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  • Direitos das Mulheres [Dicionário Global]

    Direitos das Mulheres [Dicionário Global]

    A expressão “direitos das mulheres” deve-se à discriminação a que as mulheres foram votadas no curso da história. Do ponto de vista dos direitos humanos, os direitos das mulheres significam, desde logo, que os direitos humanos também são direitos das mulheres, ou seja, que elas também são titulares desses direitos. No entanto, implicam também o reconhecimento de que os direitos das mulheres são direitos humanos, ou seja, de que a condição das mulheres exige o alargamento da compreensão dos direitos humanos, de modo a que os valores por eles expressos também se concretizem na vida das mulheres.

    A situação das mulheres em Portugal e no mundo

    As mulheres representam cerca de 50% da população mundial. Em 2020, em Portugal, situavam-se ligeiramente acima daquela percentagem (5 439 503 mulheres num total de 10 298 252 residentes).

    Apesar dos esforços do direito internacional dos direitos humanos na afirmação da igualdade entre homens e mulheres, as legislações internas de muitos Estados não cumprem os padrões internacionais. Dados de 2018 revelam que, em 21% dos países, as raparigas não têm os mesmos direitos de herança que os seus irmãos e que em 13% dos países não existe igualdade nos direitos de transmissão da nacionalidade aos filhos. Em 34 países, não existe qualquer norma que criminalize a violação da mulher pelo homem com quem é casada. Desde o início do milénio, a taxa de mulheres sem acesso a métodos de planeamento familiar mantém-se constante, cerca de 10%, com as consequências sobejamente conhecidas: gravidezes indesejadas, abortos e complicações de saúde (física e mental) relacionadas com a gravidez e o parto. Nos países da União Europeia (EU), em geral, o valor da igualdade de género encontra amplo acolhimento nas legislações dos Estados-Membros. No entanto, a igualdade de facto ainda está longe de ser uma realidade. Atualmente, cerca de meio milhão de mulheres em toda a UE, particularmente migrantes e ciganas, não tem acesso a acompanhamento pré-natal.

    Apesar de terem mais formação, as mulheres estão ainda sub-representadas no mercado de trabalho (no qual participam de um modo distinto) e nos lugares de poder e de tomada de decisão. Com efeito, na UE, quase um terço das mulheres trabalha a tempo parcial, contra 8,2% dos homens. As mulheres têm também mais probabilidade de interromper as suas carreiras de modo a dar resposta às responsabilidades familiares de cuidado, sendo responsáveis, na média global, por três vezes mais tempo de trabalho de cuidado não remunerado do que os homens. Este é um dos muitos fatores que conduzem à persistência das desigualdades salariais entre homens e mulheres, que se situa em 12,7% na UE.

    Em 2018, entre os diretores executivos das empresas Fortune 500, apenas 6,6% eram mulheres, o que corresponde praticamente à mesma percentagem (7%) que se encontrava, em 2019, nas maiores empresas cotadas na UE. Entre os membros das academias de ciências, apenas 21,6% são mulheres, subindo a percentagem para 38% entre os membros dos órgãos decisores das agências de financiamento à investigação científica. No mundo do desporto, apenas 16,1% dos membros dos órgãos das federações nacionais são mulheres.

    É certo que a participação das mulheres na política tem vindo a aumentar (para o que muito contribuiu a ideia de paridade). No entanto, em 2019, na Europa, a representatividade das mulheres nos parlamentos situava-se ainda nos cerca de 30% (em Portugal, em 2022, era de 37%), havendo apenas 10 mulheres chefes de Estado e 13 chefes de governo. Portugal nunca elegeu uma mulher para a Presidência da República, e a única mulher que exerceu o cargo de primeiro-ministro – Maria de Lurdes Pintasilgo – integrou o último dos governos de iniciativa presidencial.

