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    Guerra/Conflitos Armados

    1. Conceitos

    As guerras organizadas existem desde há milhares de anos a.C., v. g. na Suméria ou no Egito, segundo o apurado pelos historiadores. No entanto, tentando definir guerras entre Estados em sentido moderno (ou seja, pós-Westfalia), podemos socorrer-nos de um conceito proposto por Oppenheim segundo o qual “[a] guerra é uma disputa entre dois ou mais Estados por meio de suas forças armadas com o objetivo de dominar um ao outro e impor as condições de paz que o vencedor deseja” (Lauterpacht, 1952, II, 202). Fala-se, portanto, de guerras travadas entre forças armadas estaduais que começam por ser reunidas quando era necessário combater e que, progressivamente, se vão tornando permanentes, mais treinadas e disciplinadas. Portanto, progressivamente, vai-se assistir à profissionalização dos exércitos (e também da marinha), embora isso se verifique em diferentes momentos, de Estado para Estado.

    Por seu lado, a expressão “conflito armado” começa a ser usada sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, e inicialmente no âmbito do Direito Internacional Humanitário (DIH), atendendo ao alargamento do seu contexto de aplicação, que deixa de estar restringido a situações de hostilidades graves entre Estados para passar a regular também conflitos armados sem carácter interestadual, ou seja, conflitos intraestaduais. Contudo, apesar das várias referências à expressão “conflito armado” nos documentos que integram o DIH, neles não encontramos a explicitação do conceito. Podemos, no entanto, socorrer-nos de um contributo importante para o apuramento do conceito, tendendo a decisão do Tribunal Internacional Penal para a ex-Jugoslávia, no caso Prosecutor v. Duško Tadić, em que sustentou que “um conflito armado existe sempre que há um recurso à força armada entre Estados ou um conflito armado prolongado entre as autoridades governamentais e grupos armados organizados ou entre tais grupos no seio de Estado” (Decision on the Defence Motion for Interlocutory Appeal on Jurisdiction, 2 October 1995, § 70), sublinhando, portanto, a necessidade de se conjugarem dois elementos: uma certa intensidade das hostilidades, por um lado, e organização das partes, por outro.

    O facto de se utilizar a expressão “conflito armado” não afastou o emprego do termo “guerra”, embora agora já não sujeita às exigências formais a que estava submetida.

     

    1. A regulamentação jurídico-internacional da Guerra

    Pode dizer-se que a regulamentação da guerra abrange duas dimensões fundamentais: o jus ad bellum, que determina em que condições é lícito o recurso, por um Estado, à força armada; e o jus in bello, que vem definir os comportamentos lícitos ou ilícitos no decurso das hostilidades. Pode acrescentar-se, a estas duas vertentes, uma terceira, mais recente e que vem adquirindo crescente importância: o jus post bellum. A elas nos vamos referir brevemente.

     

    2.1. Jus ad bellum

    Pode dizer-se que foi esta a dimensão da guerra que mais cedo começou por ser tratada pela doutrina. Deixando de lado os importantes, mas escassos, contributos dados pelas civilizações orientais, pela Grécia Antiga ou pelo império romano, podemos referir que a afirmação da teoria da guerra justa, por S.to Agostinho, no século V da era cristã (ou seja, quando se verifica o fim do império romano do Ocidente), pretendendo definir os parâmetros em que seria legítimo o recurso à guerra, marca o início de uma importante reflexão sobre a questão, que foi seguida por vários autores, sendo a sua mais conhecida sistematização feita por S. Tomás de Aquino. Posteriormente, novas questões foram suscitadas, nomeadamente quanto às relações dos povos europeus com os povos das terras descobertas, distinguindo-se nesse âmbito Francisco de Vitória e a Escola Espanhola de Direito Internacional, por ele fundada, que vem também limitar a possibilidade de recurso legítimo à guerra. Seguiram-se outros autores, em contextos diferentes, como Hugo Grócio, Emmerich de Vattel, Immanuel Kant, entre muitos outros, com a mesma preocupação de determinar em que condições seria legítimo o uso da força armada pelos Estados.

