Direitos Humanos [Dicionário Global]
Direitos Humanos [Dicionário Global]
O que são direitos humanos? Ou, por outras palavras, qual a natureza dos direitos humanos? A resposta tradicional a esta pergunta, repetida em muitas versões, é a de que os direitos humanos são “direitos de todos os seres humanos em virtude da sua humanidade”. Deixando para já de lado o problema de a palavra “direitos” fazer parte tanto da definição como do termo definido – ficando assim em aberto o seu sentido – atentemos antes de mais na universalidade e transtemporalidade desta definição. Nela, os direitos humanos aplicam-se a todo os seres humanos atuais, passados ou futuros e relevam apenas do seu estatuto humano, ou seja, da sua pertença ao que podemos chamar “humanidade”. Creio que é nisso que os “direitos humanos” se distinguem de outros direitos, como dos direitos de senhores e servos, de nobres e burgueses, ou mesmo dos direitos dos cidadãos de um Estado.
É com certeza devido a esta universalidade e transtemporalidade, inerentes à definição tradicional, que existe muitas vezes a tentação entre historiadores e estudiosos dos direitos humanos no sentido de encontrar manifestações do seu reconhecimento um pouco por toda a história humana, mesmo nas civilizações mais remotas. Assim, não é incomum que histórias dos direitos humanos comecem pelo Egito Antigo, tal como é normal que a génese dos direitos humanos seja colocada na Grécia Antiga, ou em Roma, ou ainda nos primórdios do cristianismo. Embora menos frequentemente, há também estudiosos que procuram em culturas não ocidentais traços dos direitos humanos, desde logo nas outras religiões do livro para além do cristianismo (judaísmo, islamismo), mas também nas religiões e filosofias orientais e em sistemas de crenças de outras latitudes.
No entanto, este tipo de empreendimento intelectual é muito especulativo. Mesmo que alguns possam tentar recriar uma pré-história dos direitos humanos, estes só são verdadeiramente compreensíveis no contexto da modernidade europeia e da sua expressão dos dois lados do Atlântico. Ainda assim, se quisermos encontrar uma proto-história não especulativa dos direitos humanos, devemos começar por recorrer aos debates de Valladolid sobre a “humanidade dos índios” americanos, protagonizados por Bartolomeu de las Casas, e à chamada Escola Ibérica da Paz. Aí se joga certamente a possibilidade de integrar todos os seres humanos na mesma humanidade e, dessa forma, construir a possibilidade de que todos os seres humanos, em qualquer lugar ou tempo, possam usufruir dos mesmos direitos.
Esta ideia de igualdade básica de todos os seres humanos é desenvolvida pelos pensadores jusnaturalistas e contratualistas modernos. Mesmo aqueles que, como Thomas Hobbes, acabam por defender uma clivagem entre soberano e súbditos, entre quem manda e quem obedece, partem da ideia de que os seres humanos são iguais por natureza. Ou seja, a desigualdade tem de se justificar – e justifica-se no caso de um defensor do poder absoluto no quadro do Estado, como Hobbes – porque o ponto de partida é a igualdade básica de todos. Desta forma, reverte-se a visão que estava presente entre antigos e medievais de que a hierarquia social e a própria distribuição do poder político são, por natureza, desiguais. Uma ideia que pode ser exemplificada pela conhecida teoria aristotélica do carácter natural da escravatura, mas que, em boa verdade, corresponde a uma visão mais geral de desigualdade natural prevalecente na história pré-moderna.
A ideia de igualdade básica universal e transtemporal está presente em muitos pensadores posteriores a Hobbes. Considere-se, a título de exemplo paradigmático, o caso de John Locke. Também para este os seres humanos são iguais à partida, mas também livres, nem escravos nem senhores, não podendo ser vistos como sendo propriedade de alguém ou estando submetidos a algum outro. Locke, aliás, vai subsumir essa condição de partida dos seres humanos em “estado de natureza” na ideia de que eles têm todos um igual direito à autopropriedade. Assim, todos os indivíduos são igualmente proprietários de si mesmos, o que significa que não são propriedade de outrém e que, portanto, são livres. A propriedade no sentido estrito dos bens materiais ou externos ao corpo é também inicialmente distribuída de forma bastante igualitária já que, seguindo as Escrituras, Locke considera que Deus deu a natureza a todos em comum e ninguém pode dela apropriar-se pelo trabalho se não deixar o mesmo e igualmente bom para os demais. É certo que Locke acaba por justificar a desigualdade da propriedade aplicada a bens materiais com a invenção da moeda, que permite acumular sem prejudicar os outros (ou pelo menos assim pensa Locke). Mas o ponto de partida é igualitário na medida em que todos têm por igual um direito à propriedade sobre si mesmos, o que implica também a sua liberdade e a posse das coisas necessárias à vida com sobriedade e sem acumulação (antes da invenção da moeda).
