Família [Dicionário Global]
Família [Dicionário Global]
Como grupo social, a família é, nas modernas sociedades industriais, a “pequena família” ou “família nuclear”, ou seja, normalmente, a família conjugal, constituída pelos cônjuges e filhos menores de idade. Além disso, a composição da “família conjugal” é, muitas vezes, mais ampla: os filhos continuam a viver com os pais, mesmo depois da maioridade, a família pode integrar os pais ou os sogros … A “pequena família” apresenta-se outras vezes num registo de monoparentalidade (por exemplo, o cônjuge viúvo e os filhos, a mãe solteira e o filho…). A “grande família”, característica da economia agrária, constitui um tipo familiar praticamente desaparecido na Europa.
Por outro lado, a evolução da família demonstra que ela tem perdido algumas das suas funções tradicionais. Perdeu a função política que tinha no Direito Romano, assente na ideia de subordinação de todos os seus membros ao pater familias. Perdeu a função económica de unidade de produção, embora continue a ser normalmente uma unidade de consumo. As funções educativas, de assistência e de segurança que antigamente pertenciam à família tendem hoje a ser assumidas pela sociedade. A desfuncionalização da família reforçou, porém, a sua intimidade, fazendo com que se revelassem as funções essenciais do grupo familiar: nas relações entre os cônjuges, a sua mútua gratificação afetiva e a socialização dos filhos, ou seja, a transmissão da cultura, como conjunto de normas, valores, modelos de comportamento. Acresce que a conceção do casamento, que, durante muitos séculos, foi visto como uma instituição onde estavam presentes não apenas os cônjuges, mas os interesses das famílias de cada um e onde estes assumiam um papel previamente determinado, começou a sofrer modificações (sociólogos e historiadores da família apontam os anos 70 como o início desta modificação). Os ideais da democratização da família libertaram a mulher do estatuto desigual que assumia no modelo anterior. As condições económicas proporcionaram a saída do lar para o mercado de trabalho e a obtenção de um salário regular; a instrução generalizada permitiu também que as mulheres ocupassem postos cada vez mais altos no sistema produtivo (COELHO & OLIVEIRA, 2016, 118 e ss.): “A abolição do poder marital, da posição do marido como chefe da família e como representante dos filhos menores e das incapacidades da mulher casada significou o triunfo da afectividade e dos laços emocionais em relação à criança sobre a relação de poder entre o pai e os filhos” (SOTTOMAYOR, 2004, 20).
A própria noção de família vai alterando com o tempo. O conceito variará conforme a interpretação de cada um, ainda que existam balizas legais que auxiliem a interpretação “[…] uma definição formal de ‘familiares’ não consegue evitar é que está condenada a envelhecer. De facto, os critérios formais que certificam as relações de Família em certa época acabam por ser pressionados no sentido do seu alargamento pelos movimentos sociais emergentes dos setores excluídos. Em hipóteses conhecidas, as definições formais resistem apenas porque deixam entrar para o seu seio relações jurídicas que começaram por ser ignoradas – assim aconteceu com os casamentos de pessoas do mesmo sexo” (OLIVEIRA, 2020, 6). É clara a evolução que tem ocorrido neste contexto, desafiando o legislador e o intérprete a progredirem e a se adaptarem.
A família é uma realidade essencial à vivência dos seus membros e, por isso, deve receber a devida atenção por parte do Direito: “[O] ser humano, entendido como pessoa, encontra no núcleo familiar o meio fundamental para o integral desenvolvimento da sua personalidade, pelo estabelecimento de laços de amor, confiança, lealdade, partilha. Além disso, é na família e através da família que a pessoa se reconhece a si mesma, que desenvolve as suas potencialidades, que encontra a proteção necessária e os meios para a sua educação e subsistência” (BARBOSA, 2021, 121).
O Código Civil português, no art. 1576.º, apresenta como relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção. Estas seriam, portanto, as fontes das relações familiares, assentando nelas a conceção de família.
