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    Filantropia

    De origem grega, o termo “filantropia” compõe-se de dois étimos, φίλος e άνθρωπος, que significam, respetivamente, amigo e homem. A sua junção na palavra assim formada exprime a atitude e o procedimento de quem é amigo e ama o ser humano. A ideia de filantropia inscreve-se no campo semântico de que fazem parte os lexemas altruísmo, solidariedade, beneficência, generosidade, benevolência, assistência, fraternidade, caridade, compaixão, humanidade e humanitarismo. Exprime, pois, o sentimento de atenção e cuidado para com a humanidade, entendida esta tanto no sentido de espécie humana em toda a sua universalidade, como no de disposição de boa vontade e de solicitude para a acolher e ajudar. Assim interpretada, a origem da riqueza semântica de “filantropia” remonta ao estoicismo antigo. O termo latino que lhe corresponde é humanitas. Ora, o gramático latino Aulo-Gélio (123-165) refere em Noctes Atticae (XIII, 17) que a palavra humanitas traduz em latim não só o termo philantropia, mas também o termo grego paideia, isto é, a educação e cultura geral adquirida pela formação à base das belas letras. Por meio dessa educação, o homem aperfeiçoa a sua humanidade, tornando-se mais humano. A proposta de Aulo-Gélio foi retomada no Renascimento e conferiu ao plural “humanidades” uma dimensão pedagógica e institucional em que a cultura das letras clássicas é posta ao serviço do ideal de crescimento em humanidade. Deste modo, a paideia desenvolve e aprofunda o próprio sentimento de philantropia.

    A palavra “filantropia” converteu-se no século XVIII em termo recorrente e uma das palavras representativas do espírito das Luzes. No caminho que conduziu à conceção iluminista de filantropia devemos inserir o contributo de Spinoza quando afirma que por generosidade se entende o desejo “pelo qual o homem levado apenas pelo ditame da razão se esforça por ajudar os outros e por uni-los a si por amizade” (Ética, III, 59, escólio). A nota de afetividade e de disposição para prestar apoio e socorrer quem se encontra em necessidade preanuncia a viragem do sentimento de generosidade filantrópica para o que são práticas assistenciais. Com o advento das ideias liberais e o crescimento da crítica aos princípios e práticas do individualismo liberal, o conceito de filantropia adquire conotação de atitude de beneficência orientada para a ajuda aos pobres e marginalizados, sobretudo através de instituições de assistência pública. Em virtude do avanço da secularização, potenciada pela sensibilidade humanitária e filantrópica, assiste-se no século XVIII à desvalorização cultural da temática da caridade cristã. Até então inquestionavelmente prestigiada, a palavra “caridade” foi perdendo valor e passou a ser substituída no vocabulário dos philosophes por “filantropia”. A razão de fundo para tal depreciação era por eles atribuída ao facto de o espírito de caridade se revelar inconsistente, contraditado como era pela prática da intolerância religiosa e pela violência exercida sobretudo nas cruzadas e na Inquisição. De facto, sob o esvaziamento do sentido religioso estava em curso a transição da beneficência, até então da esfera particular e da Igreja, para a responsabilidade do Estado. Via-se no estabelecimento de instituições de assistência aos pobres um dos mais criteriosos indicadores de civilização. Mas também foi certeiramente observado que a história da beneficência “seria, no século das Luzes, a história da lenta e incompleta substituição de uma intenção filantrópica à intenção repressiva” (GUSDORF, 1971, 383).

    Na linha de abandono do discurso caritativo inscreve-se igualmente a posição de Augusto Comte e seguidores. Ao iniciador da corrente positivista deve-se a criação do vocábulo “altruísmo”, ao qual conferiu sentido positivo, como procura do bem do outro, por contraste com a caridade cristã, que Comte acusa de não passar frequentemente de um caso de egoísmo. Mais do que cuidar do bem do outro, segundo ele, a caridade visaria, acima de tudo, para quem a põe em prática, ser recompensado com a salvação eterna.

    Se do mais nobre ideal de filantropia se deve eliminar qualquer ideia de retorno interesseiro, o mesmo temos de pensar, com mais razão ainda, da caridade, quando ela é exercida com inteira pureza de intenção. A natureza cristã da caridade e o respetivo enquadramento bíblico e teológico, ao invés do sentido laico de filantropia, têm na mensagem evangélica um suplemento de motivação e de exigência. A caridade como expressão teológica de compaixão pelo próximo transcende o plano meramente sociológico da filantropia. Não se pode, no entanto, pretender que o aparecimento das obras de caridade cristã representa uma novidade absoluta. Também entre pagãos se encontram manifestações de bondade, acolhimento do outro e solidariedade. O espírito de bem-fazer, distribuindo em benefício da sociedade e dos mais necessitados bens que são propriedade de privados, socializa o bem-estar e aprofunda os laços de coesão social. Nem sempre, porém, os gestos filantrópicos trazem benefícios apenas às pessoas e comunidades a quem se destinam. Por vezes, esses gestos são instrumentalizados e servem para alcançar objetivos pouco claros e interesses menos nobres por parte daqueles que os praticam.