Com Locke e outros autores jusnaturalistas e contratualistas dos séculos XVII e XVIII compreendemos de forma clara a proto-história dos direitos humanos, incluindo de que direitos estamos aqui a falar. Os direitos iguais à vida, segurança, liberdade, propriedade, ou mesmo de resistência à opressão, são prerrogativas individuais, que garantem uma esfera de inviolabilidade para qualquer sujeito. Essas prerrogativas não existem mediante criação política. Pelo contrário, são anteriores ao Estado político, são pré-políticas e, como tal, naturais e comuns a todos os seres humanos simplesmente pelo facto de serem humanos. O Estado político deve ser construído na base destes direitos e os outros direitos que o Estado estabelecer pela voz do soberano não poderão opor-se-lhes.
O facto de tantas vezes, até mesmo entre aqueles que pensaram estes direitos e os defenderam em abstracto, não se verificar uma coerência com a prática é algo que acompanha a modernidade e a desenvolve até aos nossos dias. Os direitos naturais são inicialmente mais facilmente aplicáveis aos homens do que às mulheres, às maiorias étnicas do que às minorias, aos membros da religião dominante do que aos dissidentes, etc. Mas a ideia entrou na História com a modernidade política e fará o seu curso até aos nossos dias, no sentido de um maior aperfeiçoamente teórico e, sobretudo, prático. Podemos entender as lutas políticas e sociais da Modernidade como uma tentativa constante para fazer jus ao ponto de partida basicamente igualitário definido pelos direitos naturais e subjetivos do Homem.
Mas, para compreendermos plenamente o processo que conduz aos direitos humanos, temos de passar das fontes filosóficas para o plano jurídico-político através das declarações de direitos do final do século XVIII, na América e na Europa. Aliás, já o famoso início da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776), elaborada por Thomas Jefferson, espelha a visão lockeana dos direitos naturais e do contrato social acima esquissada, à qual se acrescenta o direito à procura da felicidade: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando os seus justos poderes do consentimento dos governados”. As declarações de direitos dos diferentes estados americanos, nesse mesmo ano de 1776, começando pela Declaração dos Direitos da Virgínia, desenvolvem de forma ainda mais clara a sua filiação no jusnaturalismo e no contratualismo modernos, elencando, para além dos direitos naturais do Homem, os direitos do cidadão estabelecidos após o contrato social.
Se considerarmos o documento mais influente no contexto europeu – e não só – , a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789), constatamos que o próprio título clarifica a relação fundamental entre os direitos naturais do Homem e os direitos do cidadão, de acordo com o esquema contratualista. Assim, os “direitos do Homem” são os direitos naturais que todos têm por igual, como a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Os “direitos do cidadão”, por seu turno, são os que resultam da soberania e da lei, mas partindo do princípio de que a própria “associação política” que cria a soberania visa a proteção dos “direitos naturais do Homem”. Estes constituem-se, portanto, como limites àquilo que o soberano pode legitimamente fazer.
É certo que, quanto aos direitos do cidadão, devemos convocar uma outra fonte, mais jurídica do que filosófica – a da tradição dos direitos do povo inglês. Os pensadores europeus do século XVIII conheciam bem o “governo à inglesa”, ou seja, o regime político liberal avant la lettre instituído em Inglaterra com a Revolução Gloriosa de 1688 e a Declaração de Direitos de 1689, assinada pelos monarcas William e Mary. Apesar do conhecido desprezo de Rousseau por este tipo de regime representativo – pensava o genebrino que os ingleses só eram livres quando elegiam o Parlamento, depois permaneciam escravos –, o “governo à inglesa” exercia grande fascínio na medida em que assentava na ideia de respeito pelos direitos e liberdades do povo inglês afirmados historicamente, desde a Magna Charta Libertatum, de 1215. Ainda assim, deve notar-se que estes direitos dos cidadãos ingleses são de tipo particular, ou seja, são liberdades e imunidades que os monarcas reconhecem aos seus súbditos, ou aos “homens livres de Inglaterra”, mas não assentam em direitos naturais do Homem. Não são prerrogativas gerais e pré-políticas. São uma criação política particular e sem alcance universalista.
