Freire, Paulo [Dicionário Global]
Freire, Paulo [Dicionário Global]
O patrono da educação brasileira, Paulo Reglus Neves Freire, nasceu a 19 de setembro de 1921 na cidade de Recife, estado de Pernambuco, e faleceu a 2 de maio de 1997 na cidade de São Paulo. Formou-se em Direito, porém, nunca exerceu a profissão. A partir de seus estudos sobre linguagem, atuou como professor de língua portuguesa no então segundo grau e em diversas instituições, com destaque para o Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife, de que foi diretor. Suas experiências junto dos trabalhadores e das trabalhadoras, e sobretudo os importantes e reconhecidos resultados com seu programa de alfabetização de adultos, levaram-no a ser indicado para atuar junto ao Ministério da Educação.
Entretanto, a 1 de abril de 1964, um golpe civil militar impôs à população brasileira um estado repressor, que passou a controlar as organizações sociais, restringindo as liberdades, perseguindo os movimentos estudantis, os sindicatos e demais organizações profissionais da sociedade civil, minando os direitos dos cidadãos e das cidadãs, sem o exercício autônomo dos poderes legislativo e judiciário.
Nas décadas anteriores ao Golpe Militar, havia importantes mobilizações populares, tanto no campo quanto na cidade, defendendo as lutas de ampliação dos direitos sociais e trabalhistas e condições dignas de vida para as populações mais pobres. Destacavam-se os movimentos populares por alfabetização, por mais verbas para saúde, educação e moradia popular. Essas reivindicações eram demandadas em programas sociais que tinham como princípios a emergência por uma ampla reforma de base, que pudesse atender aos aspectos das legislações internacionais e nacionais, no âmbito dos direitos das pessoas, interrompidos pelos atos institucionais autoritários, que cercearam as liberdades individuais e coletivas. Esses atos fecharam o Congresso Nacional, instituíram as eleições indiretas em todos os níveis dos poderes legislativo, executivo e judiciário, atingindo a organização educacional com a lei n.º 5.540/68, que impôs a obrigatoriedade do vestibular, impedindo o acesso direto dos jovens aos cursos universitários, e a reforma do ensino de I e II graus, lei n.º 5.692/71, que impôs a obrigatoriedade da profissionalização técnica para inserção imediata no mercado de trabalho.
Esses pressupostos traziam a contenção de acessos livres ao ensino superior e a formação profissionalizante para os jovens estudantes, impondo o princípio da terminalidade do ciclo de formação secundária para a rápida inserção no mercado de trabalho, num amplo descompromisso com o financiamento público da educação brasileira. Para ficarmos apenas no campo da educação, no início da década de 1960, surgiram os primeiros movimentos de cultura popular, seguidos, imediatamente, pelo Movimento de Educação de Base (março de 1961), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, mas financiado pelo Governo Federal. Com ele, pretendia-se oferecer à população rural oportunidade de alfabetização num contexto de educação de base, buscando ajudar na promoção da formação de direitos iguais para homens e mulheres do campo e em sua preparação para as reformas indispensáveis, tais como a reforma agrária, na saúde e na habitação. “Em 1963, foi criado o Plano Nacional de Alfabetização, que foi transformado pelo governo, em janeiro de 1964, na Comissão Nacional de Alfabetização (antes do golpe militar]. O Plano teve por objetivo traçar uma política nacional nesse campo, incentivar e coordenar os diversos esforços, visando a erradicar o analfabetismo” (CARMINATI, 1997, 43).
Também em 1961 deflagrou, na cidade de Natal, estado do Rio Grande do Norte, a campanha De Pé no Chão também Se Aprende a Ler, em que se discutia os problemas do analfabetismo na cidade, com a implantação de diversas ações em bairros pobres, propiciando às suas populações o acesso à escolas, à saúde, aos museus e à valorização das danças e culturas populares.
O direito à palavra e ao conhecimento caracteriza a motivação basilar do pensamento e da praxis de Freire. As pessoas pobres desprovidas de qualquer bem, material ou imaterial, eram o foco de seu trabalho: “Negando às maiorias o direito de dizer a sua palavra, de pensar certo, dialogar e debater sobre o mundo em que vivem, as classes dominantes sabem que estão atrofiando um grande potencial de resistência e libertação dos oprimidos” (ZITKOSKI, 2006, 30).
Sem menosprezar as demais pessoas, mas com elas assumindo compromissos para a libertação coletiva, Freire se dirige à formação dos sujeitos marginalizados, sem quaisquer direitos, pois as condições de pobreza em que viviam não lhes possibilitavam sequer reconhecer-se enquanto capazes de serem mais, de serem pessoas, como bem expressa em seus escritos. A negação dos direitos à dignidade e à alfabetização representava não poder assumir a palavra e nela atribuir os sentidos para a existência. Neste processo, “o analfabeto não é mais uma pessoa que vive à margem da sociedade, um homem marginalizado, mas, ao contrário, um representante das camadas dominadas da sociedade, em oposição consciente ou inconsciente àqueles que, no interior da estrutura, o tratam como uma coisa” (FREIRE, 2016, 125). Assim, Freire interpretou e analisou a difícil situação de vida de mais de 40% da população brasileira, assim como de muitos outros países latino-americanos, como o Haiti, a Bolívia, o Peru e a Venezuela, que passavam por semelhante marginalização, tendo a sua população excluída dos direitos humanos fundamentais e necessários à sua (re)existência. Convencido desse seu compromisso humanizador, Paulo Freire assume o direito à alfabetização como um direito humano à vida, dando a essas populações a possibilidade de se tornarem pessoas e sujeitos da História, num intenso processo de responsabilização por ela e pela sua mudança.