    No que se refere a esforços normativos para regular o recurso à guerra, podemos referir que, no final da Primeira Guerra Mundial, e por força dos horrores vividos no seu decurso, foi criada a Sociedade das Nações, com vista a “desenvolver a cooperação entre as Nações e para lhes garantir a paz e a segurança”, como se lê no preâmbulo do Pacto que a instituiu. Apesar de conter normas no sentido da solução pacífica de diferendos ou de redução dos armamentos nacionais, não proibiu a guerra entre os Estados. Neste aspeto, o máximo que se conseguiu foi estabelecer aquilo que é normalmente designado como “moratória de guerra”, que determina a proibição da guerra por um curto período de tempo, após esforços de solução pacífica. Nos termos do art. 12.º, na sua redação resultante das emendas de 1923, “Todos os Membros da Sociedade convêm que, se entre eles surgir um diferendo suscetível de motivar uma rutura, o submeterão à arbitragem, a um processo judiciário ou ao exame do Conselho. Convêm ainda em não recorrer à guerra em caso algum, antes de expirado o prazo de três meses depois da decisão arbitral ou judicial ou do relatório do Conselho”. Como decorre, estamos longe de uma proibição do recurso à guerra: caso se consiga chegar a uma decisão arbitral (e, portanto, tenha havido acordo quanto à designação do árbitro ou à constituição do tribunal arbitral) ou judicial (para o que ambas as partes teriam de aceitar a jurisdição do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, entretanto criado ao abrigo do art. 14.º do Pacto, e a questão objeto do diferendo deveria ser abrangida por essa aceitação) ou a um relatório do Conselho (o que supunha os acordos de todos os seus membros, uma vez, nos termos do art. 5.º do Pacto, em regra, o Conselho decidia por unanimidade), a proibição de recurso à guerra só vigorava pelo período de três meses após obtida uma destas pronúncias. O que implicava que, transcorrido esse prazo, ficava aberto o recurso à guerra.

    Ainda durante a vigência do Pacto da Sociedade das Nações e em consequência de os Estados Unidos não terem integrado esta organização, foi adotado, em Paris, o Tratado Geral de Renúncia à Guerra, em 1928, que ficou conhecido como Pacto Briand-Kellogg, designação que decorreu de o mesmo se dever a uma proposta inicial de Aristide Briand, ministro dos Negócios Estrangeiros francês, acolhida e desenvolvida por Frank B. Kellogg, secretário de Estado norte-americano. Através deste tratado, a que se vincularam mais de meia centena de Estados, os Estados Partes condenavam o recurso à guerra para a resolução de controvérsias internacionais e a ela renunciavam enquanto instrumento de política nacional nas suas relações mútuas.

    Mas uma proibição geral do recurso à força armada, e mesmo da ameaça desse recurso, só será conseguida no pós-Segunda Guerra Mundial, pela adoção e ratificação da Carta das Nações Unidas, que criou a Organização das Nações Unidas, em cujo art. 2.º, n.º 4 (disposição que define os princípios reguladores da Organização e dos seus membros) se determina que “os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objetivos das Nações Unidas”, princípio a que tem genericamente sido reconhecida a natureza de norma de jus cogens.

    Ao princípio assim afirmado são estabelecidas duas exceções: uma ao abrigo do art. 42.º e outra ao abrigo do art. 51.º da Carta. Pela primeira, permite-se que o Conselho de Segurança, se entender que o uso dos meios que não implicam o uso da força não se revela eficaz numa dada situação, leve a cabo a ação que considere necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais, com recurso a forças aéreas, navais ou terrestres; ou seja, com recurso a meios bélicos. Todavia, nunca foi possível aplicar este artigo, de acordo com os seus termos, uma vez que, não detendo o Conselho de Segurança forças aéreas, navais ou terrestres, tornava-se necessário que os Estados lhas fornecessem. E, por isso, o art. 43.º da Carta prevê a celebração de acordos entre os Estados-Membros, a Organização e o Conselho de Segurança, pelos quais os Estados se obrigavam “a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido […], forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais”. A verdade é que, até à atualidade nenhum destes acordos foi celebrado. Portanto, sem meios para cumprir as obrigações decorrentes do referido art. 42.º, o que o Conselho de Segurança vem fazendo é uma espécie de “delegação” dos poderes que dele decorrem em Estados que se disponibilizam para agir, determinando o objetivo a prosseguir. E, desde a resolução 678 (1990), de 29 de novembro de 1990, o Conselho de Segurança, para autorizar o uso da força a esses Estados, determina que autoriza os Estados-Membros que (…) (definindo os Estados em causa) a usar todos os meios necessários para (…) (estabelecendo os objetivos a prosseguir). Portanto, através do uso da expressão em itálico, procede à referida “delegação”.