Mas ainda que possamos considerar que os direitos naturais do Homem e os direitos do cidadão dos séculos XVII e XVIII são uma proto-história dos direitos humanos como hoje os entendemos, eles não são ainda a sua verdadeira história. Mesmo o século XIX, com a expansão do constitucionalismo liberal e a positivação de direitos individuais, não conduz diretamente à ideia atual de “direitos humanos”. Embora muitos juristas e pensadores preconizassem durante anos a adoção de uma declaração internacional de direitos, ou seja, de uma declaração que não estivesse dependente de nenhum particularismo nacional, a verdade é que esse momento só chegaria no final da Segunda Guerra Mundial e em função do trauma causado pela violência da guerra e, em particular, pelo Holocausto.
O projeto de uma declaração internacional de direitos humanos começa a ganhar forma na Conferência de São Francisco (1945), que cria a Organização das Nações Unidas (ONU). Logo no preâmbulo da Carta das Nações Unidas, aprovada em São Francisco, surge a referência aos “direitos humanos fundamentais”. Com o gradual estabelecimento da ONU, a partir de 1946, é criada uma Comissão de Direitos Humanos com o objetivo de redigir um tratado ou declaração internacional, tendo a opção recaído sobre a última possibilidade (uma decisão acertada, já que um tratado juridicamente vinculativo para os países signatários seria difícil de conseguir naquele momento). A Comissão de Direitos Humanos, sob a direção de Eleanor Roosevelt – nomeada pelo Presidente Truman como delegada dos Estados Unidos na ONU –, parte de um estudo sistemático sobre as declarações e constituições do mundo nas quais são listados os direitos do Homem e do cidadão, ou direitos fundamentais. A partir daí são redigidas sucessivas versões, até se chegar à fórmula final, com preâmbulo, proclamação e 30 artigos. O processo foi difícil e turbulento, já que se confrontavam diferentes perspetivas políticas (Ocidente liberal, liderado pelos Estados Unidos, contra os países comunistas, liderados pela União Soviética) e distintas conceções do mundo e da vida (uma mais individualista, outra mais comunitarista).
O resultado final do processo de elaboração da Declaração Universal espelha esses equilíbrios ideológicos e geoestratégicos, por exemplo no facto de ela conter de forma sistematizada os direitos civis e políticos, mas também uma longa série de direitos económicos, sociais e culturais (trabalho, saúde, educação, acesso à cultura…). Embora uma formulação muito incipiente de direitos sociais, económicos e culturais possa ser já encontrada na Declaração francesa de 1793 (a Declaração jacobina que substitui temporariamente a de 1789) e esses direitos surjam por influência de ideias socialistas em algumas constituições nas primeiras décadas do século XX, eles estão largamente ausentes durante o que chamámos a proto-história dos direitos humanos, até à Declaração Universal. Mas isso já não será possível a partir desta Declaração. Ela institui como direitos humanos estes direitos de segunda geração, económicos, sociais e culturais, que são prerrogativas de tipo diferente e não se resumem a garantir uma esfera de inviolabilidade individual. São “direitos a”, e não apenas “direitos de”, requerem mais ação do que abstenção por parte dos Estados e, neste sentido, são, mais “positivos” do que “negativos”.
Depois de passar pelos diferentes órgãos da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi finalmente votada na Assembleia Geral reunida para o efeito, em Paris, no Palácio de Chaillot, a 10 de dezembro de 1948. Para surpresa de muitos, a Declaração Universal não teve votos contra na sua aprovação na generalidade e passou com apenas 8 abstenções, dos países comunistas, da Arábia Saudita e da África do Sul (que nessa altura começava a política de apartheid). É neste momento que podemos dizer que nascem os direitos humanos na sua aceção atual, positivados na esfera internacional.