Quando os seres oprimidos procuram realizar a humanização, em busca de sua autonomia, com liberdade e pertencimento, essa é vista como subversão, como confronto às ordens estabelecidas, sendo necessário, na visão dos opressores, o controle dos oprimidos, mantendo-os como coisas e objetos, propriedades suas: “Desde o começo mesmo da luta pela humanização, pela superação da contradição opressor-oprimidos, é preciso que eles se convençam de que esta luta exige deles, a partir do momento em que a aceitam, a sua responsabilidade total” (FREIRE, 1987, 85). Há, assim, uma necessidade imperiosa de compreensão da condição de opressão à que os oprimidos estão submetidos, dos direitos que lhes são negados, para uma tomada de consciência de seu lugar na História como possibilidade de mudança, de superação das contradições que habitam neles: “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos” (FREIRE, 1987, 30).
A perspectiva indicada pelo autor não se descola de suas experiências e dos compromissos vivenciados, tanto nos países latino-americanos, como nos europeus, africanos e asiáticos. Sua praxis pedagógica, alimentada pelas lutas dos pobres pelos direitos humanos, dos oprimidos e por todos aqueles homens e aquelas mulheres comprometidos com um mundo mais justo e solidário, deu-se no chão das comunidades, das escolas, dos espaços mais equidistantes do mundo, onde poucos chegavam, com mensagens de encorajamento, de força, de apoio para as suas lutas por melhores condições e por dignidade humana, traduzidas em estruturas públicas disponíveis para a valorização e criação de culturas, dos círculos de culturas, capazes de arrebatar os sonhos e esperanças.
Nos ambientes desumanizados, de violências e injustiças, Freire semeou o amor, a esperança e a alvorada de um mundo melhor. A sua prática pedagógica revestia-se do compromisso político, entrelaçada com a dimensão de construção de suas vidas, partilhadas enquanto elemento chave da construção coletiva: “Não há, porém, humanização na opressão, assim como não pode haver desumanização na verdadeira libertação. Mas, por outro lado, a libertação não se dá dentro da consciência dos homens, isolada do mundo, senão na práxis dos homens dentro da história, que, implicando a relação consciência-mundo, envolve a consciência crítica dessa relação” (FREIRE, 2011, 159).
Neste sentido, a educação como tarefa humanizadora e libertadora apoia-se no ato de conhecer como formação da consciência, enquanto a educação como dominação desumanizante baseia-se apenas na transferência de conhecimento, na submissão do estudante, no ato bancário de um objeto que apenas recebe informação sem o concretizar de uma transformação de sua vida, para ser mais, como ato político de sujeitos capazes de transformarem a História. Essa consciência pode ser interpretada, a partir dos escritos de Freire, como uma intencionalidade para com o mundo. Isso pode ser expresso na breve passagem em que afirma estar em reuniões em Genebra, nos preparativos das atividades na Guiné-Bissau, cuja metodologia indicava uma forma não de levar e sim de ouvir, de dialogar: “Como militantes e não como especialistas neutros ou técnicos frios é que aceitamos, como disse antes, o convite do Governo da Guiné-Bissau, e nesta condição é que, em setembro do ano passado, fizemos a nossa primeira visita ao país. Daí que tenhamos deixado Genebra dispostos a ver e a ouvir, a indagar e a discutir, e não carregando conosco, em nossas valises de mão, planos salvadores ou relatórios semielaborados. Em equipe, debatêramos, em Genebra, a melhor maneira de, na Guiné-Bissau, ver e ouvir, indagar e discutir, de que resultaria o programa de nossa contribuição. Programa, portanto, a nascer lá, em diálogo com os nacionais, em torno de sua realidade, de suas necessidades e de nossas possibilidades, e não em Genebra, feito por nós para eles” (FREIRE, 2011, 23).
Talvez cause estranheza ao leitor sua estada em Genebra. Mas, após ter sido exilado em 1964, Freire passou por países como Bolívia, Chile, Estados Unidos e Suíça, dentre outros. Atuou por muitos anos junto ao Conselho Mundial das Igrejas, assim como noutros países europeus, em missões internacionais, pelos continentes africano e asiático.
Do exílio até seu retorno ao Brasil, após a publicação da lei de anistia aos exilados políticos, no ano de 1979, mediante um acordo possível das forças democráticas e dentre elas, destacou-se a liderança do cardeal católico Dom Paulo Evaristo Arns, da Arquidiocese de São Paulo, que pavimentou o caminho para um acordo pela anistia de todos os exilados brasileiros que viviam fora do país, dentre eles Paulo Freire. O exílio propiciara-lhe aprendizagens dolorosas, como expressou em diversos momentos, mas que foram importantes para si, e das quais os brasileiros puderam usufruir após seu retorno ao país.
