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  • Escravatura [Dicionário Global]

    Escravatura [Dicionário Global]

    Nascidos no ambiente violento e ameaçador da Natureza, os seres humanos desenvolveram-se e espalharam-se pelo Planeta, através da sua capacidade de se organizar e de impor a sua vontade, quer enfrentando as forças da Natureza quer lutando com os indivíduos da sua própria espécie. Não temos evidência de guerras ou combates entre tribos humanas pré-históricas na Eurásia, mas todas as comunidades que perseveraram como caçadores-recoletores até à época dos Descobrimentos e da Globalização, demonstraram ser belicosas face a outros membros da sua espécie, seus vizinhos, e muitas tinham práticas de escravidão. Ou seja, a tentação de retirar a liberdade a membros da própria espécie e de os reduzir a propriedade de outrem é uma das perfídias congénitas da humanidade.

    A domesticação das plantas e dos animais e a consequente sedentarização revolucionou a relação dos seres humanos com o planeta e o seu próprio modo organizacional – despontaram ajuntamentos de centenas e de milhares de pessoas, em que as hierarquias se acentuaram e a relevância social e política proporcionou poder e riqueza acrescidos a uns à custa de outros. A posse de mantimentos e de gado permitia aumentar os subordinados, recrutar exércitos e atacar os grupos mais fracos. A escravização de seres humanos tornou-se uma prática comum à escala planetária, e, infelizmente, ainda persiste de formas variadas, explícitas ou implícitas, e sempre cruéis, apesar de ser condenada nos fóruns internacionais que regulam formalmente a coexistência dos seres humanos.

    O abuso sobre pessoas fragilizadas não se resume à escravização e esta confunde-se muitas vezes com o trabalho forçado, mas neste texto cingimo-nos às circunstâncias que foram definidas pela ONU ao ratificar a Convenção sobre a Escravatura, assinada em Genebra no ano de 1926: “É o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercitam os atributos do direito de propriedade ou alguns deles. O escravo é, pois, um ser humano (homem, mulher ou criança, e é indiferente o sexo ou a idade) que é juridicamente, em alguns casos consuetudinariamente propriedade de alguém que pode ser igualmente homem, mulher, criança ou instituição, constituindo mais uma parte do seu património” (apud AGUILAR Jiménez, 2023, 14).

    A transformação de seres humanos em propriedade de outros terá começado pela via da guerra, tendo sido o destino de milhares de prisioneiros, fossem guerreiros capturados em combate, fossem as populações dos grupos derrotados. Nas origens da escravização esteve sempre presente um etnocentrismo, na medida em que a coisificação da pessoa atingia sempre “os outros”, os estrangeiros, os que eram de algum modo diferentes, especialmente pela língua, pela religião ou pelos traços da cultura material, independentemente das diferenças ou semelhanças fisionómicas, embora estas pudessem consolidar, naturalmente, tais práticas.

    O estudo das primeiras civilizações sedentárias mostra-nos que os grandes impérios agrários tendiam a capturar e escravizar as populações nómadas, e tecnologicamente menos sofisticadas, que viviam em seu redor, quase sempre definidas como “bárbaras”; no entanto, esses mesmos nómadas, quando se confederavam em grupos numerosos, eram capazes de atacar e devastar aldeias e cidades, pilhando os bens que podiam ser transportados e cativando pessoas, que eram escravizadas para seu próprio uso, ou eram depois vendidas a outras civilizações sedentárias, como sucedeu com os gregos, que não tinham uma política expansionista, mas adquiriam escravizados a povos guerreiros; muitos desses cativados pertenciam aos povos eslavos, o que veio a originar o termo que se vulgarizou mundialmente e que entrou no nosso vocabulário através da palavra grega sklábos, que deriva de sklábenos, palavra que designava as populações eslavas. No século III a.C., os escravos dessa origem étnica já eram numerosos no seio da República Romana.

    Sendo, pois, uma perfídia congénita da humanidade, a escravatura logo foi notada quando a escrita foi inventada; é mencionada, por exemplo, no código de Hamurabi (1772 a.C), e denota desde logo a tensão e até a rejeição que a escravatura gerava nas sociedades, pois estava prevista a punição, que seria atribuída a quem escondesse um escravo fugitivo e que poderia levar à aplicação da pena de morte. Além disso, mostra que já nesse tempo era possível uma pessoa ser reduzida à escravidão temporariamente, por dívidas.

