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    Doutrina Social da Igreja

    Enquanto estruturas organizadas, as religiões transportam narrativas de valores éticos e morais para a organização social e política. No cristianismo, que tem na Igreja católica a sua mais influente instituição, a síntese ganhou corpo na Doutrina Social da Igreja (DSI).

    A DSI não é um programa político-partidário, mas uma proposta para a reflexão sobre os modelos de organização social. Nesta perspetiva, temos a religião a intervir, com direto e por dever, no diálogo transversal e secularizado.

    O conceito de “bem comum” e “destino universal dos bens”, os princípios de dignidade humana, direito ao trabalho e dever de participação, afirmam-se pela DSI como chaves de leitura sociopolítica e antropológica do Evangelho, fonte de inspiração para muitas formas de governança e prática social, que não se enclausuram nas ideologias abordadas na ciência política.

    A primeira ideia a reter quando se fala da DSI é a de que não se trata de um documento único, mas de orientações com múltiplas fontes do magistério sobre o respetivo posicionamento na organização da sociedade. Há documentos recentes e estruturantes para a DSI – como é o caso da encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas, 1891), do Papa Leão XIII, sobre as condições do operariado, considerada o embrião da DSI –, mas a fonte primordial é a Bíblia. O pressuposto é o de uma humanidade amada por Deus, sem exceções. O objetivo é a construção de um humanismo cristão, em justiça e caridade, integral e solidário, assente na gratuidade como dom: “Tudo quanto quiserdes que os homens vos façam, fazei-o, de igual modo, vós também” (Mt 7, 12).

    Na reflexão sobre a DSI, os cristãos católicos podem obter pistas e diretrizes para a ação social. É o caso do “destino universal dos bens da terra”, considerado um princípio da doutrina social cristã (João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, 42). Como consequência, o direito universal ao uso dos bens é “natural, inscrito na natureza do homem”, e não “somente positivo, ligado à contingência histórica”, bem como “originário” (Pio XII, radiomensagem em comemoração do 50.° aniversário da Rerum Novarum) e “prioritário em relação a qualquer intervenção humana sobre os bens, a qualquer regulamentação jurídica dos mesmos, a qualquer sistema e método económico-social” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172).

    Também conhecida como “pensamento social cristão”, a DSI tem inegáveis contornos políticos e desenha-se com um conjunto dinâmico de propostas ou ensinamentos para responder ao devir dos problemas sociais e políticos. Novas intervenções do magistério – respondendo aos sinais dos tempos, com análise e discernimento social atualizado – podem constituir renovados contributos para esta coesa rede de reflexões, sobre as quais paira a teologia moral. Com esta ferramenta, a Igreja Católica passou a ter uma voz atuante, transformando a mensagem evangélica num pragmático contributo para a organização social e para a defesa do “bem comum”. Na encíclica Pacem in Terris (Paz na Terra) (PT), o Papa João XXIII enquadra o conceito, ampliando-o para lá do mero interesse comum das comunidades: “O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana e sua sociedade” (PT, 58). A DSI propõe-se, assim, intervir na edificação do “bem comum” entendido em corresponsabilidade. O “bem” da comunidade é desafio e objetivo de cada indivíduo que a compõe e não pode ser excluído.

    Foi a Revolução Industrial, no século XIX, com as respetivas consequências sociais, que desencadeou a necessidade de a Igreja sistematizar a dimensão social do Evangelho, dando-lhe um corpo doutrinário extenso, que vai hoje da organização política à dignidade do trabalho e do trabalhador.

    Na encíclica Rerum Novarum, no final do século XIX, Leão XIII responde à miserável condição do proletariado industrial. Defendendo o direito à propriedade privada, Leão XIII afirma que este não é um valor absoluto. O liberalismo, o capitalismo, o socialismo e o comunismo seriam as ideologias que condicionariam o propósito inicial, realçando-se que a propriedade privada está sujeita ao princípio do bom “uso comum dos bens”.

    Passado o drama da Grande Guerra, Pio XI publica Quadragesimo Anno (1931), a assinalar o quadragésimo aniversário da Rerum Novarum. Era já um esforço de atualização perante a ascensão de totalitarismos, a Grande Depressão de 1929 e a necessidade de construir uma ordem social inspirada no Evangelho.

    A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) limitaria a reflexão publicada. Nas intervenções possíveis face aos constrangimentos da guerra e à ocupação nazi de Roma, Pio XII focou a dimensão social e política sobretudo nas consequências diretas do conflito global, mas não deixou de reafirmar o princípio do uso universal dos bens, como foi o caso da já referida radiomensagem, a 1 de junho de 1941.

