Fronteiras [Dicionário Global]
Fronteiras [Dicionário Global]
Na aceção mais simples, “fronteira” (ou “raia”) designa a linha limite entre dois Estados ou comunidades soberanas de base territorial. O aparecimento da noção de “fronteira”, que deriva de front (“frente” ou “testa”), localiza-se normalmente no século XIII. Várias fontes apontam precisamente para a testa avançada de um exército ou praça fortificada “fazendo frente” a outrem (em sentido antropológico) ou ao exogrupo (em sentido sociológico) e a consequente linha de separação entre comunidades políticas independentes. A noção de “fronteira” condensa em si, pois, a integridade territorial como norma internacional reconhecida, sendo o uso da força considerado legítimo perante a eventual violação do território. O respeito da integridade territorial, plasmado no Direito Internacional, implica a fortiori a interdição de acções violentas de expansão ou de conquista com o intuito de alterar as fronteiras interestaduais. Neste sentido, o território define o âmbito da soberania de um Estado em relação a outros. Do mesmo modo, a fronteira permite delimitar as competências jurídicas e o poder efectivo de um Estado sobre o seu território, na linha da categorização proposta por Jean Bodin.
A arena internacional contemporânea é cada vez mais híbrida e contraditória, em grande medida de difícil leitura. A longa transição internacional decorrente de mudanças significativas no sistema internacional desde 1989-1991 é multidimensional e especialmente complexa, marcada por novas dinâmicas horizontais e globais e por significativas tendências contrárias. Ora, as contradições revelam-se especialmente patentes no problema da fronteira. Impõe-se questionar: num sistema fortemente globalizado, quão significativas são as fronteiras clássicas? Qual o papel da fronteira que aparenta adquirir hoje uma nova pertinência? Um dado primordial do mundo contemporâneo é o de que não é composto por Estados-nação em sentido literal – menos de 10% podem ser assim designados (a Islândia, o Japão e Portugal são exemplos históricos de referência, recorrentemente citados no domínio do conhecimento da ciência política). As fronteiras de um Estado raramente correspondem aos limites dos grupos nacionais que dentro delas vivem, com os seus costumes, língua, identidade partilhada ou religião próprias, pelo que escassamente coincidem com a distribuição territorial de um único grupo homogéneo. O conceito de “nação” deriva da palavra de origem latina nascido e suscitava a ideia de laços de sangue comuns a uma dada coletividade humana, evoluindo a partir do século XVII para indicar os habitantes de um país, independentemente da sua composição etno-nacional ou da sua proveniência. Nos estudos sobre nacionalismo, é necessário, pois, não tomar o termo “nação” como sinónimo de unidade jurídica territorial: a doutrina da soberania deriva tanto da idealizada nação originária como fonte do poder político como da fórmula republicana do conjunto dos cidadãos, pelo que a sua utilização neste último sentido não exclui a existência de distintas populações étnicas ou linguísticas, ou até de identidades competitivas, dentro das fronteiras de um mesmo Estado.
Por outro lado, as fronteiras são sempre políticas, constituindo instâncias e estruturas simbólicas determinantes nas relações internacionais. É certo que é possível distinguir fronteiras “convencionais” (ou “artificiais”) – que resultam de acordos expressos entre Estados sem atender à topografia – de fronteiras ditas “naturais”, cujos limites são de alguma forma facilitados por um obstáculo geográfico, sejam rios, montanhas ou lagos. Também devemos considerar a ilusão da homogeneidade quando existem contiguidades geográficas, detetando-se mesmo situações de muito reduzida intercomunicação cultural entre territórios adjacentes, apesar da proliferação das redes sociais e da presença de inúmeras vias de contacto formal ou informal. As fronteiras são também psicológicas e não operam unicamente na vertente externa, mas também no seio das próprias comunidades políticas: podem ser internas. Por definição, são fronteiras algo mais invisíveis e não invalidam a existência de ressentimentos históricos ou sociais. A este propósito, poderíamos citar o mito de relações mais fortes no caso de continuidade por terra, em contraposição a dois pontos separados por água ou por grandes altitudes. Muitas vezes, o que está para lá da “realidade” da fronteira pode constituir a base comum de – ou para – entendimentos mais profundos, tais como valores humanísticos universais que se adquirem ou que transcendem do passado. No caso vertente, falamos da fronteira que não divide, mas que une. Por exemplo, verificam-se situações e dinâmicas de influência transfronteiriça que se prolongam muito para lá dos limites jurídicos territoriais.
