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    Federalismo [Dicionário Global]

    Introdução

    O federalismo é um sistema político que distribui o poder entre um governo central e unidades subnacionais, como estados ou províncias. Este modelo de organização política e administrativa de um Estado é adotado por muitos países ao redor do mundo, cada um com suas próprias características e nuances. Neste texto, exploraremos os fundamentos do federalismo, seus princípios básicos, suas vantagens e desafios, além de analisar exemplos de federações em diferentes partes do mundo, com especial foco na ideia de federalismo europeu.

    O federalismo é um sistema político complexo e dinâmico, que busca equilibrar o poder entre o governo central e as unidades subnacionais. Embora apresente desafios, como a coordenação intergovernamental e a inconsistência regulatória, o federalismo oferece vantagens significativas, como acomodação da diversidade, participação cívica e inovação política. À medida que o mundo enfrenta novos desafios e demandas, o federalismo continuará a ser um modelo relevante e adaptável para a organização política e administrativa dos Estados.

    História do Federalismo

    A ideia de federalismo remonta à Antiguidade, com exemplos como a Liga de Delos na Grécia Antiga e um sistema de alianças e confederações entre cidades-estado e regiões independentes. Na Grécia Antiga, por exemplo, a Liga de Delos e a Liga de Esparta são exemplos de alianças políticas que compartilhavam certas responsabilidades e poderes entre as cidades-estado. Na República Romana, cidades-estado e regiões mantinham certo grau de autonomia sob uma autoridade central.

    Durante a Idade Média, o federalismo como conceito político continuou a evoluir, especialmente na Europa. A descentralização do poder era comum, com muitas regiões governadas por senhores feudais ou príncipes locais. A Liga Hanseática, uma aliança comercial de cidades no norte da Europa, é um exemplo desse tipo de arranjo federativo.

    O surgimento do Estado moderno na Europa Ocidental trouxe novos debates sobre a organização política. Com o declínio do feudalismo e o fortalecimento dos governos centrais, a questão da divisão de poderes entre o governo central e as unidades subnacionais se tornou mais relevante. Na Suíça, por exemplo, a formação da Confederação Suíça em 1291 marcou um dos primeiros exemplos documentados de federalismo na Europa, com os cantões suíços mantendo uma considerável autonomia.

    No entanto, foi nos Estados Unidos, com a Constituição de 1787, que o federalismo moderno foi formalizado e desenvolvido. O sistema federal americano foi influente na disseminação desse modelo ao redor do mundo. A Constituição dos Estados Unidos foi um marco crucial no desenvolvimento do federalismo moderno. Os Pais Fundadores, inspirados pelos ideais iluministas e pela experiência política britânica, criaram um sistema que dividia o poder entre o governo federal e os estados. A estrutura federal americana foi influente em todo o mundo e serviu de modelo para muitas outras nações.

    A história conheceu uma expansão global e, nos séculos seguintes, o federalismo espalhou-se para outras partes do mundo. Países como Canadá, Austrália, Alemanha, Índia, Brasil e Rússia adotaram sistemas federais para acomodar a diversidade étnica, cultural e política dentro de seus territórios. A União Europeia (EU) também representa uma forma de federalismo, embora num contexto diferente, com Estados soberanos cooperando em uma estrutura supranacional.

    Exemplos de Federalismo

    Diversos países do mundo adotam o federalismo como modelo de organização política. Os Estados Unidos, o Canadá, a Alemanha, a Índia, a Austrália e o Brasil são apenas alguns exemplos. Cada um desses países possui seu próprio sistema federal, com características únicas e desafios específicos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o federalismo é marcado por uma clara divisão de poderes entre o governo federal e os Estados. Já no Brasil, o federalismo é mais centralizado, com maior concentração de poder no governo federal. Na Alemanha, há um sistema federal altamente descentralizado, onde os Estados (länder) têm uma grande autonomia política e administrativa.

