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    Feminismo (Emancipação Feminina, Movimento Sufragista) [Dicionário Global]

    O termo “feminismo” remete para uma pluralidade de teorias e movimentos sociais, que partem de diferentes pressupostos e que contemplam objetivos e propostas distintos, pelo que talvez fosse mais rigoroso falar em “feminismos”, no plural. No entanto, é possível identificar um aspeto transversal do feminismo: a orientação para a melhoria da condição das mulheres. No texto que se segue, procurar-se-á dar nota de aspetos essenciais da história do feminismo e dos desafios com que atualmente se confronta.

    O advento do feminismo

    A palavra “feminismo” terá sido utilizada pela primeira vez por Hubertine Auclert, em 1882, no seu periódico La Citoyenne – “a cidadã”. Não significa isso que não se encontrassem, em momentos anteriores, autores, escritos, movimentos e teorias qualificáveis como “feministas”. Recorde-se Christine de Pisan, natural de Veneza, que viveu nos séculos XIV-XV, cuja obra A Cidade das Damas é frequentemente considerada uma das primeiras reivindicações feministas.

    De modo aparentemente paradoxal, foram espaços e eventos marcadamente religiosos que propiciaram o advento do feminismo. Destaca-se, entre todos, o impacto da Reforma protestante, que exaltava a relação pessoal de cada pessoa com Deus, através da leitura da Bíblia. Isto significava que todos deveriam aprender a ler, fossem rapazes ou raparigas, ricos ou pobres. A Reforma protestante e a reação protagonizada pela Contrarreforma católica foram, deste modo, os eventos impulsionadores de uma educação básica tendencialmente universal, essencial para diminuir a desigualdade socialmente contruída entre mulheres e homens.

    Na verdade, o direito à educação foi a primeira grande causa feminista. Estas mulheres pioneiras notavam que a ausência de uma educação para as mulheres conduzia à sua perceção como seres naturalmente inferiores, uma vez que lhes era vedado o acesso ao conhecimento e, como tal, às ferramentas necessárias ao seu desenvolvimento. Destacam-se, a este propósito, nos séculos XVII e XVIII, os nomes de Mary Astell e Mary Wolstonecraft, no Reino Unido, e do marquês de Condorcet e de Olympe de Gouges, na França revolucionária.

    Contudo, é apenas na segunda metade do século XIX que se assiste à consolidação dos movimentos de mulheres e ao alargamento das suas causas, centradas numa profunda reforma dos direitos civis e políticos das mulheres.

     

    A luta pela emancipação da mulher

    O sufrágio feminino

    No decurso da História, desde a Grécia Antiga à França revolucionária, a cidadania sempre fora uma prerrogativa de alguns homens, da qual as mulheres estavam excluídas. Não é de estranhar, por isso, que aos olhos das primeiras feministas, o caminho para a emancipação das mulheres estivesse intimamente ligado ao direito de voto, na medida em que este seria garante daquela. Por isso, nos primeiros tempos do feminismo, falar de “sufrágio” e de “cidadania” era uma e a mesma coisa. De facto, entre os movimentos feministas era frequente a convicção de que, a partir do momento em que as mulheres tivessem capacidade eleitoral (passiva e ativa), elas se uniriam em torno dos seus interesses e pretensões comuns, abrindo assim o caminho para um rápido reconhecimento dos seus direitos. Estas esperanças negligenciavam as profundas diferenças – desde logo, de classe – que perpassavam o coletivo feminino.

    Neste contexto, o direito ao voto foi a principal luta deste primeiro feminismo, o que se manifestava, desde logo, no nome adotado por vários movimentos e organizações de mulheres, que desde meados do século XIX ao início do século XX assumiam a participação política e o direito ao voto como o seu principal objetivo. São deles exemplo a National Union of Women’s Suffrage Societies (União Nacional das Sociedades de Sufrágio Feminino), no Reino Unido, a Union Française pour le Suffrage des Femmes (União francesa pelo Sufrágio das Mulheres), em França, e a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em Portugal.

    As sufragistas advogavam a igualdade entre homens e mulheres no que se refere à capacidade de participação política, fazendo notar, ademais, a existência de interesses próprios das mulheres que careciam de tutela política. Outro argumento comum era o de que as mulheres deveriam ter direito a participar no processo político e legislativo, na medida em que também sobre elas (e não apenas sobre os homens) impendia o dever de pagar impostos e de se sujeitarem ao direito penal.