O conceito de “fronteira” enquanto ponto de interseção das interações internacionais revela-se, assim, algo paradoxal: tanto separa como pode pôr em relação duas ou mais entidades estaduais. Tem por definição um carácter não unilateral, mas não implica necessariamente um recorte pactício ou acordado. Com efeito, algumas fronteiras perduram no tempo com configurações não reconhecidas de jure e são fator de acentuada instabilidade e de litígios permanentes, pelo que, para estabilizar os limites territoriais, pode haver que proceder à retificação de fronteiras. No caso de Portugal, refira-se a existência da Comissão Interministerial de Limites e Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas. No âmbito da Organização das Nações Unidas, existe uma comissão específica sobre os limites da plataforma continental no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, um importante instrumento jurídico que estipula as regras acerca da soberania dos Estados sobre as respetivas águas adjacentes. A questão da fronteira marítima e, concomitantemente, da riqueza dos fundos marinhos constitui uma variável de crescente importância a considerar na análise das relações internacionais, tal como aquilo que poderíamos designar genericamente, numa leitura mais alargada dos recursos, de novas “fronteiras da energia”. De assinalar que as zonas marítimas sob soberania – de especial relevância para Portugal – compreendem, de acordo com o definido na CNUDM, as águas interiores marítimas, o mar territorial e a zona económica exclusiva (ZEE), incluindo a zona contígua ao mar territorial e a plataforma continental. Na dilucidação das múltiplas vertentes constantes da noção de “fronteira”, pode assumir especial relevância a geopolítica, que se reporta precisamente ao estudo das dinâmicas entre o nexo geográfico ou territorial e a conduta dos Estados no plano internacional, contemplando hodiernamente as várias lógicas: continental, marítima, aérea e do espaço sideral, sem excluir a importância das periferias e de outras franjas de território.
Na análise da problemática da fronteira, importa citar igualmente outros fatores decorrentes do reconhecimento das interdependências complexas e das dinâmicas transnacionais existentes nas relações internacionais contemporâneas, e que só marginalmente são inteligíveis na ótica clássica do jogo das soberanias e do nexo territorial. A transnacionalização crescente da economia mundial e dos mercados financeiros, a que se somou a revolução nas telecomunicações por satélite, entre outros fatores globais, transformou significativamente o meio internacional. Por sua vez, os efeitos globais da modernização, normalmente correlacionados com o crescimento das interdependências e dos processos transnacionais – no quadro do qual as cadeias globais de produção e de fornecimentos assumem relevância de primeiríssimo plano –, contribuem, assim, para gerar uma descontinuidade fundamental no sistema internacional. Com efeito, o crescimento das pulsações transnacionais e a consequente maior permeabilidade das fronteiras, em resultado da forte globalização, implicam elevados níveis de interconectividade – o chamado fator de penetração – entre países e sociedades, com tradução, por exemplo, nos problemas associados à rápida transmissibilidade das pandemias.