    Também a Bíblia nos dá conta de que o grupo que deixou Ur em busca da terra prometida era escravocrata, pois Sara, mulher Abraão, começou por resolver a sua esterilidade, ordenando à sua escrava Agar que se deitasse com o seu marido para que este procriasse nela. Neste episódio, Agar é um ser desprovido de liberdade, pois a sua dona pôde dispor livremente do seu corpo. E como depois Sara engravidou e deu à luz Isaac, a escrava acaba por ser deixada para trás com o seu filho Ismael, como se fosse um lixo de que a comunidade tinha de se livrar (cf. Gn 16-21).

    Nesses tempos remotos, os escravos estão associados ao trabalho manual pesado, à representatividade dos grandes senhores e ao sexo, pois desde cedo os grandes reis dispuseram de haréns, compostos por um número significativo de mulheres que eram apenas sua propriedade, prática que está atestada quer na Ásia, quer em África, até à Era Moderna, além de que inúmeras escravas alimentaram bordéis para uso de gente de todos os meios sociais, o que persiste infelizmente nos nossos dias. Na Antiguidade, os escravos também podiam ser usados para a recreação da população, como sucedeu com os gladiadores, no império romano. Eram, pois, indignidades variadas, que cedo despertaram a crítica de indivíduos conscienciosos, o que levou a que já na Grécia Antiga se tivesse articulado um discurso justificativo da ignomínia. Nos poemas homéricos, o escravo justifica-se pela força do destino, ou seja, pela vontade dos deuses, e Aristóteles, por exemplo, defendia que uma família completa – uma Casa – era composta por seres livres e por escravos (AGUILAR JIMÉNEZ, 2023, 43 e 48).

    Tanto quanto se percebe, no caso das civilizações sedentárias, a libertação do escravizado sempre foi possível, o que demonstra que nenhuma das razões que levavam à privação da liberdade era permanente e reforça a perceção do carácter arbitrário, fortuito e malévolo desta prática. Com efeito, em regra, um simples ato administrativo podia transformar um escravizado numa pessoa livre, que passava a conviver em pé de igualdade jurídico com os demais indivíduos, no caso das sociedades europeias. O mesmo não sucedia tão claramente no mundo islâmico, onde os senhores logravam manter o controlo dos seus libertos (cf. ENNAJI, 2013, 19); no entanto, também é certo que nas sociedades islamitas alguns escravos se tornavam altos dignatários e podiam atingir lugares de topo no comando militar, ou chegar mesmo a serem ministros que serviam diretamente o sultão.

    A escravatura é detetável em quase todas as sociedades humanas com escrita da Antiguidade, o que se compreende pelo simples facto de todas serem belicistas e de adquirirem regularmente prisioneiros de guerra, mas algumas sociedades tornaram-se dependentes da mão-de-obra escravizada para o próprio funcionamento da economia e, nesse caso, estamos a falar de sociedades escravocratas, conceito que se aplica indiscutivelmente às sociedades greco-romanas e, mais tarde, a algumas colónias europeias no continente americano. Como explica Cristóbal Aguilar Jiménez, uma sociedade escravocrata “mantém uma indústria e comércio perfeitamente organizado para a renovação contínua da população escrava” e a “escravatura como instituição, necessita de uma legislação clara sobre a propriedade, o comércio, os trabalhos, a manutenção, sua família e descendência, sobre os castigos, etc.” (AGUILAR JIMÉNEZ, 2023, 34). As sociedades do mundo islâmico, desenvolvidas na Arábia, na Mesopotâmia, no planalto iraniano e na bacia do Indo, na segunda metade do primeiro milénio, e a sua extensão para a Índia, a partir do século XI, também se podem caracterizar como sendo sociedades escravocratas, que usavam não só prisioneiros de guerra, nomeadamente cristãos, mas também recorriam sistematicamente ao trato negreiro a partir dos portos da África Oriental. Sabe-se que foram transportados milhões de africanos para a Ásia, tal como sucedeu depois no Atlântico em direção à América num período mais curto. No entanto, essa migração forçada massiva não deixou o mesmo rasto étnico que perdura na América, porque uma parte significativa desses escravizados eram destinados à guerra, além de que a maior parte dos homens eram castrados e os filhos das mulheres remetidas para os serralhos, em regra, eram eliminados à nascença. Sem uma evidência que nos recorde o trato hediondo, as rotas negreiras saídas da África Oriental têm sido negligenciadas pela historiografia, que, preguiçosamente, se contenta com o estudo do trato atlântico, muito mais fácil de estudar, seja do ponto de vista arquivístico, seja igualmente do ponto de vista ético e moral, pois o mundo ocidental assume e condena o seu passado escravocrata enquanto o mundo islâmico oculta a documentação, omite os factos e tende até a negá-los.