Todavia, nas últimas décadas começaram a assistir-se a movimentos que, quer em Portugal quer no domínio jurídico europeu, admitiam outras formas de família. Aqui poderíamos falar das famílias de facto (assentes numa união de facto ou numa relação não-matrimonial hetero- ou homossexual), das famílias monoparentais, das famílias recombinadas ou pluriparentais, as famílias e o casamento de transsexuais (o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pronunciou-se já quanto a várias questões que se colocam em relação a todas estas novas formas de família – cf. ALMEIDA, 2008, 155 e ss.).
Entre nós, o art. 36.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) determina que todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.
Ainda que o mesmo artigo possa levantar algumas dúvidas, tem-se entendido que aqui se consagram dois direitos: o de constituir família e o de contrair casamento. Ao distinguir a família do casamento, pretendeu o legislador demonstrar que se trata de realidades diversas. Ao lado da família conjugal, assente no casamento, há lugar para a família natural, resultante do facto biológico da geração, e para a família adotiva. O direito a constituir família não está, assim, vedado a quem não pretenda contrair casamento, sendo este apenas uma das formas de família. Não se consagra um direito a contrair casamento e, através dessa celebração, a constituição da família (como parece decorrer do art. 16.º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do art. 12.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).
Mas, qual é o significado e a amplitude da instituição família? Pode incluir-se nessa noção a união de facto, a que a lei n.º 7/2001, de 11 de maio, atribui efeitos jurídicos de alcance bem mais relevante do que a lei atribui, por exemplo, à afinidade? (CORTE-REAL, 2008, 14).
O problema é que a CRP não define o que seja a família e o entendimento de alguns autores parte da tipificação das relações jurídicas familiares previstas no Código Civil. Ora, a instituição família garantida constitucionalmente (art. 67.º da CRP) não pode estar sujeita à definição da legislação ordinária, ou seja, é esta que se filia naquela e não o contrário. Por isso, se se considerar que a família constitucionalmente protegida não é apenas aquela definida no Código Civil, poderemos, no art. 36.º, n.º 1 da CRP, incluir a união de facto como forma de constituir família.
Vejamos esta questão a propósito das convenções internacionais e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) que abrem a porta a novas formas de família. De facto, e por um lado, o TEDH tem feito uma interpretação lata de vida familiar, nela abrangendo não apenas as relações jurídicas familiares tradicionais, mas também as relações familiares de facto. Por outro lado, os conceitos de vida privada e de vida familiar tendem a esbater-se, dando origem ao conceito de vida privada e familiar, à luz do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
O reconhecimento de um conceito alargado de família e a admissão de novas formas de família, com a proteção dos laços familiares nascidos fora do casamento, conduz ao reconhecimento dos direitos dos pais de facto ou naturais. O art. 8.º da CEDH garante o direito ao respeito pela vida familiar tanto aos pais casados como aos pais de facto.
No caso português, além da união de facto, também o apadrinhamento civil se poderá entender como uma relação jurídico-familiar. O apadrinhamento civil, nos termos previstos na lei n.º 103/2009, de 11 de setembro, prevê uma solução para os jovens e crianças que não podem seguir para a adoção, mas que também não têm uma opção de vida viável junto da família biológica. Sobre o desiderato desta figura: “[o] Apadrinhamento civil propunha-se dar uma família duradoura às crianças em perigo, sem eliminar das suas vidas a família biológica. Os padrinhos/madrinhas, porém, seriam os detentores das responsabilidades parentais, embora pudesse ficar estabelecida uma certa partilha de responsabilidades que conviesse à criança. O Apadrinhamento civil, em resumo, havia de desempenhar a maior parte das funções que se esperam da Família – haviam de promover a socialização, o cuidado e o encargo” (OLIVEIRA, 2020, 15).
A maioria das relações familiares será tendencialmente duradoura e estas merecerão, também por isso, uma proteção legal consentânea com esta condição de “estado” ou modo de vida. A composição da família e dos membros que a ela se agregam vão sofrendo necessárias evoluções face à realidade social (e até política e económica).
A família reúne o carácter de instituição e, como explica Rute Pedro, recuperando a definição de Maurice Hauriou, existem elementos caracterizadores da realidade institucional: “[o]ra, à luz da famosa noção fornecida por M. Hauriou, encontramos refletidos, no regime jurídico do casamento anterior ao marco histórico que supra delineámos, três traços caracterizadores da realidade institucional: a ideia de organização, a de comunhão de interesses que subjaz àquela organização e da permanência no tempo” (PEDRO, 2018, 81).