    Por parte dos sectores mais conservadores, os argumentos que se opunham ao acesso das mulheres ao sufrágio reconduziam-se ao seu potencial para ser causa de discórdia familiar, mas também (e de modo paradoxal) à desnecessidade desse voto, uma vez que o interesse das mulheres seria coincidente com o dos maridos. Já os sectores mais progressistas, quando se opunham ao sufrágio feminino, invocavam fatores de cariz mais circunstancial, notando a ausência ou insuficiência da educação das mulheres e a influência conservadora a que estavam sujeitas (particularmente, por parte da Igreja).

    A conquista do direito ao voto não se deu de modo simultâneo em todas as sociedades e, para muitas mulheres, o que acreditavam ser um combate de anos transformou-se numa luta de décadas. O primeiro Estado a admitir o sufrágio feminino foi a Nova Zelândia, em 1893. Ao longo do século XX, quase todos os países alargaram o direito de voto às mulheres nas mesmas condições que os homens (o que nem sempre correspondeu e corresponde ao sufrágio universal). No entanto, isso não significa que as mulheres tenham, de facto, um acesso ao voto igual ao dos homens, uma vez que muitas estão sujeitas a grandes constrangimentos no exercício desse direito, como a imposição legal de limitações à sua liberdade de circulação.

    Relativamente a Portugal, o sufrágio era também uma das principais reivindicações das feministas do início do século e, particularmente, das mulheres republicanas, pertencentes a uma elite burguesa, e na qual se contavam, entre outras, Ana de Castro Osório, Adelaide Cabette e Carolina Beatriz Ângelo. Por isso, foi para estas uma grande desilusão que a 1.ª República nunca tivesse cumprido a promessa de garantir às mulheres o direito ao voto. Contudo, a primeira mulher a votar em Portugal – Carolina Beatriz Ângelo – fê-lo precisamente nas eleições à Assembleia Constituinte, a 28 de maio de 1911. A Lei Eleitoral não contemplava uma exclusão expressa das mulheres do seu âmbito de aplicação, referindo-se a “portugueses”, maiores de 21 anos, residentes em território nacional, que soubessem ler e escrever ou fossem chefes de família. Sendo médica, viúva e mãe de uma filha, a cujo sustento provia, Carolina Beatriz Ângelo preenchia todos estes requisitos. Ainda assim, o seu requerimento de inscrição nos cadernos eleitorais foi indeferido, vindo a ser admitido apenas em sede de recurso, pelo juiz João Batista de Castro (pai de Ana de Castro Osório). O legislador republicano, porém, foi célere em limitar o acesso ao voto aos “cidadãos portugueses do sexo masculino” nas subsequentes leis eleitorais. Foi sob as longas décadas do Estado Novo que as mulheres se viram paulatina e sucessivamente incluídas nas várias leis eleitorais, alcançando a igualdade formal com os homens em 1968. No entanto, só com a Revolução dos Cravos, em abril de 1974, o sufrágio universal e eleições livres se tornaram uma realidade em Portugal.

    A mulher: sujeito de direito

    A inferiorização das mulheres na sociedade encontrava o seu reflexo jurídico numa grave limitação dos seus direitos civis, particularmente discriminatória no caso das mulheres casadas, que passavam a ser praticamente equiparadas aos menores de idade. Com efeito, a mulher solteira maior de idade poderia, autonomamente, praticar um conjunto de atos que lhe eram vedados a partir do momento em que casava, seja porque passavam a pertencer ao seu marido (foi, entre nós, desde logo sob o Código Civil de 1867, o caso da administração dos bens do casal), seja porque passavam a carecer da sua autorização (ainda sob a mesma legislação, recorde-se a interdição de publicação de escritos da mulher sem consentimento do marido). No século XIX, é possível encontrar limitações semelhantes tanto no direito anglo-saxónico (em que é expressiva a própria expressão utilizada para nomear o estatuto da mulher casada: coverture) como nos demais ordenamentos jurídicos de Direito continental.

    Estas limitações são demonstrativas da estrutura patriarcal da sociedade e do modo como o Direito contribuía para (re)criar o domínio masculino. O homem, enquanto chefe de família, detinha o poder marital (em relação à mulher) e o poder paternal (em relação aos filhos), sendo a família e o espaço doméstico o reduto no qual exercia, soberanamente, os seus poderes. A casa e a família foram construídas pelo discurso liberal como espaços privados e de exercício de liberdade, que deveriam estar a salvo da interferência dos poderes estaduais. No entanto, esta é uma perspetiva parcial, pois para a mulher (e para as crianças) o espaço doméstico era, não raras vezes, um espaço de coerção e, até mesmo, de violência.

