campo dos direitos humanos. Como afirmam Barretto e Bragato: “a interculturalidade questiona a superioridade de qualquer modelo cultural e propõe a substituição de uma perspectiva vertical por outra que seja equitativa e dialógica, e isso favorece o fortalecimento das demandas de direitos daqueles que historicamente têm sido considerados menos racionais, menos humanos e menos credenciados a titularizar qualquer direito” (BARRETTO & BRAGATO, 2017, 28). Porventura, terá sido também este entendimento que legitimou a paulatina institucionalização do diálogo intercultural nos contextos europeu e nacional.
Diálogo intercultural na Europa e em Portugal
Tendo como pano de fundo, por um lado, a existência de vários desafios e crises com implicações diretas na reconfiguração europeia – crise financeira, crise dos refugiados, Brexit, ascensão da extrema-direita –, e, por outro, o carácter “super-diverso” da Europa, Lähdesmäki et al. (2020) associam a emergência do diálogo intercultural ao reconhecimento, pelas instituições europeias, de que as políticas assentes no multiculturalismo haviam fracassado.
Consequentemente, ao longo da última década, o Conselho da Europa e a União Europeia passaram a fazer do diálogo intercultural um dos principais eixos vertebradores das suas políticas de gestão da diversidade, coesão e inclusão sociais.
A publicação do Livro Branco sobre o Diálogo Intercultural em 2008 – Ano Europeu do Diálogo Intercultural – seria um marco fundamental da mudança de paradigma ou viragem intercultural ocorrida nas instituições europeias (ZAPATA-BARRERO, 2017). Apesar de a consciência dos seus limites ser já evidente – “o diálogo intercultural não é uma panaceia nem a resposta para todas as questões” (CONSELHO DA EUROPA, 2008, 22) –, afirma-se que a promoção do diálogo intercultural “depende da governação democrática da diversidade cultural; requer participação democrática e cidadania; exige a aquisição de competências interculturais; necessita de espaços de diálogo abertos; [e] deve ser gerida à escala internacional” (CONSELHO DA EUROPA, 2008, 31). Trata-se de pré-condições e/ou exigências que, no seu conjunto, aprofundam e expandem o horizonte de possibilidades dos direitos humanos no espaço europeu. Afinal de contas, na prática, o diálogo intercultural tem assentado num leque diversificado de iniciativas, projetos e programas.
Promovido pelo Conselho da Europa, e encontrando a sua inspiração teórico-conceptual na obra The Intercultural City (WOOD & LANDRY, 2008), o Programa das Cidades Interculturais é uma das mais duradouras experiências aplicadas de promoção do diálogo intercultural. Envolvendo mais de uma centena de cidades de todo o mundo, procura apoiar as autarquias locais e/ou regionais na implementação e monitorização de políticas de gestão da diversidade. Encontra-se também alicerçado num conjunto de nove Redes Nacionais que, pela sua maior imbricação institucional e possibilidade de desenvolvimento de trabalho cooperativo por parte de cidades que partilham um quadro semelhante de referências culturais, ajudam a dar consistência ao trabalho que é desenvolvido. Espelhando a crescente influência exercida pela agenda intercultural no domínio das políticas públicas, a rede portuguesa integra o Programa desde a sua origem.
Apesar destes desenvolvimentos, a concretização do diálogo intercultural tem sido criticada por permanecer refém de um certo eurocentrismo e por preservar algumas hierarquias/assimetrias de poder existentes entre as diferentes comunidades envolvidas. Muitas vezes, até, sublinham Lähdesmäki et al. (2020), o diálogo intercultural, tal qual ele é desenvolvido pelas instituições europeias, olha para a diversidade cultural enquanto problema e/ou potencial fonte de conflito, entrando em contradição com o espírito original da iniciativa. A ambiguidade semântica e a falta de rigor conceptual também têm sido apontados como fragilidades importantes que as instituições europeias não têm sido capazes de ultrapassar. Olhemos, agora, para Portugal.
Depois de ser considerado, ao longo de quase todo o século xx, um país de emigração, a viragem do século levou a que passasse a ser visto como país de imigração, representação factualmente incorreta de um ponto de vista histórico, mas que, ainda assim, foi naturalizada. Ao mesmo tempo, foi-se criando um tecido institucional que dava sustentação às transformações da composição sociodemográfica do país. Em 1996, cria-se a figura do Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, seguindo-se, em 2002, a instituição do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME), renomeado Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), em 2007, e, desde 2014, Alto Comissariado para as Migrações (ACM).
Muitas das políticas de promoção do diálogo intercultural desenvolvidas em Portugal, e muito do conhecimento produzido em torno desta matéria, assentam na Rede de Centros Locais de Apoio à Integração de Imigrantes (CLAII) criada pelo ACIME em 2003. A aposta passou, desde a primeira hora, pela criação de condições para que este último, em conjunto com as autarquias e a sociedade civil, trabalhasse no desenvolvimento de projetos e iniciativas partilhadas (cf. MALHEIROS, 2011).
Neste contexto, o papel desempenhado pelas escolas e pelo sistema educativo tem sido particularmente relevante. Enquanto lugar de encontro com o Outro, desconstrução de preconceitos e combate à xenofobia e ao racismo, a Escola parece ser vista como uma instituição fundamental. É nela, por exemplo, que se desenvolve muito do trabalho de mediação que, no contexto português, é indissociável da promoção do diálogo intercultural. A este respeito, Marques et al. assinalam que “o mediador intercultural assume um papel importante, aumentando e potenciando o contacto entre as diferentes culturas, gerindo tensões, choques culturais e apostando na prevenção de conflitos, base fundamental de uma cultura de paz” (MARQUES et al., 2020, 28-29). Em Portugal, tradução e mediação têm sido dois elementos essenciais para o avanço do diálogo intercultural.
Esta brevíssima incursão por aquilo que podemos, com alguma propriedade, designar de diálogo intercultural aplicado, tendo como referência as escalas europeia e portuguesa, revela que, à semelhança do que sucede no plano das ideias, dos conceitos e da reflexão teórica, e seria estranho se assim não fosse, a materialização do diálogo intercultural está longe de ser um processo simples e linear. No entanto, e apesar disso, foi assumindo um papel de cada vez maior destaque no discurso e nas práticas políticas.
O discurso xenófobo e racista, que se alimenta do ódio, do preconceito e da ignorância, cavalgando o ressentimento e o descontentamento popular, fez sempre do Outro um bode expiatório privilegiado. O seu atual recrudescimento deve inquietar todos aqueles que se preocupam com os direitos humanos, com a igualdade, a liberdade e a paz. A recente evolução da situação política em Portugal, acompanhando algumas das principais e mais preocupantes tendências atuais no continente europeu, pode levar a que a promoção do diálogo intercultural ganhe um novo impulso.
Bibliografia
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BARRETTO, V. & BRAGATO, F. (2017). “Aporias da fundamentação convencional dos direitos humanos e os caminhos da interculturalidade”. Joaçaba, 18 (1), 15-30.
CONSELHO DA EUROPA (2008). Livro Branco sobre Diálogo Intercultural: “Viver Juntos em Igual Dignidade”. Estrasburgo: Conselho da Europa.
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WOOD, P. & LANDRY, C. (2008). The Intercultural City: Planning for Diversity Advantage. London: Earthscan.
ZAPATA-BARRERO, R. (2017). “The Intercultural Turn in Europe: Process of Policy Paradigm Change and Formation”. In F. Mansouri (ed.). Interculturalism at the Crossroads: Comparative Perspectives on Concepts, Policies and Practices (171-194). Paris: UNESCO.
Autor: André Carmo