    Há vários autores que discutem o federalismo em suas obras, sendo de considerar James Madison como um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos e um dos redatores da Constituição Americana. Madison discutiu extensivamente o federalismo em seus escritos, incluindo os “Papers federalistas”.  Outro dos redatores dos “Papers federalistas”, Alexander Hamilton, discutiu a necessidade de um governo federal forte para unificar os Estados e promover a estabilidade económica.

    Como Chefe de Justiça da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1801 a 1835, John Marshall emitiu várias decisões importantes que ajudaram a moldar a interpretação do federalismo na Constituição dos EUA.

    Refira-se a importância de Montesquieu, conhecido por sua teoria da separação dos poderes, que influenciou diretamente a estrutura do governo federal nos Estados Unidos, de

    Carl J. Friedrich, autor de Trends of Federalism in Theory and Practice e outros trabalhos, sendo conhecido por suas análises abrangentes sobre as tendências e desafios do federalismo em diferentes contextos. A obra Exploring Federalism, de Daniel Elazar, é reconhecida por sua pesquisa sobre federalismo comparativo, com foco especial nas diferenças entre os sistemas federais em todo o mundo. Como um dos principais estudiosos do federalismo, Ronald Watts escreveu extensivamente sobre o federalismo comparativo e as questões de governança em estados federais. Por seu lado, Michael Burgess, autor de Comparative Federalism: Theory and Practice e outros trabalhos, oferece análises detalhadas sobre as teorias e práticas do federalismo em diferentes contextos nacionais.

    Estes são apenas alguns exemplos de autores que discutem o federalismo em seus escritos. Há muitos outros estudiosos, académicos e políticos que contribuíram para o debate sobre esse tema ao longo dos anos, bem como autores que, na atualidade, continuam a discutir um tema que está longe de estar esgotado.

    Princípios do Federalismo

    O federalismo é fundamentado em princípios como a divisão de poderes entre o governo central e as unidades subnacionais, a autonomia destas unidades em certas áreas de jurisdição e a garantia de direitos individuais e das unidades subnacionais perante o governo central. Esses princípios são essenciais para a manutenção do equilíbrio de poder e para a preservação da diversidade dentro de um país.

    Um dos princípios centrais do federalismo é o da subsidiariedade, que postula que as decisões devem ser tomadas no nível mais próximo possível dos cidadãos afetados por elas. Isso significa que questões locais devem ser tratadas pelas autoridades locais, enquanto questões de âmbito nacional devem ser abordadas pelo governo central. Este princípio promove a eficiência na administração pública, ao permitir que as políticas sejam adaptadas às necessidades específicas de cada região. Outro princípio fundamental é o da autonomia das unidades subnacionais. Isso implica que Estados, províncias ou outras entidades federativas tenham autoridade para legislar e administrar em áreas específicas, sem interferência excessiva do governo central. Essa autonomia fortalece o sentimento de identidade e pertencimento das diferentes regiões dentro de um país.

    O federalismo oferece diversas vantagens. Em primeiro lugar, ele permite acomodar a diversidade cultural, étnica, económica e geográfica dentro de um país. Isso é especialmente importante em nações grandes e heterogêneas, onde diferentes regiões têm necessidades e interesses distintos. Além disso, o federalismo promove a participação cívica e o engajamento político, uma vez que os cidadãos podem influenciar mais diretamente as políticas em nível local. Outra vantagem do federalismo é sua capacidade de servir como laboratório para políticas públicas. Como as unidades subnacionais têm certo grau de autonomia, elas podem implementar políticas experimentais e inovadoras, que posteriormente podem ser replicadas em todo o país, caso se mostrem bem-sucedidas.

    No entanto, o federalismo também apresenta desafios. Um dos principais é o da coordenação entre o governo central e as unidades subnacionais. Em alguns casos, essa divisão de poder pode levar a conflitos de interesse e a uma falta de coesão na formulação e implementação de políticas públicas. Além disso, a autonomia das unidades subnacionais pode resultar em desigualdades regionais, especialmente se algumas regiões forem mais ricas ou mais desenvolvidas do que outras. Outro desafio é o da inconsistência regulatória. Como diferentes estados ou províncias podem ter leis e regulamentos distintos, isso pode criar barreiras comerciais e dificultar a integração económica e social do país como um todo. A falta de harmonização entre as políticas das diferentes unidades federativas pode prejudicar o desenvolvimento econômico e dificultar a cooperação em questões de interesse nacional.