    Por isso, uma das principais lutas feministas foi a criação da mulher como sujeito pleno de direito. Ou seja, o alargamento à mulher do mesmo estatuto jurídico que era concedido ao homem. Trata-se da igualdade jurídica, que é um passo fundamental na eliminação da discriminação contra as mulheres. No entanto, essa igualdade não basta. Como se disse, o estatuto jurídico do homem não foi construído de modo neutro, mas de modo a servir os interesses especificamente masculinos. Por isso, o mero alargamento dos direitos do homem à mulher não se revela suficiente. Um dos grandes desafios contemporâneos é precisamente repensar o próprio direito à luz das experiências das mulheres.

    O trabalho feminino

    No início do século XX, a “questão da mulher” era a questão da relação da mulher com o trabalho remunerado. Note-se que sempre houve mulheres que trabalharam – dentro e fora do espaço doméstico – e mulheres que (à semelhança de alguns homens) nunca precisaram de trabalhar. Porém, no final do século XIX, emergiu uma classe minoritária de mulheres trabalhadoras que pertenciam à nova classe média e cuja visibilidade pública era crescente, que se somava à classe das operárias, e de que eram exemplo as inspetoras de fábrica, as professoras, as secretárias, as telefonistas e as vendedoras. Todas elas concorriam com os homens no acesso ao mercado de trabalho, com grande vantagem para os empregadores, na medida em que auferiam salários inferiores, gerando o receio, entre os homens, de que a ocupação dos seus postos de trabalho por mão-de-obra feminina conduzisse a uma desvalorização salarial ou, até mesmo, ao desemprego masculino generalizado.

    Este contexto fomentou a construção de discursos sociais, nomeadamente, económicos, sindicais, médicos e jurídicos, que conduziram à naturalização da divisão sexual do trabalho. Esta construção teve como um dos seus principais tópicos a ideia do salário familiar, ou seja, a ideia de que aos homens deveria ser idealmente pago um salário suficiente para sustentar toda a sua família. Consequentemente, o salário das mulheres não precisaria de garantir nem sequer o seu próprio sustento, limitando-se a ser um mero complemento ao rendimento familiar.

    O problema é que, na realidade, os salários masculinos eram baixos e muitas mulheres não podiam, de facto, contar com qualquer apoio familiar. Os grandes beneficiários desta situação eram os empregadores, que praticavam salários exíguos quando empregavam mulheres e, consequentemente, por motivos financeiros, propiciaram a feminização de certas atividades. Neste contexto, os sindicatos (que originariamente eram organizações masculinas) opunham-se de modo contundente ao ingresso das mulheres nos seus sectores de atividade. Esta oposição era sustentada ainda pelo discurso médico, que invocando a fraqueza das mulheres e a necessidade de acautelar a sua função reprodutiva, reclamava a sua proteção.

    A construção destes discursos sociais teve o seu reflexo na regulamentação do trabalho, que sob pretexto da necessidade de proteger a mulher trabalhadora, regulava a sua participação em certos sectores de atividade, criando sérios ónus aos empregadores. Contudo, os sectores regulados eram predominantemente masculinos, o que teve como efeito empurrar as mulheres para sectores que permaneciam desregulados, aumentando assim a precariedade do seu trabalho e consolidando a segregação ocupacional existente.

    É neste contexto que emergem duas pretensões de relevo nestes primeiros feminismos: por um lado, a luta das mulheres pelo acesso a profissões antes reservadas aos homens e pela melhoria das suas condições de trabalho assalariado e, por outro lado, o surgimento de um “feminismo maternalista” (aspeto este muitas vezes ignorado da história do primeiro feminismo), que enfatiza o valor do trabalho realizado pelas mulheres na domesticidade, pugnando pelo seu reconhecimento social.

    Atualmente, a questão do trabalho – na qual se inclui o reconhecimento e valorização do trabalho de cuidado e do trabalho doméstico – continua a ser um dos principais desafios em matéria de igualdade de género (elencado entre as metas do objetivo 5 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). De facto, apesar de a participação das mulheres no mercado de trabalho ter aumentado significativamente (em 2018, cerca de 80% das mulheres entre os 25 e os 54, na Europa e América do Norte, integravam a força laboral), a verdade é que continuam a verificar-se fenómenos significativos de segregação horizontal e vertical, diferentes modos de participação no mercado de trabalho (mais precária entre as mulheres), e uma maior assunção, pelas mulheres, do trabalho de cuidado e doméstico não remunerado (em termos globais, as mulheres dedicam três vezes mais tempo a este trabalho do que os homens).