    O sucessor, João XXIII, viria a incutir uma renovada dinâmica à DSI. Preocupado com a reconstrução da Europa e o “terceiro mundo”, empenhado num aggiornamento da Igreja Católica, convocaria o 2.º Concílio do Vaticano, no qual o papel social dos cristãos seria reafirmado e reforçado. No pontificado do Papa Luciani, a DSI passaria definitivamente a assumir a pretensão de ser um pilar na organização social e política, defendendo uma cooperação internacional, a intervenção e o papel dos Estados na organização sociopolítica. Ainda hoje são referenciais as encíclicas Mater et Magistra (Mãe e Mestra, 1961), Pacem in Terris (1963) e Gaudium et Spes (Alegrias e Esperanças, 1965) (GS), dando início à dinâmica de um diálogo incessante entre a Igreja e o mundo, relacionando e sintonizando os problemas económicos, sociais e políticos com os valores evangélicos, fazendo depender a paz no mundo de quatro dimensões inseparáveis: verdade, justiça, solidariedade e liberdade.

    Reafirmando uma ética de alteridade, há um princípio sintetizado por João XXIII: “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém, ao uso de todos os homens e povos, de modo que os bens criados devem estar ao dispor de todos, com equidade, tendo como guia a justiça e por companheira a caridade” (GS, 69).

    Pau­lo VI manteria os apelos ao diálogo, procurando valorizar a dignidade humana sobre as ideologias, mas sem negar a relevância destas. Na encíclica Po­­pu­lo­rum Progressio (Progresso dos Povos, 1967), Paulo VI abordaria o de­sen­volvimento integral dos povos, reforçando os quatro pilares de João XXIII. Estávamos nas décadas da autodeterminação dos povos colonizados. Alastravam-se lutas pela independência e pela libertação de classes oprimidas, com a Igreja em ambos os lados à procura de equilíbrios e pontes.

    Na carta apostólica Octogesima Adveniens (1971), pelo 80.º aniversário da Rerum Novarum, o Papa Montini reafirma o compromisso sociopolítico dos cristãos. Mas, ao analisar as ideologias dominantes – socialista, marxista e liberal –, salienta a urgência do discernimento e alerta para os riscos de utopias que podem desencadear opções contrárias à dignidade humana. Era uma perspetiva atualizada. Como pano de fundo estavam ainda a debilidade das democracias emergentes, os movimentos migratórios, a pobreza, os problemas ambientais e a comunicação social, que se revelava já uma força de inegável influência no exercício político e na transmissão de valores.

    O pontificado de João Paulo II coincidiria com uma mudança no cenário geopolítico. Com intervenção também do Papa, natural da Polónia, cairia o regime soviético e ficaria fragilizada a ideologia marxista. O capitalismo, com novas ameaças à dignidade humana, ao trabalho, aos povos e à família, passaria a ser a preocupação maior nas reflexões do magistério, expressa na encíclica Centesimus Annus (1991) (CA), na qual João Paulo II assinalaria o centenário da Rerum Novarum. Neste documento, João Paulo II renova a defesa do direito à propriedade privada, referido um século antes por Leão XIII, mas como instrumento para a solidariedade e fraternidade: “Deus deu a terra a todo o género humano, para que sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém” (CA, 31). Sendo honesto, o lucro é legítimo, mas para ser distribuído equitativamente, pelo princípio do “destino universal dos bens da terra”.

    Já antes João Paulo II publicara duas importantes encíclicas sociais: La­borem Exer­cens (Mediante o Trabalho, 1981) (LE), sobre o direito ao tra­balho como critério da dignidade humana, acima do capital, pois “o princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de toda a ordem ético-social” (LE, 19); e Sollicitudo Rei Socia­lis (Solicitude Social, 1987), a propósito das consequências da nova situação internacional, do fosso social entre o Norte e o Sul, a exigir critérios evangélicos para o desenvolvimento humano.

    A primeira encíclica do Papa Bento XVI, Deus Caritas Est (Deus É Amor, 2005), sobre o amor humano e o amor divino, realça que a caridade é um dever da Igreja e dos católicos, chamados ao exercício político, mas seria com Caritas in Veritate (A Caridade na Verdade, 2009) que o papa alemão mais contribuiria para o corpo documental da DSI. O mundo vivia em crise económica e financeira. Bento XVI fazia memória do 40.º aniversário da Populorum Progressio e criticava um certo pragmatismo sem ética, que domina a economia e a política, motivador de resignação e imprudência, gerador da crise. Apresentada na véspera de uma reunião do G8, Caritas in Veritate retrata um tempo de incertezas. “Ética” e “justiça” são palavras-chave da encíclica, ainda assim incapazes de abranger as direções propostas, a começar pelo apelo, à semelhança de João XXIII, a uma reforma da ONU e à criação de uma Autoridade Política Mundial reguladora da globalização e da “da interdependência mundial”, reconhecida por todos, “com poder efetivo para garantir a observância da justiça, o respeito dos direitos”, a planificação do desenvolvimento, orientada pelos “princípios da subsidiariedade e da solidariedade”. Subjacente está a proposta de uma “revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento”, sem a qual será difícil o desarmamento, a segurança alimentar, a defesa do ambiente e a regulação dos fluxos migratórios. Embora sem preconizar, em concreto, “soluções económicas”, Bento XVI dá orientações para “uma ética amiga da pessoa que respeite a vida, os mais pobres e desfavorecidos”, minimizando desequilíbrios mundiais. Este documento pode também ser entendido como um ponto de viragem, a partir do qual a Igreja passa a entender-se como interlocutor no debate sobre o desenvolvimento, em todas as suas dimensões, pretendendo ser uma voz da consciência social, tarefa assumida depois por Francisco, como nenhum antecessor o fizera.