Nesta declaração já não há qualquer referência aos “direitos naturais do Homem”. A “inerente dignidade” dos seres humanos é afirmada inicialmente, mas surge mais como uma noção genérica do que como fundamento dos direitos. Também a referência a “direitos do cidadão” é abandonada. Mas é certo que muitos dos diretos humanos declarados só se podem realizar plenamente no quadro de Estados específicos (direito a um julgamento justo, direito ao trabalho, etc.), enquanto alguns dos direitos têm uma genuína dimensão internacional, como o direito de asilo. Os direitos listados constituem, assim, um referencial genuinamente internacional, mas para um mundo composto por Estados, colocando fortes exigências a esses Estados.
É sobre a Declaração Universal de 1948 que se constrói todo o edifício do direito internacional dos direitos humanos. Desde logo o seu sistema universal, especialmente com o Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto sobre os Direitos Económicos, Socias e Culturais, ambos adotados em 1966. As convenções posteriores contra a discriminação racial, contra a discriminação das mulheres, sobre a proibição da tortura, ou ainda sobre os direitos da criança, são consideradas especialmente importantes. Mas muitos outros instrumentos foram sendo adotados até aos dias de hoje ao nível das Nações Unidas.
Acrescendo a este sistema universal, desenvolveram-se sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, de que é exemplo a Convenção Europeia dos Direitos Humanos adotada no quadro do Conselho da Europa, com a particularidade de prever a criação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Também em outras regiões do mundo se desenvolveram sistemas próprios, ainda que menos eficazes do que o Europeu. Acontece assim no quadro da Organização dos Estados Americanos e no quadro da União Africana.
Mas, para além do direito internacional, a Declaração Universal e os documentos posteriores exercem uma poderosa influência ao nível doméstico dos Estados, tanto em termos constitucionais como na legislação ordinária, levando à existência de sistemas nacionais de proteção dos direitos humanos, como acontece em Portugal desde a implantação do regime democrático.
O edifício dos direitos humanos cresceu em quantidade e complexidade jurídica. Mas a relevância social dos direitos humanos foi relativamente pequena no auge da Guerra Fria, tendo começado a afirmar-se após a Conferência de Helsínquia e o chamado “apaziguamento” entre as superpotências Americana e Soviética. Foi nessa altura que começaram a surgir as principais organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos, como o Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional. A popularidade dos direitos humanos atingirá o seu auge com o final da Guerra Fria, a partir de 1989, quando estes direitos e o discurso sobre eles passam a substituir as grandes narrativas ideológicas (capitalismo ou liberalismo versus socialismo ou comunismo) que tinham prevalecido até então.
Mas é também de notar que as referências aos direitos humanos no discurso corrente e mesmo no discurso político centram-se muito nos direitos civis e políticos. Como têm notado alguns historiadores, nas variações de popularidade que os direitos humanos conheceram ao longo dos anos após 1948, os direitos sociais, económicos e culturais têm tido menor exposição, fazendo com que os ideias de igualdade social tenham menor relevância prática neste domínio do que aquelas que relevam as liberdades e direitos das pessoas na sociedade civil e política. Não deixa de ser notório que o triunfo do discurso dos direitos humanos na última década do século XX tenha convivido com enormes e inaceitáveis níveis de pobreza e desigualdade a nível internacional.
Mas o discurso triunfante sobre os direitos humanos tem levado também muitas vezes à exigência da sua expansão para formatos que estão já longe do modelo de 1948, como acontece com propostas que visam transformar ideias gerais como os da proteção ambiental, da paz, do desenvolvimento sustentável, etc., em direitos humanos de terceira geração (após os direitos civis e políticos e os direitos económicos, sociais e culturais). O problema reside no facto de estes ideais não serem facilmente transpostos na linguagem dos direitos subjetivos, com titulares definidos e sanções concebíveis para os seus infratores.
