Direitos Civis [Dicionário Global]
Direitos Civis [Dicionário Global]
“Todo o homem: ninguém pode nem deve ser excluído. Não há razões, válidas, nem de idade, nem de sexo, nem de fortuna, nem de condição intrínseca bastante para negarem ao homem esse direito fundamental. Porque ele lhe advém do próprio facto de ser homem, de ele ser homem, de ele fazer parte de um mundo histórico em renovação contínua, de ele ser e dever ser corresponsável pela ‘aventura comum’ do género humano” (ANTUNES, 2008, 111).
O ideal de justiça social é a máxima igualdade entre todos os homens e mulheres, a viver num Estado democrático de direito, no qual as leis representativas do contrato social sejam efetivamente observadas por todos. A luta pelo reconhecimento dos direitos fundamentais a serem exercidos por todo o homem, na máxima de Padre Manuel Antunes, na qual ninguém pode ser excluído, não obstante sua idade, sexo, raça, riqueza ou posição social e demais outras condições intrínsecas, ainda flutua no idealismo humano. Não basta conceder os direitos civis no seu aspecto formal e legal, mas sim a sua efetiva concreção no seio social para a fruição de todo o homem.
Entende-se por direitos civis o conjunto de garantias individuais e coletivas que promovam de forma eficaz a integridade física e mental dos indivíduos, a vida, as liberdades individuais e coletivas, a segurança, a proteção contra qualquer forma de discriminação por motivos de sexo, cor, raça, origem nacional, orientação sexual, religião, idade, condição física ou mental, direito à privacidade, individualidade, liberdades públicas, liberdade política, liberdade de pensamento e de expressão, entre outros relacionados à expressão dos direitos fundamentais. É o exercício máximo dos direitos do cidadão que possibilita o viver em plenitude de sua existência. Muito mais do que isso é ter o direito a ter esses direitos, no dizer de Hannah Arendt (1989), que estabeleceu a ideia de que cada indivíduo tem o direito “de pertencer à humanidade, o que deveria ser garantido pela própria humanidade” (ARENDT, 1989, 332).
Para Carvalho (2002), os direitos “civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São direitos cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual” (CARVALHO, 2002, 18).
Os direitos civis são inerentes a todas as pessoas de forma geral e irrestrita, estão consagrados nas sociedades democráticas e antecedem qualquer outra forma de direitos, principalmente contra os abusos e ingerências do Estado, das organizações e sociedades empresariais, e de outras pessoas naturais.
Além dos direitos civis, os direitos políticos são conquistas do exercício democrático que garantem ao cidadão a sua participação nos rumos políticos governamentais e na escolha dos representantes. Direitos políticos estão ligados ao direito de votar e ser votado.
Depois dos direitos civis e políticos, há os direitos sociais, construídos para garantir a vida em sociedade e a “participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. […] Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A ideia central em que se baseiam é a da justiça social” (CARVALHO, 2002, 18).
O exercício pleno dos direitos civis pelas pessoas possibilita a sua plena cidadania. No aspecto de sua plenitude, a cidadania plena seria consequência natural do exercício dos direitos civis, que representa a máxima social de uma nação civilizada, na medida em que significa dizer que o Estado está a proporcionar aos indivíduos a plenitude de seus direitos na forma tal qual expressão prevista na legislação constitucional e infraconstitucional.
Todavia, esta conclusão parece utópica, pois os desvirtuamentos consentâneos à realidade social distanciam a cidadania real da cidadania idealizada. A luta de uma nação é a obtenção da cidadania plena oriunda da expressão dos direitos civis concedidos eficazmente e não meramente idealizados. Direitos civis não concedidos em sua plenitude conduz a sociedade a vivenciar uma cidadania tutelada. A plenitude dos direitos civis e da plena cidadania promove a plena dignidade humana, direitos esses que são absolutamente contidos na esfera da inalienabilidade e irrenunciabilidade.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1976) estabelece, em seu preâmbulo, o reconhecimento da dignidade humana, que é inerente ao direito à igualdade, portanto inalienável para todos os indivíduos, sendo o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, de inspiração filosófica iluminista, preconiza uma série de direitos fundamentais que atualmente fazem parte da maioria das constituições em países democráticos, dentre eles direitos considerados naturais e imprescritíveis como a igualdade perante a lei, a liberdade, a propriedade, a segurança, a resistência à opressão e o princípio da separação entre os poderes, em oposição ao regime absolutista que até então prevalecia na França.