    Em 2017, em todo o mundo, 17,8% das mulheres entre os 15 e os 49 anos teriam sofrido, no ano precedente, violência física ou sexual no contexto de uma relação íntima. As mulheres e raparigas constituem 70% das vítimas detetadas de tráfico de seres humanos. Destas, 80% são exploradas sexualmente. Os casamentos precoces continuam a ser uma realidade em muitas geografias, estimando-se que cerca de 650 milhões de mulheres se tenham casado com idade inferior a 18 anos. Na UE, um estudo que envolveu 42 000 mulheres revelou que metade tinha sido vítima de assédio sexual pelo menos uma vez e, entre essas, 32% afirmaram que tal ocorreu no contexto laboral. Cerca de 20% das mulheres que residem na EU, com idades entre os 18 e os 29 anos, afirmam terem sido vítimas de algum tipo de assédio cyberharassment, revelando o potencial das novas tecnologias para perpetuar padrões de desigualdade e violência de género. Em Portugal, em 2022, foram registadas mais de 30 000 ocorrências por factos suscetíveis de integrar crimes de violência doméstica e verificaram-se 24 homicídios voluntários de mulheres em contexto de violência doméstica.

    Os direitos humanos das mulheres

    A história das mulheres só começou a ser objeto de estudo no final da década de 1970, na sequência das críticas epistemológicas tecidas pelo feminismo da segunda vaga. Viveram-se, nas décadas subsequentes, momentos propícios à redescoberta e à receção de textos como a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), escrito por Olympe de Gouges, a partir do qual se revela a crítica à pretensa universalidade dos direitos declarados nas revoluções liberais, que enviesa o significado histórico desses eventos para a humanidade.

    Um exemplo da diferente história das mulheres encontra-se na história dos direitos de cidadania. A afamada (e também muito criticada) narrativa de T. H. Marshall preconiza uma evolução histórica dos direitos: primeiro os direitos civis (alcançados no séc. XVIII), depois os direitos políticos (séc. XIX) e por fim os direitos sociais (séc. XX). No entanto, esta narrativa não conta a história dos direitos de cidadania na perspetiva das mulheres no mundo ocidental, pois na Europa, de um modo geral, as mulheres já gozavam de direitos sociais e do direito de participação política quando viram o seu estatuto civil (particularmente, enquanto mulheres casadas) ser igualado ao dos homens, o que em muitos casos – incluindo o português – só veio a acontecer na década de 1970. As lutas e conquistas das mulheres não se confundem, portanto, com as dos homens.

    As mulheres compreenderam cedo a importância da adoção de estratégias que conduzissem os governantes a introduzir alterações legislativas e a adotar políticas públicas favoráveis aos direitos das mulheres. Uma dessas estratégias, que subsiste na atualidade, passa por obter o reconhecimento dos direitos das mulheres num plano internacional, de modo a usar os instrumentos internacionais como tópicos argumentativos para impulsionar mudanças internas. De facto, as mulheres foram pioneiras no lobby, remontando a sua experiência de participação nos fóruns internacionais ao nascimento da Sociedade das Nações (SDN) e da Organização Internacional do Trabalho, com as quais as organizações não governamentais de mulheres de cariz internacional estabeleceram um frutuoso diálogo.

    A Comissão Interamericana de Mulheres foi o primeiro organismo intergovernamental criado especificamente, em 1928, para promover os direitos das mulheres. Ainda hoje desenvolve um relevante trabalho na promoção da igualdade de género, tendo sobrevivido às vicissitudes que marcaram o século XX. No entanto, o seu escopo é regional. Um organismo internacional só viria a nascer em 1937, no seio da SDN, denominado Comité de Peritos sobre o Estatuto Legal das Mulheres. No entanto, o espoletar da Segunda Guerra Mundial não permitiu que o Comité desenvolvesse os trabalhos previstos, interrompendo uma vez mais (à semelhança do que sucedera na Grande Guerra) um caminho de progresso em matéria de direitos das mulheres.

    Não obstante este retrocesso, a experiência das mulheres no período entreguerras revelou-se decisiva para a sua participação na construção da nova ordem mundial no pós-guerra, que contava agora com a recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU). Entre os 160 signatários da Carta das Nações Unidas (Carta) estavam quatro mulheres – Minerva Bernardino (República Dominicana), Bertha Lutz (Brasil), Wu Yi-Fang (China) e Virginia Gildersleeve (EUA) –, mas muitas mais estiveram presentes na Conferência de São Francisco. Todas elas desempenharam um papel muito relevante para que o preâmbulo da Carta se referisse – como veio a suceder – à “igualdade de direitos entre homens e mulheres”.