No plano metodológico, deparamo-nos com um importante desafio conceptual e empírico que suscita necessariamente agendas de pesquisa mais alargadas, onde se incluem os novos conceitos de governação às escalas global e regional – vulgo novos modos de governança –, mas também no que respeita à própria metamorfose dos Estados contemporâneos, nomeadamente na mutação do modelo de soberania vertical e da correspondente fronteira territorial em sentido mais tradicional. Tais dinâmicas têm um prolongamento interessante nos processos de integração regional, no seio dos quais se visualiza um significativo grau de interdependência entre os seus componentes, definidos pela elevada probabilidade de covariância das suas propriedades sistémicas. A integração política propriamente dita aponta, por sua vez, para processos de relacionamento pacífico entre Estados, que normalmente compartilham uma certa contiguidade espacial ou mesmo algum sentimento de pertença. Um esquema de integração pode ser considerado uma alternativa ou metodologia deliberada de paz nas relações internacionais onde a probabilidade de recurso à guerra no seu seio é drasticamente reduzida ou mesmo anulada. Embora o estudo das dinâmicas de integração política, ou seja, do fenómeno do regionalismo nas relações internacionais, não se limite ao caso europeu, foi em grande medida o laboratório político do projeto comunitário do pós-guerra que permitiu estabilizar hipóteses suscetíveis de generalização a outros contextos macrorregionais. No caso da União Europeia, assume especial relevância o revolucionário Espaço Schengen, uma área composta por 27 países europeus que aboliram todos os tipos de controlo de fronteira entre si, levando as políticas cooperativas de boa vizinhança a um patamar sem paralelo no passado.
Noutro plano da mesma temática, o discurso cosmopolita hodierno propugnando um desígnio de alcance mais universal – conducente igualmente a um potencial esbatimento das fronteiras – aponta para a emergência de uma comunidade imaginada definida em termos da rede societal de cidadãos à escala mundial, facilitadora de políticas integradoras. A sua novidade residiria no ângulo de visão: uma ideia de cultura mais universalizada e em maneiras de estar e de viver mais abertas e pacíficas. Um elemento nuclear do cosmopolitismo é, pois, o facto de que representaria muito mais do que o mero crescimento das interações horizontais entre os Estados, encerrando um potencial de transformar positivamente os padrões comportamentais clássicos desses mesmos Estados nas relações internacionais, contendo importantes virtualidades impulsionadoras da sociedade civil transnacional – contrariando nacionalismos exacerbados, práticas protecionistas e tentações etnocêntricas –, embora consubstancie ele mesmo mais um elemento das contradições de um sistema global ubíquo em que as fronteiras ainda perduram como variáveis determinantes.
Por último, no quadro do presente delineamento, cumpriria fazer referência àquele que constitui porventura – no plano das relações internacionais – um dos principais efeitos sistémicos da globalização com relevância para a problemática das fronteiras: a desterritorialização. Este fenómeno aparenta ter impacto significativo em dois planos principais: primeiro, na conceptualização da segurança que é por definição interdependente, estando associada ao carácter elástico da fronteira de defesa, que não opera nos limites físicos do território soberano, o que explicaria, por exemplo, a importante presença de militares portugueses ao longo das últimas décadas no Kosovo, no Líbano, no aeroporto de Cabul ou na República Centro-Africana. O nexo da segurança interdependente altera, pois, de forma significativa a perceção e a própria realidade do que se poderia designar de meaningful distance; segundo, o chamado terreno cibersimbólico, a que se soma o espectro diversificado dos novos ciberconflitos – por natureza transnacionais –, torna as fronteiras mais porosas e doravante irrelevantes, abrindo uma nova “brecha” no próprio conceito de “fronteira clássica”, constituindo o ciberterrorismo uma das expressões mais graves, com consequências altamente disruptivas para o futuro da estabilidade internacional.
Bibliografia
BILLARD, H. & ENCEL, F. (2021). Atlas des Frontières: Retour des Fronts, Essor des Murs. Paris: Autrement-Flammarion.
LOBO-FERNANDES, L. (2022). “A promessa de uma sociedade global mais aberta: Mito ou realidade nas relações internacionais?”. Relações Internacionais, 76, 59-77.
Autor: Luís Lobo-Fernandes