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    Estado Social [Dicionário Global]

    Estado Social é um conceito de índole normativa, que constitucionaliza as obrigações do Estado em matéria de política social e económica, sendo comum a sua elevação a princípio constitucional – princípio do Estado Social ou princípio da socialidade. No pensamento de Hegel, tido como um dos autores alemães que nuclearmente contribuiu para a perceção do Estado Social, o Estado assume um papel de proteção dos pobres (HEGEL, 1997, 216), numa construção que se encontra ainda naquele que é o “núcleo duro” do Estado Social, sem prejuízo das demais e ricas densificações decorrentes de distintas áreas do conhecimento (Direito, Filosofia, Economia), cuja consideração se mostra incompatível com a brevidade de termos que daqui se espera. Perante a dimensão dogmática que o Estado Social comporta, este “apontamento” sempre pecará pela respetiva ligeireza, mas, ainda assim, procurar-se-á identificar os aspetos que, no nosso entender, lhe são centrais.

    Foi em 1949 que a fórmula Estado Social conheceu consagração na Grundgesetz. É, precisamente, o período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial que assinala o marco histórico da conversão qualitativa do antigo Estado liberal num Estado Social. Na transição de um modelo liberal para um modelo social assistiu-se a uma mudança de paradigma constitucional, motivada por um elemento antropocêntrico, que eleva a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental, e por um elemento social, através do qual o princípio do Estado Social é elevado a princípio constitucional. O acolhimento desta conceção na Constituição alemã terá servido para potenciar a respetiva difusão e a sua densificação dogmática. Na Lei Fundamental portuguesa, a transição para um modelo de Estado Social também é evidente.

    O princípio da socialidade é, não obstante, uma “fórmula plástica” no ordenamento português, não encontrando uma receção textual expressa na Constituição da República Portuguesa (CRP), pelo que, em bom rigor, a referência deveria ser feita ao princípio da democracia económica, social e cultural, à luz do disposto no art. 2.º da Constituição (CANOTILHO, 2018, 335). A democracia económica, social e cultural é assumida como um fim do Estado, tal como resulta dos arts. 9.º, 80.º e 81.º da Constituição, servindo de mandato constitucional juridicamente vinculativo, particularmente dirigido ao exercício do poder legislativo, limitando a respetiva discricionariedade (apesar de também se reportar à atuação administrativa – surgindo a Administração pública como destinatária complementar e compensadora, a título subsidiário, dos défices de concretização do legislador, na implementação das imposições de bem-estar – e à atuação jurisdicional –, cabendo aos Tribunais, desde logo, o controlo da constitucionalidade).

    Apesar da questionável qualificação jurídica atribuível, sempre se dirá que a densificação do Estado Social parte, essencialmente, do reconhecimento do bem-estar como um elemento estruturante de um Estado. O bem-estar emerge por via do Estado (Welfare State) e encontra o seu fundamento último na dignidade da pessoa humana, encontrando uma conexão evidente com o princípio da igualdade. Nesta conceção, é o Estado que deve procurar atenuar as diferenças reais entre as pessoas, atendendo a quem vive em situações de maior carência, não podendo deixar desprotegidos os seus cidadãos e devendo promover a igualdade de oportunidades entre todos. Enfim, promovendo e protegendo a justiça social.

    O Estado Social, nos termos em que se encontra consagrado na CRP, poderá ser reconduzido à Doutrina Social da Igreja, ao remontar à Constituição de 1933 aquela ligação entre a dignidade da pessoa humana e o bem-estar, que encontra nas cartas encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931), num primeiro momento, e nas cartas encíclicas Mater et Magsitra (1961) e Pacem in Terris (1963), o seu fundamento último. Assim sendo, o princípio da socialidade dá resposta “de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana” (OTERO, 2017, 100).

    Numa expressão mais ligeira, o Estado Social surge associado às expressões “Estado Zorro” ou “Estado Robin dos Bosques”, enquanto Estado que tira aos ricos para dar aos pobres, protegendo os fracos, as minorias, os deserdados, as vítimas atuais ou potenciais de um desenvolvimento desordenado.