    A consciência da importância da linguagem adotada nos instrumentos internacionais de direitos humanos continuou presente nos trabalhos que conduziram à aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), tendo as mulheres contribuído para que ela fosse expurgada de expressões masculinas que, num momento desfavorável, pudessem fazer perigar os sucessos alcançados. No entanto, muito mais do que a questão da linguagem, a DUDH proclamou o princípio da igualdade e da não discriminação em razão do sexo (arts. 2.º e 7.º) e consagrou a sua aplicabilidade ao domínio familiar, estabelecendo o princípio da igualdade entre os cônjuges (art. 16.º).

    As décadas que se seguiram à aprovação da DUDH foram profícuas na adoção de instrumentos de direito internacional tendentes a fomentar os direitos das mulheres, como a Convenção para a Erradicação do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição de Outros (1949), a Convenção sobre os Direitos Políticos das Mulheres (1952), a Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas (1957) e a Convenção sobre o Consentimento para o Casamento, Idade Mínima de Casamento e Registo de Casamento (1962). O principal objetivo, nesta primeira fase, foi mapear as desigualdades jurídicas que persistiam em muitos Estados e promover a sua erradicação, pugnando assim pela igualdade plena de direitos civis e políticos, o que significa para as mulheres, fundamentalmente, o direito ao voto e a igualdade no casamento.

    Para a aprovação daqueles instrumentos muito contribuiu o labor da Comissão da Condição da Mulher, órgão integrado no Conselho Económico e Social da ONU, que tem por objetivo específico a promoção da igualdade entre homens e mulheres. A importância de um órgão dedicado às questões das mulheres radica no facto, frequentemente observado na história, de que facilmente a luta pelos direitos das mulheres é relegada para segundo plano, dando-se prioridade às questões que são relevantes também, ou principalmente, para os homens. Por isso, a existência de órgãos, instituições, organizações e conferências de mulheres é justificada pela necessidade de fazer ouvir as suas vozes, tornando visível a assimetria entre homens e mulheres. De certo modo, também é este o espírito que inspirou o mais abrangente e relevante instrumento internacional de direitos humanos em matéria de direitos das mulheres: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, na sigla inglesa), de 1979, aprovada no quadro da ONU. Com efeito, trata-se de um instrumento assimétrico, que torna evidente que a questão dos direitos humanos das mulheres não é, essencialmente, uma questão de reconhecimento de direitos específicos das mulheres, mas sim o reconhecimento de que os direitos humanos, sendo os mesmos para todos os seres humanos, têm implicações e exigências diversas face à realidade concreta das mulheres.

    A CEDAW foi aprovada em plena “década da mulher” (1975-1985), proclamada pela ONU. Nessa década, realizaram-se três Conferências Mundiais das Nações Unidas sobre as Mulheres: México, em 1975; Copenhaga, em 1980; e Nairobi, em 1985.

    Deu-se também a feliz coincidência de, nessa década, se iniciar a transição do Estado português para a democracia, o que deu impulso e sustentação a várias iniciativas governamentais e da sociedade civil portuguesa para colocar as questões dos direitos das mulheres na agenda política. Com efeito, foi apenas neste período democrático inicial que se afirmou a igualdade entre homens e mulheres. Assim, por exemplo, as mulheres passaram a poder exercer qualquer profissão (incluindo, e.g., a magistratura e a diplomacia, que antes lhes eram vedadas), a ser consideradas iguais aos seus maridos (uma vez que o casamento deixou de ter uma estrutura hierárquica) e a ter acesso generalizado a consultas de planeamento familiar nos centros de saúde e a uma licença de maternidade remunerada.

    Por fim, afigura-se também relevante mencionar a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, de 1995. A Conferência de Pequim foi a IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres e a mais participada de todas elas, com 17 000 intervenientes. A Plataforma de Ação de Pequim traduz a voz das mulheres para a resolução dos problemas mundiais, identificando 12 áreas de intervenção, com os respetivos objetivos estratégicos e propostas de ação, constituindo um programa de ação que ainda hoje se constitui como um importante referente dos direitos das mulheres.

    Um dos mais emblemáticos momentos da Conferência de Pequim foi o discurso de Hillary Clinton, à época primeira-dama dos EUA, no qual proclamou a célebre frase “human rights are women’s rights and women’s rights are human rights” (“os direitos humanos são direitos das mulheres e os direitos das mulheres são direitos humanos”). Na verdade, chegados a Pequim, torna-se claro que os direitos das mulheres não são um subconjunto de direitos que respeitam apenas a um grupo populacional, mas sim o produto de uma compreensão limitada dos direitos humanos, que foram construídos à luz das experiências masculinas. Ou seja, se existe a necessidade de falar de “direitos das mulheres” é porque os direitos humanos se configuraram, ainda que não explicitamente, como “direitos dos homens”. Esta consciência impulsionou também a estratégia de gender mainstreaming, expressa também na Plataforma de Ação de Pequim, e que consiste em incorporar uma perspetiva de género em todas as esferas da sociedade.