    O renascimento do feminismo do final da década de 1960

    No período que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, propiciou-se a afirmação universal dos direitos humanos, desta vez a incluir as mulheres que, de resto, participaram ativamente na sua elaboração. Além disso, neste período, muitos Estados alargaram o direito de voto às mulheres. No entanto, esta igualdade na esfera pública nem sempre se repercutiu na esfera privada. França, por exemplo, igualou as mulheres aos homens no gozo de direitos políticos, mas manteve normas discriminatórias, em razão do sexo no direito da família. Além disso, as mulheres cedo se começaram a aperceber de que a igualdade de estatuto jurídico não era necessariamente geradora de uma igualdade de facto. Pelo contrário, a desigualdade era constatada no quotidiano das experiências femininas. Foi essa constatação que conduziu a uma renovada reflexão sobre a condição da mulher e ao recrudescimento dos movimentos feministas, agora também no mundo académico, no qual as mulheres também participavam.

    Antes de ser uma teoria, o feminismo sempre foi uma praxis, contando-se entre os ativismos. No final dos anos 1960, o feminismo alinhava-se com os múltiplos movimentos que, um pouco por todo o mundo, lutavam pela paz, pela liberdade e pela igualdade. Os movimentos feministas desta época, com destaque para o Movimento de Libertação das Mulheres (que teve expressão em vários países), centravam-se em identificar as experiências femininas e refletir sobre elas, de modo a libertar-se da narrativa masculina. Um dos seus principais contributos neste contexto foi a identificação da violência doméstica e a sua caracterização enquanto experiência marcada pela discriminação de género, que conduziu paulatinamente ao reconhecimento da necessidade de encontrar respostas sociais e jurídicas para o combate à violência contra as mulheres.

    Outro tópico de destaque no feminismo do final dos anos 1960 e na década de 1970 é a questão da construção social do género. A célebre afirmação de Simone de Beauvoir – “on ne naît pas femme, on le devient” (“não nascemos mulher, tornamo-no-lo”] – publicada n’O Segundo Sexo (1949), encontrou nos anos de 1970 o seu eco na sociedade. O que é uma mulher? Esta é a grande questão que se coloca perante a permanente tensão que emerge da compreensão da diferença e da igualdade.

    Com efeito, ao feminismo igualitarista, centrado no substrato comum da humanidade, abstraído das diferenças entre homens e mulheres, opõe-se o feminismo da diferença. O feminismo da diferença afirmou-se com maior expressividade a partir da publicação da obra da psicóloga Carol Gilligan, In a Different Voice (1982). Constitui-se objetivamente como uma crítica ao feminismo igualitarista, na medida em que constata que as diferenças do qual este abstrai são as diferenças da mulher (e não do homem, que é tomado como a norma). Rejeita-se, desse modo, a ideia de que as normas sociais e jurídicas são neutras, para enfatizar o seu viés de conceção como um viés masculino, que não integra as experiências das mulheres. Para este feminismo, as mulheres são diferentes, sendo que essa sua diferença não resulta necessariamente (ou exclusivamente) da biologia, mas é socialmente construída para dar resposta a necessidades sociais, desde logo, as necessidades de reprodução.

    De modo semelhante, é possível identificar uma dicotomia entre o chamado feminismo liberal e o feminismo socialista. O feminismo liberal, de pendor geralmente igualitarista, remonta as suas origens às primeiras feministas e advoga para as mulheres as mesmas liberdades individuais que são reconhecidas aos homens e uma igualdade de oportunidades, sobretudo através do igual acesso à educação. Este é um feminismo que, embora liberal, não deixa de ser conservador, na medida em que aceita o sistema tal como ele se encontra. Notadamente, o feminismo liberal não coloca em causa a dicotomia que opõe o público ao privado e partilha com a tendência liberalista, na qual se insere, a crença de que o privado deve permanecer um espaço não regulado.

    Já o feminismo socialista enfatiza a exploração económica da mulher, notando que a qualificação do trabalho reprodutivo como trabalho não produtivo é fruto de uma cultura patriarcal que beneficia economicamente da redução de custos gerada pelo trabalho de reprodução prestado gratuitamente. Com efeito, uma das principais críticas ao feminismo liberal é que a conquista de um estatuto jurídico igual ao que era reconhecido aos homens não conduz a uma alteração na distribuição do trabalho reprodutivo. Enxertam-se nesta corrente o feminismo de pendor marxista, que se propõe identificar os fundamentos materiais da desigualdade de género, e o feminismo negro (Black feminism), com origem nos Estados Unidos da América, que recorre aos conceitos de raça e de classe para explicar as diferentes experiências das mulheres negras e a sua acentuada opressão. Deste modo, contribuem para a crítica a uma compreensão essencialista da mulher veiculada pelo feminismo dominante, construído a partir da perspetiva privilegiada das mulheres brancas, que não representa os interesses e vivências das mulheres negras.