    No resto da Ásia, a escravização de indivíduos fazia parte do quotidiano, mas não gerou, em regra, sociedades semelhantes. Quando os portugueses chegaram ao oceano Índico integraram-se nesse sistema, em que qualquer pessoa podia ser capturada, mais ou menos discretamente, e levada para um outro país, onde era vendida e escravizada e se perdia num contexto linguístico, religioso e civilizacional muito distinto do seu. Os próprios portugueses alimentaram um negócio assim a partir do Japão, colocando nos circuitos asiáticos homens e mulheres que eram raptados ou mesmo vendidos por familiares. Eram destinados, sobretudo, ao serviço doméstico e alguns chegaram a Portugal.

    Inicialmente, a cristianização do mundo romano e depois dos germanos não alterou o modo como a sociedade incorporava a escravatura e, no século VIII, por exemplo, os venezianos vendiam inclusive cristãos como escravos nos mercados do Norte de África, já controlados pelos muçulmanos. Quando a Igreja logrou impor a proibição de cristãos terem escravizados cristãos, os pagãos do Leste da Europa voltaram a ser capturados em massa, tal como já eram então os africanos negros, que alimentavam as referidas rotas esclavagistas dos muçulmanos.

    No final do século VIII, os povos nórdicos lançaram-se numa ofensiva predadora sobre a cristandade, enquanto exploravam os confins do oceano, tendo então iniciado o povoamento das ilhas Faroé e da Islândia. Em Reiquejavique, os museus recordam que a ilha foi povoada por nórdicos e pelos seus escravizados, sobretudo mulheres de origem irlandesa. A escravidão tornava-se numa das chaves para o povoamento insular, o que se viria a repetir nos séculos XV e XVI, quando os portugueses povoaram os arquipélagos desertos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe; os cativos eram igualmente incorporados nas sociedades nórdicas. O comércio de escravizados foi uma das actividades mercantis mais lucrativas dos vikings, e Dublin, por exemplo, começou por ser um entreposto de escravos. Quando se converteram ao cristianismo, ao longo do século XI, os vikings abandonaram o negócio e respeitaram a norma cristã que impedia os cristãos de terem escravizados batizados.

    Ainda assim, além de encontrarmos na documentação diferentes termos que apontam para situações de subordinação absoluta ou quase (cf. ROTMAN, 2009, 82-83), a cristandade medieval conservou quase incólume o conceito de escravidão através dos servos da gleba. Embora fossem formalmente pessoas livres, estes indivíduos estavam ligados obrigatoriamente a um território e faziam parte dos seus ativos económicos. Os senhores da terra não os podiam vender, mas eles também não podiam partir, e mudavam de senhor se a terra mudasse de dono; grande parte do seu trabalho era feito a favor do senhor, estavam sujeitos aos seus caprichos e até a práticas humilhantes, como o direito de pernada, que permitia o senhor deitar-se com as noivas, em particular, e, na verdade, com as mulheres do seu território, em geral, como se fossem sua propriedade. Podemos dizer que a servidão da gleba, em certa medida, foi uma das formas de cristianizar a escravidão, mas é possível que muitos escravos de ganho, de que falarei a seguir, tenham sido mais livres do que a maioria dos servos da gleba. Para estes servos, a liberdade era alcançada quando logravam fugir para as vilas e cidades, correndo o risco de sofrerem penas severas, caso fossem capturados, e ganhavam aí um novo estatuto.