O interesse público inerente à família e as normas que a regem levam – em certos palcos – a uma prudente limitação do princípio da autonomia privada e da liberdade contratual. Ao mesmo tempo, e sem prejuízo, apura-se uma tendencial privatização do Direito da Família, que se reflete na promoção dos valores afetivos (que são agora a essência da conjugalidade, pois o vínculo conjugal foi subordinado face aos sentimentos e aos afetos), também espelhada na secularização e desinstitucionalização do casamento, na simplificação processual do divórcio (não só a sua simplificação processual, mas a sua desvalorização enquanto fracasso familiar), na desjudicialização dos conflitos familiares, a par da promoção dos meios de resolução alternativa de litígios, etc.
Conforme já aludido, a dita família nuclear – pai, mãe e filhos – que dominava os ideais europeus do século XIX, já não preenche a perceção inequívoca de contexto familiar da maioria dos cidadãos. A diversidade familiar e o surgimento de diferentes famílias (e.g. não matrimonializadas, reconstituídas ou recompostas, alargadas, monoparentais, etc.) leva ao entendimento de que a configuração familiar tem evoluído com o tempo, e daí que já se defenda substituir “família” por “famílias” (VALPUESTA FERNÁNDEZ, 2012, 44).
Sendo a família a primeira linha de resposta, apoio e suporte em caso de necessidade da maioria dos cidadãos, o próprio Estado beneficia com a existência das famílias e deve protegê-las juridicamente: “A família é um conjunto de pessoas que desempenha as funções sociais de base: reprodução biológica, sociabilização, assistência emocional, assistência económica. Em termos de se poder afirmar que uma família ‘eficaz’ poupa à sociedade um psiquiatra, um polícia, um juiz, um guarda prisional, um médico e elevadas despesas de toda a ordem” (CAMPOS, 2001, 45).
A família sempre esteve presente em todas as civilizações e cumpre uma ineludível função socializadora. Cada um será livre de integrar a formulação familiar que entender, devendo estar também consciente das diferentes morfologias jurídicas desta opção (“À chacun sa famille, à chacun son droit”, CARBONNIER,1995, 181).
Bibliografia
ALMEIDA, S. (2008). O Respeito pela Vida (Privada e) Familiar na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: A Tutela das Novas Formas de Família. Coimbra: Coimbra Editora.
BARBOSA, M. M. (2021). Lições de Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Gestlegal.
CAMPOS, D. L. (2001). “A tributação da Família”. In M. C. P. de S. Sottomayor (ed.). Direito da Família e Política Social. Porto: Publicações Universidade Católica.
CARBONNIER, J. (1995). Essais sur les Lois. (2.ª ed.). Paris: Defrénois.
COELHO, F. P. & OLIVEIRA, G. (2016). Curso de Direito da Família. (vol. I : Introdução/ Direito Matrimonial). (5.ª ed.). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
OLIVEIRA, G. (2020). “‘Fique em casa’. Notas para uma taxonomia dos ‘familiares”. Julgar Online, julho. 1-26.
PAMPLONA CÔRTE-REAL, C. (2008). “Da inconstitucionalidade do Código Civil – artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), e disposições conexas – Ao vedar o acesso ao instituto do casamento a casais do mesmo sexo”. In C. Pamplona Côrte-Real et al. O Casamento entre Pessoas do mesmo Sexo (Três Pareceres sobre a Inconstitucionalidade dos Artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil. Coimbra: Almedina.
PEDRO, R. T. (2018). Convenções Matrimoniais, A Autonomia na Conformação dos Efeitos Patrimoniais do Casamento. Coimbra: Almedina.
SOTTOMAYOR, M. C. (2004). Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio. (4.ª ed.). Coimbra: Almedina.
VALPUESTA FERNÁNDEZ, R. (2012). La Disciplina Constitucional de la Familia en la Experiencia Europea. Valencia: Tirant lo Blanch.
Autoras: Cristina Dias
Rossana Martingo Cruz