    No número único de Beja-Creche, publicado em Coimbra, em abril de 1885, Antero teceu breves e interessantes considerações sobre “Socialismo e Filantropia”, pondo em relevo quanto existe de revolucionário e de combate às desigualdades no espírito filantrópico. São três os pontos principais aí aflorados: a novidade da semântica social do termo “filantropia”, a relação com a prática da caridade, o alcance revolucionário do sentimento filantrópico. O termo usado pelas línguas modernas impôs-se às doutrinas liberais e individualistas como nova função do Estado moderno, chamado a criar e financiar instituições destinadas a mitigar as desigualdades, a fazer face às calamidades e a socorrer os mais pobres. Mais do que a novidade lexical que, em rigor, o vocábulo não tem, o termo define-se pela inovação semântica com que se apresenta nas sociedades modernas em vias de industrialização. A filantropia protesta contra as desigualdades e a exploração dos trabalhadores e ensaia o ideal de acabar com elas. Estaremos em presença de nova espécie da tradicional virtude da caridade cristã, uma caridade cívica e secular ajustada às condições de reorganização social e política de sociedades laicizadas? Antero afasta com firmeza a ideia de filantropia como caridade secular. O incontestável novo sentimento social ínsito na noção de filantropia distingue-se do sentido religioso e poético-místico da caridade. A sensibilidade filantrópica tem outra génese. É filha da razão e da justiça, cujas dinâmicas abrem caminho à igualdade entre os seres humanos. Genuína no dinamismo dessa sensibilidade, ela é “o prenúncio duma radical transformação nas noções de ordem social, duma concepção da sociedade segundo as normas da pura Razão, e tal que, diante dela, a desigualdade […] tem de desaparecer” (QUENTAL, 1994, 206). Há, pois, grande potencial revolucionário nessa dinâmica que só o futuro haverá de fazer eclodir. Entretanto, na semântica social da filantropia podem vislumbrar-se sementes de socialismo e de igualdade. Tudo isso e sempre, sem esquecer a mística da fraternidade, a fraternidade operária, que impregnou o sentido filantrópico de Antero. É a fraternidade generosa do samaritano que não exclui ninguém que esteja a precisar de atenção e cuidado.

    Sendo verdade que a justiça é a virtude por excelência, ela está, porém, longe de ser perfeita e suficiente para garantir o ideal de felicidade e de vida boa a que aspira o homem em sociedade. Carece do auxílio e complemento de outras virtudes, em particular da solidariedade pessoal, atitude capaz de compensar as inevitáveis limitações e insuficiências práticas da justiça. O próprio apoio prestado para que se faça justiça, quando contra ela se erguem resistências e má vontade, é ainda corajoso exercício de solidariedade. A consciência das desigualdades e das formas de exploração da força de trabalho a que recorriam os capitalistas e patrões, durante o desenrolar da revolução industrial, desencadeou a reflexão sobre as soluções que deveriam ser ensaiadas. Assim, enquanto prosseguiam os avanços do liberalismo económico, ganhavam terreno novas exigências sociais e movimentos de inspiração socialista e comunista. Entre os extremos do liberalismo e do socialismo, a solidariedade filantrópica desencadeou, no decurso do século XIX, as condições propícias ao aparecimento de políticas solidaristas. O contrato social proposto pelo solidarismo de Léon Bourgeois (1851-1925) baseia-se no reconhecimento do muito que cada indivíduo deve aos outros, à sociedade, por lhe proporcionarem a satisfação de todo o tipo de necessidades. Ao invés do carácter privativo do contrato social de Rousseau, feito de alienação da liberdade e de perda de poder do indivíduo, a visão solidária de Léon Bourgeois tem sentido positivo. Note-se que para os doutrinários do solidarismo, a solidariedade social não implica amor do próximo nem caridade, que se traduzem na generosidade do puro dom. Pelo contrário, a solidariedade exprime, na sua essência, “um ato de justiça que releva das regras do direito e está sujeito a sanções sociais” (LOEFFEL, 2000, 134). Da relação solidária com os outros faz parte que o espírito de cooperação prevaleça sobre a inclinação para a rivalidade e a competição. A solidariedade também se manifesta no campo económico e financeiro pela livre associação de indivíduos empenhados em mobilizar recursos que possam assegurar os meios indispensáveis à satisfação das necessidades materiais dos seus membros. Neste caso, o mutualismo coexiste com a economia de mercado, mas sem visar o lucro. Consequência da solidariedade económica é o aparecimento do pensamento cooperativo e a sua aplicação à formação de associações cooperativas a partir do século XIX. Insere-se nessa tradição social a militância cooperativista de António Sérgio (1883-1969). No âmbito financeiro, a instituição do microcrédito nascida na década final do século passado no Bangladeche propunha-se ajudar a solucionar a situação de pobreza e a promover o desenvolvimento. Mas o que era uma iniciativa filantrópica, foi sendo subvertida por vários fatores, entre os quais o espírito capitalista. Há no solidarismo a procura de mais justiça como resposta à questão social e como reformismo social. Trata-se de concretizar por essa via um programa político igualmente distante do individualismo liberal e do socialismo coletivista. Registe-se aqui que o princípio da solidariedade se encontra consagrado na Constituição portuguesa de 1976, em cujo art. 1º se afirma que a República está “empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