    No início do século XV, continuava a haver pessoas escravizadas em todos os continentes, e as principais redes mercantis colocavam africanos na Ásia e na Europa pela mão de comerciantes muçulmanos. Milhares de pessoas eram capturadas no interior de África por outros africanos e os mercadores islamitas adquiriam-nos nas ilhas ao longo da costa oriental africana ou na periferia do Saara. O trato afro-asiático era naturalmente muito mais denso, pois o oceano Índico era muito mais prático para o transporte do que o deserto e porque os consumidores asiáticos tinham uma maior capacidade de absorver os infelizes que chegavam aos seus mercados do que os europeus. Com o início das navegações atlânticas dos portugueses e o começo da era dos Descobrimentos, despontaram novos circuitos escravocratas, assentes nos mesmos pressupostos dos negócios que estavam em curso – a capacidade de os próprios africanos disponibilizarem cativos, obtidos pelo ataque a grupos inimigos, e a elasticidade inicial do mercado ibérico; quando o mercado peninsular deu mostras de saturação, no início do século XVI, D. Manuel I chegou a dar ordens para reduzir o negócio, mas, pouco depois, as colónias castelhanas no Novo Mundo tornaram-se num enorme sorvedouro de escravizados, ganhando a companhia do Brasil a partir do último quartel do século XVI.

    Os primeiros cativados pelos portugueses eram muçulmanos, capturados diretamente pelos navegadores em pequenas aldeias da costa atlântica saariana, numa repetição das investidas que cristãos e muçulmanos realizavam mutuamente e que levou igualmente muitos portugueses para os mercados de escravos dos portos do Norte de África. A regularidade da guerra e a intransigência civilizacional de pessoas que apodavam os outros de infiéis não impedia que vozes críticas soassem ocasionalmente. Gomes Eanes de Zurara, o cronista das primeiras navegações, deixou-nos um relato pungente acerca da primeira partição e escravização de cativos vindos da costa saariana, em que deixou bem claro o seu incómodo pelo triste acontecimento que narrava e a que terá assistido: “Ó tu celestial Padre […] eu te rogo que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha que chore piedosamente o seu padecimento. E se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto conhecem os danos das suas semelhantes, que queres que faça esta minha humanal natureza, vendo assim ante os meus olhos aquesta miserável companha, lembrando-me que são da geração dos filhos de Adão” (cf. ZURARA, 2018, cap. XXV).

    A dureza dos corações, porém, sobrepunha-se e o negócio cresceu. Navegando para sul do Saara, os portugueses encontraram populações muito mais aguerridas e mais possantes, sabedoras da guerra num ambiente florestal, e os primeiros que desembarcaram foram eliminados num ápice. O caçador virava presa e logo procurou o entendimento. Em 1448, o infante D. Henrique ordenou que o relacionamento com as populações tropicais decorresse sem recurso à guerra, pelo que os negócios passaram a ser realizados nos portos em que europeus e africanos se entendiam e acordavam os termos do jogo das trocas. O negócio dos escravizados floresceu neste ambiente de comércio pacífico e os portugueses limitavam-se a recolher os cativos que lhes eram apresentados pelos seus interlocutores, os chefes que dominavam o “African-controlled system of slave supply”, nas palavras de Paul Lovejoy (LOVEJOY, 2012, 108).

    A procura de cativos pelos europeus cresceu vertiginosamente ao longo dos séculos, tendo atingido o ponto culminante no século XVIII, e durante todo este tempo os fornecedores africanos corresponderam eficazmente a esse crescimento, conseguindo satisfazer sempre a procura vinda do mar, pelas razias que realizavam terra adentro. Este negócio, à luz dos interesses dos estados africanos marítimos, enriquecia-os e enfraquecia de sobremaneira os povos limítrofes, tendo possibilitado a solidez de diversos reinos durante séculos. Sintomaticamente, quando a consciência abolicionista começou a ter impacto nas compras, logo reis como o do Daomé enviaram embaixadas, por exemplo, ao Rio de Janeiro, pedindo a D. João VI que não afrouxasse o comércio.

