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    Globalização e Glocalização

    Vivemos hoje num mundo em processo de globalização acelerada. A globalização pode ser entendida, na sua dimensão presentista, como um fenómeno marcado pelo desenvolvimento exponencial, nas últimas décadas, de sistemas de interações, intercâmbios e interconexões, a vários níveis (economia, cultura, crenças, ideias, hábitos, modas, gastronomia, etc.), entre as diferentes sociedades humanas, organizadas em países e nações à escala planetária.

    Dois conceitos-chave são fundamentais para compreendermos o processo de globalização: mobilidades e trocas. À luz destes conceitos operativos, podemos, como perspetiva Edgar Morin no seu Pensar Global, observar as raízes e a evolução da globalização muito para além da sua perceção e vivência contemporânea. Observado na longuíssima duração, o processo de globalização remonta às primigénias mobilidades das comunidades humanas pré-históricas e à sua projeção nos diferentes continentes. Nesses tempos idos, iniciou-se então a grande história das mobilidades ou migrações e do sistema de trocas, que gerou, ao longo dos milénios, a consolidação da presença humana no planeta Terra até aos nossos dias.

    A perceção da globalização é o resultado de um processo de conhecimento do globo terrestre e do cosmos em relação comprometida com os movimentos de projeção e estabelecimento de comunidades humanas em espiral, desde os tempos primordiais da humanidade, nos diferentes territórios do Planeta.

    Ao identificar e definir o que designa como os três processos da globalização, Peter Sloterdijk situa o primigénio “motivo-globo” associado ao esforço filosófico dos antigos em perscrutar o cosmos com um “objetivo cartográfico duplo”, começando pela descrição do “céu dos antigos” e depois da “Terra dos modernos”. Daqui advêm termos-conceitos que hoje constituem o campo semântico da globalização e da emergente ciência da globalogia: “[…] desse nome resultam os derivados adjetivais dos factos ‘globais’, que recentemente, passando pelo desvio do verbo anglo-saxão to globalize, foram de novo realçados ao estatuto de substantivo – o que se deu com a figura híbrida da ‘globalização’. Seja como for, esta expressão tem a vantagem de sublinhar o traço ativo dos acontecimentos mundiais atuais: quando ocorre a globalização, é sempre através de operações com efeitos à distância” (SLOTERDIJK, 2008, 18)

    O domínio humano do mundo faz-se pelo escopo do conhecimento e da tomada de consciência da realidade que se expandiu à medida que a mundividência se foi alargando ou retraindo, ao sabor de ritmos diferenciados nos diversos estádios da história      .

    Assim aconteceu durante milénios, em abrangências mais ou menos regionais, limitadas à escala planetária, até que, de há seiscentos anos a esta parte, com as viagens marítimas transoceânicas promovidas pelos povos ibéricos, esse conhecimento intensificou-se e permitiu oferecer  progressivamente uma mundividência planetária e uma consciência plenamente global da unidade e da diversidade do género humano, da riqueza imensa da fauna, da flora, de paisagens e de possibilidades colocadas sob o olhar de todos os seres humanos pelos meios de transporte e de informação cada vez mais eficientes. O Padre António Vieira (1608-1697), na sua ousada História do Futuro, sintetizou bem o papel significativo destas viagens, nomeadamente as dos portugueses e dos espanhóis, nos séculos XV e XVI, para o completar da globalização do conhecimento de toda a Terra e de toda a humanidade, lembrando que o mundo vivia até então às escuras de si, confinado nos limites dos seus reinos e impérios. Uma parte da humanidade desconhecia uma parte importante da outra. Passou o Planeta a partir de então a ser iluminado em todas as partes pelo conhecimento do todo planetário. Por isso, considera que a mais relevante epopeia portuguesa foi uma gesta gnosiológica, tendo dado a “conhecer o mundo ao mesmo mundo”. (VIEIRA, 2014, 74). A luz do conhecimento global foi, segundo Vieira, a maior valia que inaugurou a plena globalização em que hoje vivemos

    O que diferencia significativamente a globalização hodierna da dos séculos e milénios anteriores é o seu grau de aceleração e de extensão, mais uniforme em todo o globo. Os avanços observados na tecnologia de transportes desde o tempo das Descobertas, e, mais recentemente, com os progressos incrementados nas tecnologias de comunicação e informação, tornaram o mundo mais próximo entre si, sendo possível ter notícia do que acontece nos antípodas da nossa terra e conversar com quem lá vive à distância de um click, operado no teclado de um computador ou de telemóvel. Esta aceleração recente aproximou, pelo conhecimento e a informação, sociedades geograficamente longínquas, começando a ser percecionada como uma mudança significativa na história da humanidade, tendo alguns autores, como Gilles Lipovetski, denominado o nosso tempo como o da Era Global. Marshall Macluhan cunhou uma expressão que se tornou clássica, para caracterizar o estado atual do mundo: uma aldeia global. Esta classificação metafórica ilustra bem essa relação de proximidade entre povos e pessoas individuais de todas as partes do mundo, facilitada pelos progressos das tecnologias, em particular das tecnologias de transporte, de comunicação e de informação.