    Embora não abundem em Portugal gestos notáveis de filantropia e nem sempre as fundações existentes primem pela relevância pública dos serviços culturais, científicos ou sociais que prometem, conhecem-se alguns casos de mérito notório. Mencionemos, em meados do século passado, o benemérito arménio Calouste Gulbenkian (1869-1955), insigne colecionador e filantropo. Por disposição testamentária, legou os bens, para com eles ser criada uma fundação em Lisboa, cidade onde passou os últimos anos de vida. Com estatutos aprovados em 18 de julho de 1956, a Fundação Calouste Gulbenkian logo começou a desenvolver iniciativas de indiscutível valor para a promoção das artes, ciências, educação e elevação social e cultural dos portugueses. Em pleno século XXI, foram criadas em Portugal algumas instituições beneméritas. Entre elas conta-se a Fundação Champalimaud, obra instituída em 2004 pelo genial empresário e filantropo António Sommer Champalimaud (1918-2004). Foram-lhe atribuídos os objetivos de promover a investigação biomédica nos domínios das Neurociências e da Oncologia, e também de proporcionar cuidados clínicos de excelência. Também a Fundação Francisco Manuel dos Santos (1876-1953), fundada em 2009, presta generoso serviço público ao estimular o conhecimento objetivo da sociedade portuguesa e assim contribuir para a solução dos problemas nacionais. Nesse mesmo ano de 2009, foi instituída no Porto a Fundação António da Mota, para perpetuar o exemplo legado pelo empresário que subiu a pulso na vida e se tornou grande filantropo, Manuel António da Mota (1913-1995).

    Referimos acima que o termo “humanitarismo” faz parte do campo semântico de filantropia. De facto, o termo generalizou-se no século XIX, com o sentido de sentimento e ação que visam o bem da humanidade. À sensibilidade assim difundida corresponderam iniciativas da sociedade civil destinadas a mitigar o sofrimento e as adversidades causadas por catástrofes naturais e pelo próprio homem. Começaram a partir de então importantes associações humanitárias de carácter nacional e internacional, de que se registam aqui alguns exemplos. Para defender as vítimas de conflitos armados, foi criada em 1863 a organização internacional da Cruz Vermelha. Na década de 1880, foi fundada no Brasil a Associação Central Abolicionista, cuja finalidade era acabar com a escravatura no país. Ao findar o século XIX, surgiu a Cáritas, confederação internacional de organizações humanitárias católicas dedicadas ao serviço dos pobres e marginalizados. A Amnistia Internacional nasceu em 1961 como movimento internacional empenhado em defender os direitos humanos. Desde o final do século passado tem-se assistido à multiplicação de Organizações Não Governamentais (ONG) e de Instituições Particulares de Solidariedade Social, instituições humanitárias, quer laicas quer religiosas, formadas no seio da sociedade civil. As dinâmicas da ação empreendedora realizadas por estas associações refutam com pertinência a visão pejorativa do humanitarismo, por vezes acusado de idealista, abstrato, vago, sonhador.

     

    Bibliografia

    CAMPS, V. (1990). Virtudes Públicas. Madrid: Espasa-Calpe.

    GUSDORF, G. (1971). Les Principes de la Pensée au Siècle des Lumières. Paris: Payot.

    LIMA, J. (2018). “Anticaritativismo”. In J. E. Franco (coord.). Dicionário dos Antis (297-300). (vol. I). Lisboa: INCM.

    LOEFFEL, L. (2000). La Question du Fondement de la Morale Laïque sous la IIIe République (1870-1910). Paris: PUF.

    QUENTAL, A. (1994). Política. Org., introd. e notas de J. Serrão. S.l.: Universidade dos Açores.

    SÉRGIO, A. (1958). Sobre o Espírito do Cooperativismo. Lisboa, Ateneu Cooperativo.

    TEIXEIRA, A. (2019). “O religioso e o humanitário: Heterotopias da compaixão”. In M. C. Henriques (org.). Thomas More e o Sonho de um Mundo Melhor. Lisboa: Editorial Cáritas.

     

    Autor: Luís Machado de Abreu

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