O avanço dos direitos fundamentais foi de substancial importância para o reconhecimento dos direitos civis dos indivíduos e sua concretização no âmbito político, social e legal das nações. Apenas no Estado democrático de direito é possível à sociedade organizada e livre lutar pela plenitude de seus direitos, os quais devem ser consagrados na Carta Magna das nações e nos dispositivos infraconstitucionais.
O Direito, enquanto ciência social, deve ser a expressão dos países livres e democráticos, deve se inspirar no espírito filosófico a conceder à sociedade o exercício pleno da cidadania. A produção legislativa de um país precisa ser embebida dos anseios e necessidades individuais e coletivas para que os representantes políticos exerçam suas funções de modo legítimo e em sintonia com as diretrizes humanistas e republicanas. No entanto, quando os representantes políticos não atuam de modo legítimo no exercício de seus mandatos, de modo que operacionalizam os interesses de terceiros e não os dos seus representados, haverá certamente o desvio de finalidade política na satisfação dos interesses dos indivíduos, numa forma de produção de cidadania tutelada.
No dizer de Passos (2005, 16), a denominada cidadania “tutelada seria aquela formalmente deferida, mas operacionalmente impedida. Outorga-se formalmente cidadania, mas não se deferem, de forma institucionalizada, os instrumentos que a garantem. Cidadania tutelada não é apenas aquela em que há incapacitações e controles formais e explícitos, sim também a que é atribuída a sujeitos diminuídos em sua dimensão política, por meios indiretos, implícitos e ardilosos”. A realidade de cada nação expressa sua representatividade política, já que quanto mais presente a defesa dos direitos civis, políticos e sociais maior e mais plena será não apenas a cidadania, mas também a própria legitimidade pela qual os indivíduos estão a ser representados.
Para J. J. Gomes Canotilho (1993), a cidadania está inserida dentro do conceito dos direitos de personalidade, que abarcam assim, conjuntamente, os direitos de estado. Como afirma, muitos “dos direitos fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais são direitos de personalidade. Os direitos de personalidade abarcam certamente os direitos de estado (por ex.: direito de cidadania), os direitos sobre a própria pessoa (direito à vida, à integridade moral e física, direito à privacidade), os direitos distintivos da personalidade (direito à identidade pessoal, direito à informática) e muitos dos direitos de liberdade (liberdade de expressão)” (CANOTILHO, 1993, 520).
Cumprir os direitos civis por um Estado, aliados ao atendimento das necessidades sociais e políticas, é possibilitar de modo direto o respeito à dignidade da pessoa humana. Na forma como é estabelecida atualmente, a dignidade teve origem religiosa, na concepção do homem criado à imagem e semelhança de Deus.
No Iluminismo, a expressão da dignidade da pessoa humana passou a ser incluída pela filosofia como fundamento da própria existência humana, por meio de fundamentos racionais, bem como na aplicação de princípios axiológicos da moral e na autodeterminação do ser humano. Importante lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos preconiza a liberdade como fundamento mais importante, de modo a que possa cada indivíduo gozar das liberdades públicas de natureza civil, política e social, entendendo-se esta como expressão contrária à miserabilidade. É obrigação do Estado organizado e democrático organizar meios materiais, legais, políticos e sociais para fazer alcançar as condições para uma vida digna a possibilitar a todos o direito a ter o direito de usufruir dos seus direitos civis, políticos e sociais.
Direitos civis, dignidade e cidadania são os protagonistas de um mundo mais justo e equânime. O estudo da dignidade em Kant proporciona um destaque a merecer exposição. Para Kant, “considerando-se os fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade e quando algo pode ser substituído por outra coisa, esta passa a ter um preço, porém quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade” (KANT, 2007, 77). A assertiva kantiana explica de modo claro a condição humana em sua relação com as demais coisas. Afinal, a existência humana, na visão kantiana, não é passível de precificação, mas sim de preservação e respeito. A respeitabilidade dos direitos e garantias fundamentais baseada na essência fundamental dos direitos humanos é fator incomensurável, coloca o homem no centro de todas as ações do próprio homem. Na expressão filosófica e humanista do filósofo, as coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade. Neste sentido, a dignidade da pessoa humana seria o reconhecimento do exercício pleno dos seus direitos civis, políticos e sociais, pois jamais poderia ser observada do ponto de vista da coisificação, um mal que vem assombrando as sociedades capitalistas na Contemporaneidade, dada a forma do tratamento dado ao indivíduo em sua concepção humana.