Os direitos humanos têm conhecido enormes desafios, não apenas na sua defesa prática, um pouco por todo o mundo, como também na sua própria conceção e fundamentos. Assim, os debates sobre o caracter ocidental destes direitos, contrapostos aos “valores asiáticos”, ou aos “valores islâmicos”, ou a qualquer outro contexto cultural específico, relançaram muitas vezes a polémica que sempre existiu, desde os anos quarenta do século XX, sobre o relativismo cultural enquanto travão ou ameaça à possibilidade de considerar e defender os direitos universais de todos os seres humanos.
Um outro desafio particularmente relevante é aquele que se coloca a partir da crise ambiental global que estamos a viver, com o aquecimento da atmosfera, a degradação geral dos ecossistemas, a aceleração da extinção de espécies, etc. Entre as formas mais radicais da “ecologia profunda” existe a tentação de subordinar os direitos humanos à preservação ambiental. Na sua versão mais moderada, a da defesa da sustentabilidade, o ambientalismo procura precisamente equilibrar as exigências da preservação ambiental com o respeito pelos direitos humanos.
Mas deixemos agora as questões da expansão dos direitos humanos enquanto direitos jurídicos e da sua presença na sociedade e na política para regressar brevemente à questão conceptual com que começámos. Se os direitos humanos, no sentido contemporâneo, são claramente distintos da conceção mais específica dos direitos naturais do Homem da Europa moderna e dos próprios direitos do cidadão; se os direitos humanos partem de uma positivação internacional de direitos a partir de meados do século XX; se eles estão associados a práticas jurídicas e reivindicações sociais e políticas específicas, será que ainda os devemos classificar, de forma essencialista, como “direitos de todos os seres humanos apenas em virtude da sua humanidade”?
Muitos pensadores atuais consideram que não, ou seja, que os direitos humanos não devem ser vistos como necessariamente ligados a uma antropologia filosófica específica que estabeleça a humanidade dos seres humanos a partir de conceções debatidas no âmbito filosófico, como as de pessoa moral, de autonomia e liberdade, de dignidade essencial, etc. Como alternativa, propõem uma visão mais política ou prática dos direitos humanos (e.g., Charles Beitz, partindo de John Rawls). Estes deixam, assim, de ser os direitos de todos em virtude da sua humanidade para passarem a ser vistos em termos funcionais, como sendo princípios que protegem interesses humanos especialmente relevantes e têm um papel crucial no sistema internacional: o da limitação da soberania dos Estados em relação aos seres humanos em geral e, desde logo, aos seus próprios cidadãos.
Desta forma, a resposta à pergunta “o que são os direitos humanos?” deixa de remeter para a sua essência e para a esfera filosófica, moral e ontológica, para passar a remeter para a função desses direitos a nível internacional, isto é, para as questões jurídicas, sociais e políticas inerentes ao desenvolvimento e influência dos direitos humanos no mundo contemporâneo.
Note-se que esta perspetiva política ou prática sobre os direitos humanos não deve ser confundida com aquilo que os filósofos chamam “antifundacionalismo”. Este pode ser encontrado no pensamento contemporâneo por exemplo num autor como Richard Rorty, que considera que os direitos humanos valem não por causa de qualquer fundamento racional – que não existe – mas porque despertam em nós e em particular nos mais jovens os bons sentimentos para uma sociedade mais solidária. No caso da perspetiva política ou prática, a questão não consiste em negar a possibilidade de fundação filosófica última dos direitos humanos – é possível ser agnóstico nessa matéria –, mas em compreender que aquilo que os define contemporaneamente é um conjunto de práticas jurídicas e sociais, independentemente das questões fundacionais, morais e ontológicas – que, no entanto, permanecem como interrogação perene.
Em qualquer dos casos, devemos resistir à tentação de definir de uma vez por todas os direitos humanos, como na visão tradicional, ou na alternativa política e prática, ou mesmo na perspetiva antifundacionalista. Aliás, não devemos reduzi-los a uma teoria nem a um conjunto de teorias. Nem à sua dimensão meramente jurídica, por muito importante que ela seja. Nem tampouco às suas práticas sociais e políticas e aos papéis que eles desempenham no nosso mundo. Os direitos humanos têm dimensões teóricas e práticas, filosóficas e doutrinais, jurídicas e políticas. Reduzir a sua complexidade equivaleria a não fazer justiça à sua influência e relevância no mundo contemporâneo.
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Autor: João Cardoso Rosas