A maturidade de seu pensamento, o reconhecimento de sua obra no mundo, o recebimento de inúmeros títulos honoríficos, dentre eles o de Doutor Honoris Causa em diversas universidades, como, e.g., a Universidade de Bolonha, na Itália, ampliaram a visibilidade de seu trabalho e de seu compromisso com as populações marginalizadas, aquelas que lutam diuturnamente em busca de seus direitos humanos, dos direitos políticos e dos direitos à vida.
Desse histórico ano de 1979 até 1985, com o fim da Ditadura Militar, as lutas dos inúmeros movimentos populares possibilitaram o nascimento de um novo tempo, com a redemocratização da sociedade, ainda que existam declaradas tentativas de sua destruição nos anos recentes da história de nosso país. Os movimentos em defesa dos direitos humanos continuam organizados em busca da verdade sobre as violências cometidas pelos órgãos de governo no regime militar brasileiro. As famílias lutam incessantemente por reaver os direitos dos desaparecidos e dos mortos políticos, assim como continuam em busca do ressarcimento pelas perdas de seus familiares. Desde então, num amplo processo de busca pela abertura dos arquivos do regime militar, muitos familiares e diversas lideranças ligadas aos direitos humanos tiveram suas solicitações negadas, pois o Estado ainda não lhes possibilitou reaver a verdade e tampouco assumiu a responsabilidade por ter infringido os seus direitos humanitários. As organizações das famílias das vítimas da Ditadura continuam numa luta árdua para reaver seus direitos. Nesse sentido, cabe ressaltar a importância dos movimentos pelo fim da Ditadura, que foram fundamentais para a rearticulação das forças populares em busca de justiça e na construção de balizamentos legais, como a Constituição Federal, promulgada em 1988, cujos princípios basilares restabeleceram o Estado Democrático de direito, o papel das instituições públicas no âmbito dos três poderes – o legislativo, o executivo e o judiciário – e o respeito aos direitos humanos.
Nessa direção, Paulo Freire contribuiu decisivamente como professor, formador e secretário de educação do município de São Paulo. Sua metodologia de alfabetização de adultos continua sendo adotada nos processos formativos e nos materiais produzidos para alunos e alunas, professores e professoras, de muitas redes de ensino de prefeituras e de estados no país.
Desde o fim da Ditadura Militar, em 1985, a sociedade brasileira vem aos poucos se democratizando, ampliando seus espaços de participação e reconhecendo direitos a muitos segmentos marginalizados, oprimidos, excluídos e invisibilizados, não obstante as iniciativas de sua redução, seja a nível legal, seja em termos de políticas de financiamentos públicos. Contudo, os esforços para a retomada dos direitos humanos, sociais e políticos e para a sua manutenção e ampliação necessitam ser construídos permanentemente, uma vez que o negacionismo e manifestações das minorias supremacistas com vieses de raça, condição econômica, credo religioso e classe social vêm ocupando os espaços na sociedade e os poderes legislativo, executivo e judiciário.
O desafio utópico de um mundo novo, justo, amoroso e solidário permanece e deve mover as pessoas em seus cotidianos. A consciência do mundo enquanto consciência do humano deve permear as ações de mudança. A luta pela continuidade da ampliação dos direitos humanos é uma luta popular para fomentar a democratização da sociedade.
O reconhecimento internacional da obra de Paulo Freire e o título de patrono da educação brasileira demarcam os sentidos de seu pensamento, desde sua praxis enquanto compromisso com a educação, passando por um compromisso com todos aqueles que se inspiram em seu legado, na transformação social, na formação de crianças, jovens e adultos em todos os cantos do mundo, desde a educação formal à educação popular. Suas obras, principalmente a Pedagogia do Oprimido, a Pedagogia da Autonomia e a Pedagogia da Esperança, dão-nos a certeza de sua importante contribuição para pensar a educação, os processos e dinâmicas de ensino-aprendizagem, as lutas por justiça, igualdade e direitos humanos das pessoas, desde a infância até a juventude e a vida adulta.
Bibliografia
Impressa
CARMINATI, C. J. (1997). O Ensino de Filosofia no II Grau: Do Seu Afastamento ao Movimento pela Reintrodução (O Caso da Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas – SEAF). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina.
FREIRE, P. (2011). Cartas à Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
FREIRE, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
FREIRE, P. (2015). Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
ZITKOSKI, J. J. (2006). Paulo Freire e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica.
Digital
INSTITUTO PAULO FREIRE (s.d.). “Paulo Freire, patrono da educação brasileira”. Instituto Paulo Freire, https://www.paulofreire.org/paulo-freire-patrono-da-educacao-brasileira (acedido a 07.09.2023).
MEMORIAL VIRTUAL PAULO FREIRE (s.d.). “Paulo Freire”. Memorial Virtual Paulo Freire, http://memorial.paulofreire.org/ (acedido a 07.09.2023).
Autor: Celso João Carminati