    Entre as questões relativas aos direitos das mulheres, há duas que assumem particular relevância, na medida em que têm um impacto específico na vida das mulheres: os direitos sexuais e reprodutivos e o combate à violência de género.

    Os direitos sexuais e reprodutivos

    A relação entre a dominação masculina e a natureza visível da reprodução humana na mulher, estabelecida pela Antropologia e pela História, permite compreender que o controlo da fertilidade (primeira faceta dos direitos reprodutivos) tenha especial relevância para as mulheres. Na verdade, o domínio sobre as mulheres, através do controlo da sua sexualidade (nomeadamente por meio do instituto do casamento), serviu, no curso da  história, um interesse especificamente masculino: a garantia da autenticidade da filiação. Não terá sido também despiciendo, para o surgimento dos direitos reprodutivos, a (então recente) invenção da pílula contracetiva, na medida em que esta veio permitir às mulheres controlarem, de modo autónomo, a sua fertilidade.

    Com efeito, a primeira formulação de um direito relativo à reprodução humana foi enunciada na Proclamação de Teerão, de 1968, que emergiu da Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, realizada no 20.º aniversário da DUDH. Imediatamente após a reafirmação da necessidade de eliminar a discriminação contra as mulheres, o ponto 16 da Proclamação enuncia o direito ao planeamento familiar, nos seguintes termos: “[…] [o]s pais têm o direito humano básico de determinar de forma livre e responsável o número e o espaçamento dos seus filhos”. Não existe aí, contudo, uma referência à sexualidade.

    De facto, a determinação do âmbito dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos e a relação que se estabelece entre estes dois grupos de direitos foi e permanece objeto de debate. Apesar de, ainda hoje, muitos Estados não serem recetivos à aceitação dos direitos reprodutivos (como decorre das reservas feitas ao art. 16.º da CEDAW, que na sua al. e) densificou o direito ao planeamento familiar), a verdade é que o facto de eles terem sido inicialmente situados no quadro da família instituída por um casamento heterossexual permitiu a sua afirmação, ainda que precária, no plano internacional.

    De modo semelhante, pretensões que visam o combate à violência sexual contra grupos vulneráveis – como as mulheres – também se afirmaram desde cedo. Assim, a CEDAW acolheu, no seu art. 6.º, a preocupação com o combate ao tráfico e exploração da prostituição das mulheres, e a violência sexual em tempos de guerra (da qual as mulheres são vítimas preferenciais desde a Antiguidade) foi reconhecida, em tribunais internacionais e no Estatuto de Roma, como suscetível de ser qualificada como crime de genocídio, crime contra a humanidade e crime de guerra.

    O discurso que perspetiva a questão da reprodução e da sexualidade pelo prisma do controlo populacional e da saúde também tem granjeado maior aceitação. De facto, foi na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Conferência do Cairo, 1994) que surgiu a expressão “direitos reprodutivos”. Estes foram configurados, todavia, como direitos relativos à “saúde reprodutiva”, reiterando-se o direito ao planeamento familiar. A pandemia do VIH/SIDA, surgida nos anos 1980, contribuiu também para que os comportamentos sexuais passassem a ser encarados como uma questão de saúde pública, extravasando a esfera privada.

    Concomitantemente, acentuaram-se, nas décadas de 1980 e de 1990, as lutas sociais de comunidades discriminadas pela sua orientação sexual e identidade de género, que pugnavam por um conjunto de direitos que passaram a ser referidos como “direitos sexuais”. Nesta perspetiva, os “direitos sexuais” surgem como uma categoria distinta dos “direitos reprodutivos”, como resposta à consciência de que a ênfase nos “direitos reprodutivos” (e mesmo o uso da expressão “direitos sexuais e reprodutivos”) tende a ocultar a realidade de pessoas cuja sexualidade não se reconduz aos cânones tradicionais. A associação dos “direitos sexuais” a estas comunidades discriminadas acentuou a sua rejeição por parte de vários atores internacionais. Os direitos sexuais seriam, neste sentido, direitos mais amplos do que os direitos reprodutivos e poderiam ser autonomizados da dimensão reprodutiva.