    De qualquer forma, a CRP não deixa de ter sido construída, historicamente, na base do liberalismo do século XIX, tendo servido de depósito de influências diversas, e é por essa via que encontramos nela, hoje, a presença de dimensões reportadas ao Estado liberal. Foi precisamente com o modelo de Estado liberal, e no quadro de uma filosofia assente na não intervenção dos poderes públicos na vida da sociedade, que surgiu a primeira geração dos direitos fundamentais, que inclui as liberdades individuais e os direitos civis e políticos, através dos quais se garantia a proteção dos indivíduos contra o Estado e se obrigava à abstenção dos poderes públicos na esfera das pessoas. Esta é ainda uma dimensão que não deixou de estar presente na Constituição de 1976, na qual se identifica um conjunto de direitos clássicos, de base liberal, como a vida (art. 24.º), a integridade pessoal (art. 25.º), a liberdade e a segurança (art. 27.º), garantias do processo criminal (arts. 28.º a 33.º), inviolabilidade do domicílio e da correspondência (art. 34.º), liberdade de expressão e informação (art. 37.º), liberdade de imprensa (art. 38º), liberdade de consciência, de religião e de culto (art. 41.º), direito de reunião e manifestação (art. 45.º), liberdade de associação (arts. 46.º e 51.º), direito de sufrágio (art. 49.º) ou propriedade privada (art. 62.º).

    Já o Estado Social assume uma dimensão prestadora, chamando a si a realização de tarefas nos domínios económicos, sociais e culturais. Trouxe consigo a segunda geração de direitos fundamentais, correspondente aos direitos económicos, sociais e culturais, tratando-se de assegurar a proteção dos indivíduos através da atuação do Estado, realizada sobretudo através da função administrativa. Direitos reveladores deste modelo, na atual CRP, entre muitos outros, serão o direito ao trabalho (art. 58.º), à segurança social (art. 63.º), à saúde (art. 64.º), à habitação (art. 65.º), ou garantias relativas à família (art. 67.º), paternidade e maternidade (art. 68.º), infância (art. 69.º), juventude (art. 70.º), terceira idade (art. 71.º), educação, ensino e cultura (arts. 73.º a 79.º). O Estado Social implica, portanto, o reconhecimento de necessidades coletivas, cuja satisfação se torna uma vinculação constitucional para o Estado e que se encontra titulada pela existência de um direito fundamental dos particulares a obter do Estado uma determinada prestação ou bem. A CRP nega ao Estado – neste sentido, claramente intervencionista – qualquer poder de optar entre implementar ou não o bem-estar ou de o fazer sem respeito pelos parâmetros constitucionais.

    Na CRP é possível também encontrar reflexos de um Estado pós-social, no quadro de uma lógica constitutiva e infraestrutural, dirigida para a criação de condições para a colaboração de entidades públicas e privadas. O Estado pós-social está associado a uma terceira geração de direitos fundamentais em novos domínios da vida em sociedade, como é o caso do ambiente e da qualidade de vida, da proteção individual relativamente à informática e às tecnologias ou a genética, sendo ainda de incluir nestas categorias as garantias individuais de procedimento (que asseguram a proteção jurídica subjetiva). Direito típicos de uma estrutura pós-social, presentes na CRP, são o direito ao ambiente, à qualidade de vida e ao património cultural (art. 66.º), acesso e proteção dos dados informáticos (art. 35.º), identidade genética (art. 26.º, n.º 3) ou direitos dos consumidores (art. 60.º), bem como os direitos à audiência prévia, fundamentação, notificação ou impugnação jurisdicional de atos administrativos (arts. 267.º, n.º 5, e 268.º).