    O caso da União Europeia

    Além dos exemplos mencionados anteriormente, é importante destacar o federalismo europeu como um caso único e significativo de cooperação entre nações soberanas em um sistema federal. A União Europeia (UE) é uma organização política e económica composta por 27 países membros, que compartilham certas competências e instituições comuns. Embora não seja um estado federal no sentido tradicional, a UE exibe muitas características do federalismo.

    A estrutura da UE é baseada em tratados e instituições supranacionais, como a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu. Essas instituições possuem competências em áreas como comércio, política agrícola, meio ambiente e regulação de concorrência, entre outras. Ao mesmo tempo, os países membros da UE mantêm sua soberania e autonomia em questões como política externa, defesa e fiscalidade.

    O federalismo europeu é um exemplo de cooperação intraestatal e integração regional, que visa promover a paz, a estabilidade e o desenvolvimento econômico na Europa. Por meio de políticas comuns e da livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, a UE busca criar um mercado único e fortalecer os laços entre seus membros.

    No entanto, o federalismo europeu também enfrenta desafios significativos, como a questão da soberania nacional, a divergência económica entre os países membros e as tensões políticas em torno de temas como migração e integração. Apesar desses desafios, a UE continua a ser um exemplo inspirador de cooperação internacional e governança multilateral num mundo cada vez mais interconectado.

    Desafios atuais do Federalismo Europeu

    Apesar de sua longa história e de seus benefícios percebidos, o federalismo enfrenta desafios significativos no mundo contemporâneo. Questões como desigualdade regional, conflitos de competência entre o governo central e as unidades subnacionais e a globalização, apresentam novos desafios para os sistemas federais em todo o mundo. No entanto, o federalismo continua a ser um modelo importante para a governança em muitos países, permitindo acomodar a diversidade e promover a participação política e a democracia.

    O federalismo europeu enfrenta uma série de desafios únicos e complexos, devido à natureza particular da UE e à diversidade de interesses e histórias dos seus Estados-Membros. Alguns dos principais desafios incluem:

    – A questão da soberania nacional vs. integração europeia. Um dos desafios mais fundamentais é encontrar um equilíbrio entre a soberania nacional dos Estados-Membros e a integração europeia. Enquanto alguns países defendem uma maior centralização de poderes na UE, outros resistem a qualquer perda percebida de autonomia nacional, criando tensões entre o governo central da UE e os Estados-Membros.

    – As divergências económicas: A UE é composta por países com diferentes níveis de desenvolvimento econômico. Essas disparidades económicas podem criar tensões e desafios significativos para a implementação de políticas comuns, especialmente em áreas como política fiscal, orçamentária e monetária.

    – As crises migratórias e de refugiados: a crise migratória enfrentada pela Europa nos últimos anos tem sido um teste significativo para a coesão e a solidariedade entre os Estados-Membros da UE. As divergências na abordagem para lidar com a migração e os refugiados destacam as tensões entre a política de fronteiras nacionais e a necessidade de uma resposta comum e coordenada em nível europeu.

    – O Brexit, o processo de saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), evidenciou divisões políticas e sociais dentro da UE, bem como o surgimento do euroceticismo em alguns Estados-Membros. O Brexit destacou os desafios de conciliar interesses nacionais e a visão de uma Europa mais integrada, alimentando o debate sobre o futuro do projeto europeu.

    – O problema da democracia e legitimidade, que revela a complexa estrutura institucional da UE, com suas múltiplas instituições supranacionais, levanta questões sobre a transparência, a prestação de contas e a democracia no processo de tomada de decisões. A distância percebida entre os cidadãos e as instituições europeias tem sido um desafio para a legitimidade do projeto europeu.