Para além de serem os direitos civis meros preceitos filosóficos e idealísticos, impende a observar que não apenas os direitos civis mas os próprios direitos fundamentais estão a ser elevados ao nível constitucional de modo positivado e intencional, pois “transformar os direitos humanos em direito positivo – a intenção, em outras palavras, é de positivar direitos humanos, […] são, primeiro, direitos morais; segundo, direitos universais; terceiro, direitos fundamentais; quarto, direitos abstratos; quinto, direitos omniprevalentes, dotados de prevalência sobre todas as demais normas” (ALEXY, 2015, 168).
Se o Direito, enquanto ciência social, é um conjunto de regras jurídicas que tem por objetivo regular a vida em sociedade por meio da aplicação da lei, torna-se possível realizar a pacificação social e a busca do justo, de modo a garantir a cada indivíduo o que é seu de acordo com a lei. Todavia, não há garantia na própria lei de que os direitos civis e os direitos fundamentais serão objeto de atendimento pleno pelo Estado, até porque a sanção somente será atribuída em caso de descumprimento de uma regra coercitiva, não em face de uma previsão constitucional de princípios e direitos fundamentais não atendida.
A partir dos princípios fundamentais, previstos constitucionalmente, um Estado passa a garantir a edição de normas que possibilitem a implementação de circunstâncias materiais e legais para sua concreção. Garantir o mínimo existencial é uma obrigação do Estado. Porém, este limita-se à aplicação do princípio da reserva do possível. Se para o pleno exercício dos direitos civis e fundamentais, especialmente os sociais, o Estado demanda a necessidade de recursos financeiros, em caso de carência destes, a limitação financeira do Estado ocasionará enormes dificuldades em garantir a plena cidadania. Neste aspecto, o equilíbrio econômico na sociedade dependerá evidentemente de desenvolvimento das expressões financeiras da própria sociedade.
Importante lembrar que as sociedades humanas estão em processo de constante desenvolvimento. Muitas passaram por processos políticos complexos em que as liberdades individuais e os direitos fundamentais foram objeto de segregação, num cenário de autoritarismo e perseguição de direitos políticos. A reconstrução política e social de uma nação passa também pela reconstrução dos direitos civis, especialmente daquelas sociedades marcadas pelas ditaduras na segunda metade do século XX. A redemocratização dos países atingidos pelos movimentos ditatoriais impingiu atrasos, de modo evidente, na consagração dos demais direitos, sejam eles civis, políticos ou sociais. A realidade é complexa, e a obtenção da cidadania plena com dignidade da pessoa humana demandará importante responsabilização das autoridades e da sociedade organizada.
Bibliografia
ALEXY, R. (2015). “Direitos fundamentais sociais e proporcionalidade”. In R. Alexy et al. (org.). Dignidade Humana, Direitos Sociais e Não-Positivismo Inclusivo. Trad. R. L. N. da Silva. Florianópolis: Qualis.
ANTUNES, M. (2008). Paideia: Educação e Sociedade (tomo II). (2.ª ed.). Coord. científica J. E. Franco. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian.
ARENDT, H. (1989). Origens do Totalitarismo. Trad. R. Raposo. São Paulo: Companhia das Letras.
BENTHAM, J. (2019). O Panóptico. São Paulo: Grupo Autêntica.
CANOTILHO, J. J. G. (1993). Direito Constitucional (6.ª ed.). Coimbra: Almedina.
CARVALHO, J. M. (2002). Cidadania no Brasil. O Longo Caminho (3.ª ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
KANT, I. (2007). Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. P. Quintela. Lisboa: Edições 70.
PASSOS, J. J. C. (2005). “Cidadania tutelada”. In L. A. Ferreira (org.). Hermenêutica, Cidadania e Direito. Campinas: Millennium.
Autor: Carlos Henrique Solimani