    Em suma, apesar do importante contributo de organizações da sociedade civil, de órgãos de monitorização dos direitos humanos e de órgãos jurisdicionais, entre os quais o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, para a densificação dos “direitos sexuais”, ainda não existe consenso sobre a sua aceitação e escopo. Acresce que, na atualidade, apesar da mais ampla aceitação dos “direitos reprodutivos” nos termos já referidos, assiste-se a movimentos, tanto internos como internacionais, que são sinal da precariedade do reconhecimento destes direitos e da determinação do seu âmbito.

    A violência contra as mulheres

    Outro tópico de suma importância em matéria de direitos das mulheres é o do combate à violência contra as mulheres. A violência contra as mulheres nem sempre foi reconhecida como uma questão de direitos humanos, ou seja, como uma questão merecedora de uma atenção e qualificação que atendesse ao seu enraizamento num sistema social e político (num sentido amplo) profundamente discriminatório das mulheres.

    Na verdade, desde cedo se apontou a ausência de uma referência à violência contra as mulheres na CEDAW, lacuna esta que o Comité CEDAW procurou suprir na recomendação n.º 19, de 1992, na qual qualifica a violência contra as mulheres como uma forma de discriminação em razão do sexo. Esta foi uma estratégia que veio a ser adotada subsequentemente, facilitando o tratamento da violência contra as mulheres como uma questão de direitos humanos, com a vantagem de colocar em evidência a dimensão sistémica e política da violência contra as mulheres, para a qual contribuem desigualdades de poder estruturais e estereótipos de género.

    Com efeito, esta abordagem revelou-se essencial para reconhecer adequadamente a responsabilidade dos Estados na questão da violência contra as mulheres, percecionada frequentemente como uma questão de foro interno, uma vez que a sua prática se situava num domínio considerado privado, por agentes não estaduais. Para isso muito contribuiu o conceito de due dilligence, que encontrou no direito das mulheres um campo fértil de desenvolvimento. Com efeito, se os Estados não são diretamente responsáveis pelos atos dos particulares que, no seu território, sejam lesivos de direitos humanos, ainda assim podem ser responsabilizados, se não tiverem cumprido com as suas obrigações de prevenir, investigar, punir e responsabilizar tais particulares pelos atos de violência cometidos.

    Apesar de não existir um instrumento internacional de âmbito universal e natureza vinculativa que trate, especificamente, a questão da violência contra as mulheres, ela é objeto de instrumentos de âmbito regional, entre os quais se destacam a Convenção de Belém do Pará e a Convenção de Istambul. Além disso, em 2017, o Comité CEDAW veio afirmar, na sua recomendação n.º 35, que a proibição de violência de género é um princípio de Direito Internacional consuetudinário.

    É também no domínio da violência contra as mulheres que encontramos alguns dos mais claros exemplos do modo como a construção dos direitos humanos foi enviesada pelas vivências masculinas, dificultando a qualificação das experiências das mulheres à luz dos direitos humanos. Ou seja, a construção de normas de direitos humanos foi realizada à luz de experiências que afetavam de modo desproporcional os homens, o que conduz a obstáculos na aplicação de tais normas a vivências femininas. Por exemplo, a proibição de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes remete imediatamente para o caso do preso torturado por agentes do Estado. No entanto, as mulheres também são sujeitas a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes quando são coagidas à esterilização, ao aborto ou à prostituição ou quando são vítimas de violência doméstica ou de violência sexual.

    Para que exista um reconhecimento destas (e de outras) experiências das mulheres, é crucial que as mulheres tomem parte nos processos de interpretação e aplicação dos direitos humanos e que estejam presentes nos lugares de tomada de decisão.

    Em suma, os direitos das mulheres são o reflexo de uma configuração dos direitos humanos que, na sua proclamação, mas também na sua interpretação e aplicação, fica aquém da realização dos valores neles ínsitos nas experiências de vida das mulheres. Por isso (e de modo apenas aparentemente paradoxal), os direitos das mulheres contribuem para a afirmação da universalidade dos direitos humanos, no pressuposto de que essa universalidade é compreendida na dialética entre os direitos enunciados e a existência dos seus destinatários.

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    Autora: Miriam Rocha

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