    Desde as primeiras palavras no pontificado, como interveniente e, por vezes, protagonista em grandes fóruns sobre políticas sociais e ambientais, o Papa Bergoglio traz a corresponsabilidade para o quotidiano mediático da narrativa católica. Reabilitar o exercício político, no que tem de mais nobre, passa a ser também um propósito da Igreja e da sua doutrina social. Na sequência de Bento XVI, Francisco exorta os católicos a envolverem-se mais na política também como forma de pôr em prática a DSI. Numa reafirmação da base do pensamento social cristão, Francisco preconiza uma “nova justiça social”, legitimada na tradição cristã, que “nunca reconheceu como absoluto e intocável o direito à propriedade particular”. O direito à propriedade é “secundário, derivado do direito que todos têm, nascido do destino universal dos bens da criação”. Não há justiça social, “que se possa consolidar sobre a iniquidade, que implique a concentração da riqueza” (Mensagem em vídeo do Papa Francisco por ocasião do encontro virtual dos juízes, membros dos comités para os direitos sociais de África e da América, 30 de novembro de 2020).

    Existe a proposta de uma “economia de Francisco”, a provar que a experiência religiosa é inseparável da dimensão social e política: “Devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento de um idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão” (EG, 53).

    O Papa Francisco deixa três documentos estruturais para a DSI: Evangelii Gaudium (EG), “sobre o anúncio do evangelho no mundo atual”, com a visão sobre a justiça social e o capitalismo/neoliberalismo, fixando para a posteridade uma frase que vai ecoar muito tempo: “Esta economia mata”; Laudato Si (LS), “sobre o cuidado da casa comum”; e Fratelli Tutti (FT), “sobre a fraternidade e a amizade social”, onde realça as ameaças ao exercício político, como os nacionalismos.

    Na encíclica Fratelli Tutti, o Papa conjuga a palavra “política” cerca de 70 vezes, afirmando que a política se torna “cada vez mais frágil perante os poderes económicos” (FT, 12). Os ideais são ferramentas para construir identidades e pontes, em contraponto às absolutizações ideológicas, que segregam o diferente e impedem o diálogo, ou às “ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira” (EG, 56). Considera o Papa que o “mercado, por si só, não resolve tudo” (FT, 168). A pandemia revelou “a fragilidade dos sistemas mundiais” e “evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”. É evidente a denúncia da teoria neoliberal dos mercados de regulação mínima, transformada em dogma de fé. Francisco preconiza a reabilitação da política imune às “receitas dogmáticas da teoria económica”, preservando “o direito de controlo dos estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum” (EG, 56) e garantindo uma economia promotora de “diversificação produtiva” (LS, 129), com “criatividade empresarial”, sustentabilidade ambiental, aumentando postos de trabalho em vez de os cortar. Há um bom combate. É aquele que investe “para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar” (EG, 209), e “não apenas para assegurar as suas necessidades básicas” (FT, 110). A fasquia definidora do humanismo é esta defesa dos mais frágeis, que “requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil” (FT, 108). O Papa exemplifica: “Alguns nascem em famílias com boas condições económicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão de um Estado ativo, e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará de uma palavra romântica” (FT, 109). O Papa que rejeita a absolutização dos mercados critica também algumas “ideologias de esquerda ou pensamentos sociais” que acabam por cultivar “hábitos individualistas e procedimentos ineficazes, porque beneficiam a poucos” (FT, 165). As tentativas de colar o Papa a representações políticas como “esquerda” ou “direita” são por isso redutoras.

    Em novembro de 2021, em modo online, devido à pandemia de COVID-19, realizou-se o primeiro encontro de jovens A Economia de Francisco. No final, os participantes, em representação de 120 países, apresentaram um compromisso na defesa do trabalho digno, do respeito pelos pobres, do investimento na educação, sustentabilidade e igualdade de oportunidades, defendendo que os paraísos fiscais “sejam imediatamente abolidos […] porque esse dinheiro é subtraído do nosso presente e futuro”. Os participantes reclamaram um novo pacto fiscal como resposta à crise. Ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional exigiram uma ajuda concreta para o combate à pobreza. Às empresas e às entidades bancárias sugerem a criação de comités independentes de ética. Aos legisladores propõem uma carta comum que desencoraje escolhas empresariais voltadas apenas para o lucro.

    Já em 2022, nasceu a proposta para uma mudança gradual e global da economia, que, dando corpo à intuição de Francisco – o de Assis e o de Roma –, coloca a fraternidade no centro da ação.

    O cenário de guerra e crise climática impõe a urgência. O planeta aperta os prazos, e as desigualdades soltam a revolta nas ruas. O pacto para um realinhamento de prioridades no exercício das políticas económicas será apenas o início de uma nova dinâmica da DSI, que necessita de resiliência e persistência, mas também de perspicácia e ousadia para não perder o ritmo do mundo.

    Bibliografia

    Autor: Joaquim Franco

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