    A outra exceção ao princípio do uso da força refere-se à legítima defesa, prevista no art. 51.º da Carta, determinando que, se algum membro das Nações Unidas for alvo de um ataque armado (conceito que não aparece concretizado, mas muitas frequentemente equiparado a ato de agressão, segundo definido na resolução 3314(XXIX), da Assembleia Geral, de 14 de dezembro de 1974), tem o direito de usar a força para se defender, quer individualmente, quer  socorrendo-se da legítima defesa coletiva, caso em que Estados terceiros a quem a vítima do ataque pede ajuda para se defender podem colaborar na sua defesa ou, caso se trate de Estados que são parte, com o agredido, de uma aliança militar, têm a obrigação de colaborar na defesa. Para além de definir as circunstâncias em que há lugar à legítima defesa e os tipos que esta pode assumir, define-se ainda, atendendo à centralidade do Conselho de Segurança no sistema de segurança coletiva previsto na Carta, que as medidas adotadas no exercício de legítima defesa lhe devem ser de imediato comunicadas e não devem afetar a autoridade e a responsabilidade que a Carta lhe confere. Diga-se, ainda, que é geralmente reconhecido que o exercício da legítima defesa está sujeito a princípios que, não aparecendo explicitados na disposição em causa, o enformavam antes da adoção da Carta e continuam a fazê-lo: o princípio da imediatividade (entre ataque e defesa, uma vez que esta é uma reação àquele); o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade. Portanto, traduzindo-se a legítima defesa num facto objetivamente ilícito – o uso da força por um Estado – (ou eventualmente por mais do que um), as circunstâncias em que esse uso da força ocorre – em resposta a um uso grave da força prévio – conduzem à exclusão da ilicitude desse uso da força. Isto mesmo se encontra previsto no Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade do Estado por Factos Internacionalmente Ilícitos, em que se refere à legítima defesa, no art. 21.º, precisamente enquanto circunstância de exclusão da ilicitude.

    Apesar de uma regulamentação mais ou menos linear do jus ad bellum (um princípio geral e duas exceções ao mesmo), a verdade é que, desde a entrada em vigor da Carta, vêm surgindo pontualmente tentativas de alargamento das exceções à proibição em causa. Sem qualquer pretensão de enumeração exaustiva, podemos referir a doutrina de Brejnev, que visou legitimar a intervenção das forças do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia, em 1968, pondo fim ao que ficou conhecido como a “Primavera de Praga”, que vigorava nas relações entre Estados socialistas (concretamente, entre União Soviética e “Estados satélites”) e que afirmava um dever de garantia mútua entre esses Estados, de forma a evitar desvios da ortodoxia marxista; caso esses desvios se verificassem, os líderes do Estado em causa deviam ser chamados à razão para retomar a senda definida e, se tal não fosse suficiente, poderia verificar-se uma intervenção militar nesse Estado para o obrigar a retomar o rumo da ortodoxia marxista. Percebe-se, portanto, que por esta via se pretendeu justificar a intervenção soviética na Checoslováquia (e não só…) e que esta doutrina já não tem campo de aplicação.

    Uma outra tentativa de alargar as possibilidades de uso da força para além do previsto na Carta verificou-se sobretudo no final do século XX, tendo tido acolhimento por uma parte da doutrina, fundamentalmente a propósito da dita intervenção da NATO no Kosovo (sobretudo antes de haver uma perceção real do que aí se passou…). Referimo-nos à intervenção humanitária. Diga-se que vêm sendo adotadas distintas noções de intervenção humanitária, por diferentes autores. Por nós, numa aceção assumidamente restritiva, entendemos intervenção humanitária como uma intervenção feita com recurso à força armada, de carácter unilateral, e sem legitimação pelo Conselho de Segurança, destinada a proteger um grupo de indivíduos vítimas do Estado ou que este não tem capacidade ou interesse em proteger, e que tem lugar sem o consentimento do Estado em cujo território se verifica. Portanto, trata-se de uma intervenção armada, ou seja, com recurso à força, sem autorização do Conselho de Segurança ou do Estado em cujo território ela tem lugar, pelo que incompatível com o regime jurídico do uso da força previsto na Carta e, portanto, ilícito. Sendo certo que se pretende reconhecer-lhe legitimidade, ou mesmo licitude, por força dos objetivos prosseguidos – proteger um grupo de indivíduos vítimas do Estado ou que este não tem capacidade ou interesse em proteger –, a verdade é que, olhando para a prática que pretendeu escudar-se neste conceito, se verifica que esta motivação não foi única ou mesmo que não foi determinante. Como se percebe, por esta via visava-se afirmar uma nova exceção ao princípio da proibição do uso da força.