    O facto de os escravos serem batizados não os livrou da escravidão; neste caso, a origem não europeia foi um fator determinante para que não fossem respeitadas as determinações anteriores da Igreja. Na documentação do século XV, as referências a escravos tanto podem assinalar indivíduos de origem magrebina como de origem afro-tropical, alguns originalmente islamizados, outros de religião animista. Muitos foram usados em tarefas domésticas e envolvidos num ambiente familiar, que proporcionou casos frequentes de alforria à morte do seu senhor, e outros foram integrados na lavoura. Logo no século XV, nomeadamente nas vereações do Funchal, surgem referências a “escravos de ganho”; tratava-se de homens e mulheres que viviam de serviços prestados a outrem e que tinham a obrigação de entregar uma determinada quantia periódica ao seu senhor, podendo guardar o remanescente. Nalgumas situações, nem viviam com os seus proprietários; muitos lograram ganhar dinheiro suficiente para comprar a sua própria alforria e desfrutavam, em regra, de uma liberdade considerável; ao contrário do que se passava na Ásia, podiam constituir família. Este sistema estendeu-se às Índias de Castela.

    A maior parte dos escravizados que atravessaram o Atlântico, porém, foram canalizados para trabalho braçal violento, uns nas plantações de açúcar, e depois também de algodão, outros nas minas. Esta migração forçada, ciclópica, de mais de 12 milhões de seres humanos em cerca de 400 anos é a memória mais viva da escravidão que perdura no imaginário da sociedade global de hoje, e é na vida dantesca dos escravos das plantações, celebrizados em romances como A Cabana do Pai Tomás (1852), que a maior parte das pessoas resume o conceito de escravidão. Esta memória corresponde a uma visão distorcida relativamente ao fenómeno global da escravidão, mas é veiculada, compreensivelmente, pelos milhões de descendentes desses escravos, que continuam a viver no continente americano e que, na sua grande maioria, continuaram a ser discriminados e a ser vítimas de racismo. De facto, depois da abolição da escravatura, as comunidades negras na América continuaram a ser segregadas e a viver fechadas sobre si próprias, até na celebração da vida religiosa, o que deu origem, por exemplo, aos espirituais negros, fenómeno musical inexistente na Europa.

    Em Portugal, as gerações afrodescendentes que agora emergem como netos e bisnetos dos emigrantes que começaram a chegar ao país por meados do século XX, procuram reivindicar uma herança semelhante, mas trata-se, neste caso, de um mero aproveitamento ideológico ou de uma importação de problemas sociais alienígenas. Em Portugal, a escravatura foi abolida pelo Marquês de Pombal, em 1761, e os escravizados então libertados, mais os alforriados e libertos de várias gerações, misturaram-se naturalmente na população e estavam diluídos nos traços étnicos maioritários no final do século XIX. Na verdade, qualquer português cujos antepassados já viviam no país no século XIX pode ser descendente dos escravizados que aqui foram desembarcados entre o século XV e o XVIII.

    A intensidade do trato e a visibilidade que perdura no continente americano de comunidades afrodescendentes social e economicamente desfavorecidas mantém vivo o debate sobre a indignidade da escravidão, mas o uso e abuso desta realidade específica e da sua memória por grupos ideológicos tende a criar uma imagem falsa em que se toma a nuvem por Juno, pois a ignomínia da escravidão é uma infâmia da humanidade, detetável em quase todas as sociedades sedentárias, de que todos foram protagonistas e de que todos foram vítimas. E enquanto se debate de um modo muitas vezes distorcido a História, no Presente milhões de indivíduos continuam a ser escravizados.

    Bibliografia

    AGUILAR JIMÉNEZ, C. (2023). Historia Ideológica de la Esclavitud. Filosofia, Religión y Derecho ante la Esclavitud. Córdova: Sekotia.

    CALDEIRA, A. (2017). Escravos em Portugal. Das Origens ao Século XIX. Lisboa: Esfera dos Livros.

    ENNAJI, M. (2013). Slavery, the State and Islam. Cambridge: Cambridge University Press.

    LOVEJOY, P. (2012). Transformations in Slavery. A History of Slavery in Africa. (3.ª ed.) Cambridge: Cambridge University Press.

    ROTMAN, Y. (2009). Byzantine Slavery and the Mediterranean World. Cambridge: Harvard University Press.

    ZURARA, G. E. (2018). Crónica da Guiné. In J. P. Oliveira e Costa et al. (coord.). Primeiros Relatos de Viagens e Descobrimento – Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. Dir. J. E. Franco & C. Fiolhais. Lisboa: Círculo de Leitores.

    Autor: João Paulo Oliveira e Costa

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