    Aliás, o carácter intervencionista do Estado não é, ainda assim, incompatível com um modelo económico baseado no mercado e no princípio da liberdade dos seus agentes. A cláusula de bem-estar humaniza a economia de mercado, vinculando a livre iniciativa ao progresso social, permitindo falar em “economia social de mercado” ou em “economia mista de bem-estar”. Aliás, o princípio da dignidade da pessoa humana, se constitui fundamento da cláusula de bem-estar, também introduz um limite ao próprio bem-estar como tarefa do Estado, já que comporta uma limitação a um modelo de intervenção pública exorbitante sobre a esfera da sociedade civil: o respeito pela dignidade humana fundamenta uma regra de subsidiariedade ou supletividade na ação do Estado. Daí que, sem embargo da responsabilidade última do Estado pela efetivação do bem-estar, a verdade é que a cláusula constitucional de bem-estar não exclui um modelo de satisfação concorrente de necessidades coletivas entre iniciativa pública e iniciativa privada, podendo mesmo envolver a adoção de uma postura de pura subsidiariedade da intervenção do Estado. Nestes termos, o conceito de Estado Social não deve ser refém de nenhuma conceção ideológica ou política. No essencial, o Estado Social surge como resultado da verificação de que o Estado tem responsabilidades ao nível da garantia de um mínimo de bem-estar, a partir do momento em que intervém na sociedade, sendo identificadas situações de reserva a favor do Estado, excluindo-se qualquer intervenção privada na garantia de tais sectores de bem-estar social (por exemplo, subsídios de desemprego, comparticipação financeira em medicamentos, nacionalização de sectores) e situações de concorrência entre o Estado e a iniciativa económica privada (por exemplo, ensino, saúde, habitação, criação de empregos) (OTERO, 2017, 102).

    O último quartel do século XX, apesar dos notáveis progressos económicos, sociais e tecnológicos registados, testemunhou uma eclosão da “crise do Estado Social”, que se caracterizou pela incapacidade de o Estado promover, no todo ou em parte, o bem-estar social. Muito provavelmente, o excesso de intervencionismo público, a par de crises financeiras e económicas, em cenários de escassez e de exigências de racionamento, desembocaram naquilo a que, num jogo de palavras, se tem apelidado de “Estado de mal-estar”, no sentido em que o Estado deixa de ser capaz de garantir, nos mesmos termos e com a mesma intensidade, prestações sociais. No limite, poder-se-á entender que o Estado Social, tal como o conhecíamos, encontra-se num “processo de auto-dissolução” (LUHMANN, 1993, 31), apesar de, em termos mais equilibrados, também se poder assumir a respetiva continuidade, perante a inexistência de retrocesso ao patamar mínimo de justiça social oferecido pelo Estado liberal (GOMES, 2010, 24).

    Numa outra perspetiva, a redução do nível de intervenção do Estado poder-se-á também ficar a dever a outros quadrantes, enquadráveis numa outra perspetiva: a globalização, o aumento da esperança de vida, a própria diversidade cultural, o aumento dos níveis de formação académica, as novas estruturas familiares, o assumir de novos riscos por parte dos indivíduos, entre outros fatores que integram a realidade constitucional e que são fruto de pulsares mais recentes, potenciam o afastamento do Estado. Porém, “haverá sempre Estado” (CANOTILHO, 2017), e ainda que o Estado Social tenha sofrido alterações na forma como se concretiza, dele não nos despedimos.

    De qualquer forma, é inegável a constatação de que a eficácia dos direitos sociais está dependente das condições da própria realidade, tais como os recursos disponíveis e a organização e o funcionamento administrativos. Todos os direitos fundamentais, no seu conjunto, implicam custos para um Estado verdadeiramente empenhado na sua proteção e promoção. Quer os direitos, liberdades e garantias, quer os direitos económicos, sociais e culturais, pressupõem a assunção de custos financeiros públicos, comportando implicações orçamentais. Daí que a concretização dos imperativos de bem-estar parta de critérios de economicidade, racionalidade, eficiência. Aliás, a otimização na decisão torna-se um dever constitucional do legislador e da Administração pública: a promoção do bem-estar não deve ser desligada da “qualidade de vida do povo” (art. 9.º, alínea d), da CRP), envolvendo, esta última, uma ponderação qualitativa do grau de bem-estar.