    Por último, referimos uma tentativa de alargamento das situações em que seria lícito recorrer à força armada, que foi afirmada por Georges W. Bush, na sequência dos ataques terroristas sofridos pelos Estados Unidos a 11 de setembro de 2001, no contexto do que chamou “guerra contra o terrorismo”. Fazendo uma equiparação – indevida – dos ataques terroristas (comportamentos que devem ser tratados à luz do Direito Penal, quer internacional quer interno) a ataques armados, veio sustentar um direito de legítima defesa preemptiva. À luz deste conceito, um Estado poderia acionar o seu direito de legítima defesa face a um ataque cuja ocorrência tinha por certa, embora permanecesse a dúvida quanto ao momento ou ao local em que se verificaria. Como se percebe, isto traduz-se na destruição da própria legítima defesa, ao prescindir da condição para o seu exercício – a verificação de um ataque armado ou, quando menos, a constatação da sua iminência, verificável – e na impossibilidade de aplicação dos princípios que enformam o instituto: como verificar a imediatividade da defesa se não houve ataque? Ou a sua necessidade e proporcionalidade? A aferição do respeito de todos estes princípios só pode ser feita face ao ataque sofrido ou, no mínimo, aos contornos do ataque iminente. Aliás, a própria palavra “defesa” traduz uma reação a um ataque.

     

                2.2. Jus in bello

                O Direito regulador dos comportamentos lícitos/ilícitos no decurso de um conflito armados reconduz-se ao Direito Internacional Humanitário. Atualmente, este ramo do Direito Internacional compreende um núcleo importante de tratados que visam a “humanização da guerra” e têm preocupações sobretudo, embora não exclusivamente, com aqueles que não participam diretamente nas hostilidades. Note-se que a aplicação deste ramo de Direito é independente do jus ad bellum, no sentido em que, para sua aplicação, é absolutamente indiferente se uma parte deu início à sua participação no conflito armado de forma lícita ou ilícita. O Direito Internacional Humanitário é aplicável ao conflito em curso, e apenas a sua verificação é relevante.

    Diga-se, todavia, que os conflitos armados têm sofrido alterações substanciais. Deixando de lado a distinção entre conflitos armados internacionais e não internacionais, que importa para determinar quais as normas de DIH são aplicáveis e, por isso, é tratada em Direito Internacional Humanitário, podemos atentar em que, no pós-Segunda Guerra Mundial, se verifica, face à época anterior, que desapareceu praticamente a declaração de guerra (que, face à proibição do recurso à força armada, na Carta das Nações Unidas, surgiria como uma confissão de que o Estado que a emitisse decidira praticar um ilícito grave) e se constata também uma larga predominância dos conflitos que não têm carácter  interestadual. No mundo bipolar que surgira, os líderes dos blocos existentes – União Soviética e Estados Unidos – nunca se confrontaram diretamente; no entanto, verificaram-se, então, vários conflitos em que os povos, em particular, os africanos, lutavam pela sua autodeterminação (conflitos que viriam a ser qualificados como internacionais; cf. “Direito Internacional Humanitário”, no presente Dicionário), e cada um daqueles Estados instigava o conflito e apoiava uma das fações em luta, dando lugar às chamadas proxy wars ou “guerras por procuração”. Apesar de diferentes das guerras interestaduais, estes conflitos eram travados em territórios definidos, desenrolando-se principalmente em zonas não urbanas e com recursos aos meios de combate convencionais; eram travadas por grupos que tinham uma cadeia de comando bem definida (forças dos movimentos de libertação nacional (de guerrilha) entre si ou contra as forças armadas do colonizador), sendo certo que os grupos guerrilheiros em luta contra o colonizador dirigiam os seus ataques sobretudo contra alvos representativos da soberania; por fim, eram conflitos em que as partes prosseguiam objetivos bem definidos, o que é essencial para qualquer esforço de negociação de solução definitiva do conflito.