    – A segurança e defesa são áreas em que os Estados-Membros da UE têm mantido uma considerável autonomia e soberania nacional. No entanto, a crescente interdependência de ameaças transnacionais, como terrorismo e cibersegurança, levanta questões sobre a necessidade de uma maior cooperação e integração em nível europeu nesses domínios.

    Estes desafios destacam a complexidade e a delicadeza do projeto de federalismo europeu, exigindo um equilíbrio cuidadoso entre a unidade e a diversidade, a soberania nacional e a integração supranacional, e a eficácia e a legitimidade democrática. Superar esses desafios requer um compromisso contínuo com o diálogo, a cooperação e a busca de soluções pragmáticas que beneficiem todos os Estados-Membros e cidadãos da UE.

    Como observa Michael Burgess (2000), a União Europeia está a ser alvo de um processo de cooperação que vai muito além da mera cooperação intergovernamental. As ideias federais infiltraram-se em todas as instituições centrais da UE, supranacional ou intergovernamental, afetando significativamente as relações interinstitucionais e fluindo através de uma grande variedade de canais, tanto dentro como fora dos quadros institucionais e políticos formais da EU. Existe uma verdadeira rede de organizações europeias, incluindo partidos políticos, uma miríade de grupos de interesses e diversos organismos profissionais. Estas organizações promovem a causa federal com muitas táticas e estratégias diferentes, o que lhes permite, de facto, alterar o ambiente político de uma forma muito mais favorável a objetivos ambiciosos: “O nosso estudo analítico do período histórico 1950-2000 já mostrou até que ponto a combinação de liderança política, consenso processual e contexto institucional pode ser empregue com um efeito notável na prossecução de uma Europa federal. O próprio facto de a UE representar a aplicação de princípios federais e confederacionais à integração europeia sublinha até que ponto as esferas institucionais e políticas têm sido recetivas a visões alternativas do futuro da Europa. É precisamente assim que as visões se tornam realidades. Quando o federalismo se liga diretamente à realidade, deixa de ser apenas mais uma visão alternativa e pode ser posto em prática. É por isso que o impensável de hoje é frequentemente a convenção de amanhã”. (BURGESS, 2000, 279-80).

    Em jeito de homenagem, terminamos lembrando Jacques Delors (2004), que defendeu o fortalecimento do federalismo europeu, mesmo perante a saída do Reino Unido, num espírito visionário determinado numa arquitetura europeia cada vez mais sólida e aprofundada. Como não se cansa de repetir o estudioso Dusan Sidjanski, “O Federalismo é o nosso futuro” (SIDJANSKI, 1996, 11).

    Bibliografia

    BURGESS, M. (2000). Federalism and European Union, 1950-2000. London: Routledge.

    CRESPO, A. (1998). O Federalismo, Um Modelo para a Europa? Lisboa: Cosmos.

    DELORS, J. (2004). Memórias. Lisboa: Quetzal Editores.

    SIDJANSKI, D. (1996). O Futuro Federalista da Europa. Lisboa: Gradiva.

    SIDJANSKI, D. (2001). Para um Federalismo Europeu. Lisboa: Princípia.

    Escrito por -

    Isabel Baltazar é doutorada em História e Teoria das Ideias, Especialidade de História das Ideias Políticas (2008), pela NOVA FCSH, com uma tese intitulada Portugal e a Ideia de Europa. Pensamento Contemporâneo. Desde a Pós-Graduação em Estudos Europeus, pela Universidade de Coimbra, trabalhou sempre na área de Estudos Europeus e concluiu o Pós-Doutoramento sobre a Europa na Diplomacia Europeia: uma visão comparativa pós-guerras. Investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea (IHC) da FCSH/NOVA e associada do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20), da Universidade de Coimbra. Prémio Gulbenkian – História da Europa, pela Academia Portuguesa da História, à sua obra Repensar Portugal e a Ideia de Europa (2020). Docente Universitária. Investigadora e Gestora Nacional do Programa EPAS- ESCOLA EMBAIXADORA DO PARLAMENTO EUROPEU. Docente do ISEC LISBOA.

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