    É, precisamente, neste âmbito que surge a “teoria da irreversibilidade” ou da “proibição do retrocesso social”. Em contextos de crise, de um Estado “concretizador” dos direitos sociais, transita-se para um modelo de Estado “desconcretizador”, que se vê confrontado com a necessidade de rever os níveis de proteção social anteriormente prestados. Em Portugal, o princípio da proibição do retrocesso social, que nunca foi dogmaticamente apresentado com suficiente precisão, assentaria em vários princípios ínsitos ao Estado de Direito: no princípio da proteção da confiança (art. 2.º da CRP); no princípio da igualdade, em especial na vertente da proibição da discriminação (art. 13.º da CRP); e no princípio da proporcionalidade (n.º 2 do art. 18.º da CRP). É o acórdão n.º 509/02, do Tribunal Constitucional, que serve como ponto de partida a este propósito, dali decorrendo o rejeitar da ideia de uma proibição geral de retrocesso social e o encontrar de uma via média com a ineficácia normativa dos direitos sociais. Na decisão pode ler-se que o legislador “goza de uma larga margem de liberdade conformadora, podendo decidir ‘quanto aos instrumentos e ao montante do auxílio’, sem prejuízo de dever assegurar sempre o ‘mínimo indispensável’. Essa é uma decorrência do princípio democrático, que supõe a possibilidade de escolhas e de opções que [deem] significado ao pluralismo e à alternância democrática, embora no quadro das balizas constitucionalmente fixadas, devendo aqui harmonizar-se os pilares em que, nos termos do artigo 1.º da Constituição, se baseia a República Portuguesa: por um lado, a dignidade da pessoa humana e, por outro lado, a vontade popular expressa nas eleições”.

    A reserva do financeiramente possível é tida como característica imanente dos direitos sociais. Neste sentido, o argumento financeiro pode funcionar como justificação para restringir o direito, mas será necessário determinar se a medida da limitação se conforma ou não com os princípios estruturantes, o que segue a lógica típica no domínio dos direitos fundamentais. A questão a colocar é de se saber qual será o motivo da limitação do direito, sendo a justificação financeira tida como válida para esse efeito: se se vive numa situação de insuficiência financeira, o Estado não pode garantir um direito fundamental da mesma forma que um Estado que não se encontra na mesma situação é capaz de o fazer. Mas, saliente-se, não significa isto que o direito fica nas mãos do legislador ordinário. O legislador ordinário está vinculado ao respeito pelos princípios estruturantes. Só assim se concede prevalência inequívoca aos direitos fundamentais sobre meras considerações de oportunidade política.

    De resto, a consideração do Estado Social não pode descurar a abertura internacional e europeia do Direito Constitucional. Sucintamente, e do ponto de vista da normação, um lugar fundamental cabe ao Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, perante a afirmação internacional de direitos económicos, sociais e culturais que se traduzem, desde logo, num conjunto de obrigações a cargo dos Estados Parte. Repare-se que este Pacto, juntamente com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, pretendeu dar efetividade à Declaração Universal dos Direitos do Homem. No âmbito europeu, surgiu a Carta Social Europeia (revista, em 1996) e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que, sendo fundamentalmente um documento centrado nos clássicos direitos de liberdade, acaba por ter reflexos na conformação, ao nível nacional, do Estado Social.

    Bibliografia

    BOTELHO, C. S. (2015). “Os direitos sociais num contexto de austeridade: Um elogio fúnebre ao princípio da proibição do retrocesso social?”. Revista da Ordem dos Advogados, 75 (1), 259-293.

    CANOTILHO, J. J. G. (2017). “Brancosos” e Interconstitucionalidade. Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra: Almedina.

    GOMES, C. A. (2010). “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: Algumas verdades inconvenientes”. Revista FDUP, 7, 19-34.

    HEGEL, G. W. F. (1997). Princípios da Filosofia do Direito. Trad. O. Vitorino. São Paulo: Martins Fontes.

    LOUREIRO, J. C. (2007). “Adeus ao Estado Social? O insustentável peso do não ter”. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, LXXXIII, 99-182.

    OTERO, P. (2010). Direito Constitucional Português. (vol. I). Coimbra: Almedina.

    Autora: Andreia Barbosa

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