    Outro paradigma feminista que surge e se consolida neste período é o denominado feminismo radical, que se propõe investigar a raiz da opressão feminina. Ao fazê-lo, afirma que a matriz de todas as formas de opressão é o patriarcado. Para o feminismo radical, a base da opressão feminina é o sexismo, particularmente, a objetificação da mulher, o que explica a centralidade da sexualidade para as feministas radicais, bem como a necessidade de encontrar mecanismos que protejam as mulheres de uma sexualidade que fora construída como forma de dominação masculina. Por isso, as preocupações com as questões da sexualidade têm neste paradigma um peso maior do que as questões raciais ou classicistas e nisso se distinguem, desde logo, do feminismo socialista.

    Em Portugal, os anos de 1960 foram vividos em ditadura e com a agudização da guerra no Ultramar. A sociedade permanecia fechada, mas alguns meios eram mais permeáveis a influências externas, como é o caso das Universidades. De todo o modo, o ativismo estava centrado no combate à ditadura, não deixando grande espaço para o desenvolvimento de feminismos, que haviam caído praticamente no esquecimento. De facto, embora seja possível mencionar algumas mulheres “feministas”, como Elina Guimarães, Maria Lamas e as “Três Marias” (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa), o feminismo enquanto movimento só viria a ter condições para florescer sob a égide da Revolução de Abril.

    Dos anos 1990 aos nossos dias: a recusa de uma morte anunciada

    Nos anos de 1990, o feminismo, enquanto movimento social, retraiu-se. Alguns anunciavam a sua morte, por ter alcançado o seu objetivo: a igualdade jurídica entre homens e mulheres. Viver-se-ia, assim, o tempo do pós-feminismo.

    Na verdade, muitas mulheres jovens nos anos 1990 recusavam o rótulo de feministas. Elas divergiam da geração anterior, sobretudo na sua visão da sexualidade e do papel da mulher. É a geração do girl power, que tem expressão na cultura popular da série televisiva Sex and the City e de ícones da música como Madonna e as Spice Girls. Existe uma afirmação do poder feminino através dos atributos associados à feminilidade, particularmente, da beleza feminina.

    A década de 1990 foi também o tempo de consolidação de uma crítica substancial a conceitos e categorias centrais do pensamento feminista. Com efeito, de um ponto de vista epistemológico, o feminismo centra-se na mulher e na sua experiência vivida. No entanto, com isso, também encerra um paradoxo, na medida em que recusa a existência de uma natureza feminina e acolhe a conceção do género como construção cultural necessariamente variada no tempo e no espaço. Ao constatar a enorme heterogeneidade dos sujeitos que compõem o grupo “mulheres”, o feminismo não pode deixar de se questionar sobre a própria possibilidade da sua existência. No entanto, talvez estas sejam questões que interpelem mais uma perspetiva académica sobre o feminismo do que o feminismo na sua essência de movimento ativista.

    Os vários paradigmas feministas que se foram formando ao longo da história do feminismo encontram lugar nas múltiplas perspetivas que procuram rumar, por diferentes vias, para uma melhoria da condição das mulheres. Ainda que persistam muitas das interrogações levantadas nas últimas décadas, a morte anunciada do feminismo parece longe de ser definitiva. Como qualquer outro movimento social, o feminismo teve e terá épocas de maior vitalidade, ligadas a uma maior perceção social da opressão feminina, numa ou em várias das suas facetas, e à existência de condições fácticas que sustentem um combate coletivo contra essa opressão. Basta recordar o recente movimento #MeToo, com larga expressão nas redes sociais, que visou dar visibilidade à prevalência do assédio sexual, em especial, no meio laboral. Os direitos que as mulheres conquistaram, como todos os demais, não são definitivos e, a qualquer momento, podem ser reconfigurados e até suprimidos. Enquanto a desigualdade persistir, e sempre que for necessário reafirmar o valor da igual dignidade humana de mulheres e homens, o feminismo terá razões para subsistir.

    Bibliografia

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    Autora: Miriam Rocha

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