    Para compreendermos a humanidade, situada no mundo em estado de globalização, Edgar Morin propõe uma visão integral do ser humano, que resulta de uma compreensão profunda daquilo que o caracteriza como tal, ultrapassando mesmo uma aparente contradição das suas partes constituintes mais fundamentais. Na verdade, no humano habitam o indivíduo e o social, o afetivo e o racional, numa relação dialógica complexa e transformadora, mas absolutamente intrínseca à condição humana. Compreender o mundo globalizado implica, num primeiro momento, compreender simbioticamente o humano nas suas diferentes dimensões, enquanto ser uno e múltiplo, transformador e transformado, num entendimento verdadeiramente global da integralidade humana. O humano é, pois, simultaneamente ser passivo e ativo do processo da globalização.

    A globalização tem possibilitado a criação de consciência global em vários planos. Um desses planos conseguidos nos últimos quinhentos anos é a visão completa da diversidade de povos, culturas e civilizações e, por essa via, o reconhecimento do que é específico da humanidade na sua unidade e na sua diferença. Essa unidade passa pela igualdade essencial de todos os seres humanos como seres dotados de razão, emoção, intuição e detentores de uma dignidade equivalente, que não pode ser desconsiderada por critérios de raça, cor, religião, etnia, língua, origem social ou geográfica. Em grande medida, esta consciência da humanidade na sua grandeza, diversidade e unidade antropológica foi fundamental para a reflexão que esteve na base dos direitos humanos, com o especial incremento dado pelo pensamento universalista do Século das Luzes e a elaboração de utopias de felicidade abrangendo toda a comunidade humana.

    A proclamação dos Direitos do Homem em 1789 e a sua atualização concetual no século XX, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, inscreve-se nesta longa e fecunda reflexão moderna sobre o que é o ser humano, sobre o que é a humanidade e sobre as condições que garantem a sua dignidade.

    Cada vez mais, a globalização favoreceu a assunção de uma consciência mundial sobre a importância de fortalecer e defender a causa dos direitos humanos como instrumento para a construção de uma humanidade mais feliz no seu conjunto, constituindo-se esta causa como talvez a maior utopia hodierna a realizar, a par do ideário de sustentabilidade ecológica, pelo fomento de uma relação equilibrada entre os seres humanos e a natureza. Na verdade, a globalização trouxe uma convicção cada vez mais global do alcance destes direitos e do seu poder transformador, mas também trouxe uma perceção dos desníveis, dos desequilíbrios, das desigualdades, à luz desse ideal de edificar uma humanidade mais justa e mais fraterna.

    Essa perceção aguda tem gerado os chamados movimentos de antiglobalização, que reclamam uma nova economia, mais distributiva e mais justa, assim como o respeito pelas especificidades de cada povo e das diferentes culturas, contra as tendências homogeneizantes da globalização.

    Importa ainda notar que, se os direitos humanos, concebidos no quadro da cultura ocidental, se apresentam com um ideário de realização planetária destinado a toda a humanidade, também levantam questões, que se prendem com os limites do seu carácter universalista. A conceção dos direitos humanos precisa de estar alinhada com o desenvolvimento do processo de glocalização, ou seja, deve considerar, em alguns aspetos, a adaptação às especificidades das diferentes culturas e civilizações, com o seu respetivo quadro de valores, alguns coincidentes outros divergentes do quadro ocidental em que esta codificação teve a sua matriz. Por isso, começam a surgir propostas de declarações glocalizadas, na medida em que propõem esse exercício de adaptação às realidades culturais e identitárias com especificidades que o exigem.

    Bibliografia

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    SLOTERDIJK, P. (2008). Palácio de Cristal: Para uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa: Relógio d’Água.

    VIEIRA, P. A. (2014). Obra Completa Padre António Vieira. (t. III, vol. I: História do Futuro). Dir. J. E. Franco & P. Calafate. Lisboa: Círculo de Leitores.

    VILA-CHÃ, J. J. (org.) (2003). Revista Portuguesa de Filosofia – Filosofia Social e Política na Era da Globalização, 59 (1), 3-264.

     

    Autor: José Eduardo Franco

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