    Sobretudo no pós-Guerra Fria, os conflitos não internacionais, ou internos, são largamente predominantes. Trata-se de conflitos com raízes endógenas (sejam elas de carácter étnico, religioso, social…), muitas vezes geradores de fundamentalismos étnicos ou religiosos; travados sobretudo em territórios de Estados fragilizados, em que existem múltiplas fações em luta, conduzindo a um domínio fracionado do território por vários “senhores da guerra” (“warlords”), verificando-se, em muitos casos, uma tendência para as hostilidades não se limitarem a um território definido. Por outro lado, os combates tendem a centrar-se em zonas urbanas, e esbate-se a distinção entre combatentes e civis, numa luta rua a rua, povoação a povoação, em que há um grande envolvimento de boa parte da população e, portanto, de civis sem qualquer preparação; nestes combates, lança-se mão de quaisquer meios que se mostrem eficazes na prossecução da luta, pelo que passamos a encontrar o recurso à violência sexual e, em particular, à violação como arma de guerra (cujas vítimas, na maioria dos casos, são do sexo feminino – desde crianças a mulheres das mais variadas idades –, mas de que se vão conhecendo, em número crescente, também vítimas do sexo masculino) ou o uso de crianças como soldados. Os grupos em luta beneficiam apoios diversificados, têm também capacidade de explorar redes globais, verificando-se, por outro lado, que a sua cadeia de comando se torna difusa. Além disso, os objetivos prosseguidos são pouco claros, o que dificulta qualquer negociação e, portanto, a possibilidade de terminar o conflito. Como decorre, o Estado deixa de ser o detentor exclusivo de uso da força e mesmo de meios tecnologicamente avançados. Diga-se, ainda, que estes conflitos originam vagas imensas de refugiados e de deslocados internos.

    No âmbito destes conflitos pós-Guerra Fria, o Comité Internacional da Cruz Vermelha veio falar de conflitos desestruturados, que reuniam as seguintes caraterísticas: 1) a desintegração dos órgãos de governo central, que já não são capazes de exercer as suas funções sobre o território e população; 2) presença de numerosas fações armadas; 3) controlo fragmentário do território estadual; 4) desintegração da ordem hierárquica nas diferentes fações e suas milícias. Gera-se uma espiral de violência e miséria, pois os grupos armados esgotam os recursos do país no seu próprio sustento, na compra de armas, etc., conduzindo a situações de fome graves da maioria da população, que, em muitos casos, é afastada dos trabalhos do campo, em consequência do conflito, e a quem tiram tudo, inclusivamente os bens que a assistência de organismos humanitários lhes quer fazer chegar.

    Por outro lado, verificam-se também conflitos de baixa intensidade, com níveis flutuantes de violência e deflagrações esporádicas de hostilidades que predominam sobre operações de combate sustentadas e operações militares em larga escala, em que são usadas armas de pequeno porte e ferramentas brutas, como machetes, machados. A frequência instável dos combates dificulta a própria noção acerca da manutenção ou cessão do conflito em determinados momentos…

    Entretanto, a já referida afirmação, por George W. Bush, de um pretenso novo tipo de guerra – a “guerra contra o terrorismo” – também teve consequências a nível da aplicação do Direito Internacional Humanitário, ao retirar o estatuto de prisioneiro de guerra a quem a ele tinha direito – nomeadamente, os combatentes talibãs –, e as garantias dadas a civis em poder de uma parte no conflito, criando situações como as dos tristemente conhecidos prisioneiros de Guantánamo. Por outro lado, e ainda a este propósito, começou a falar-se de “conflitos armados transnacionais”, em que uma das partes é um grupo transnacional, como a al-Qaeda. Todavia, tal não conduz a que o Direito Internacional Humanitário se aplique a esse grupo em toda a parte onde existam células do mesmo, pois o que torna este ramo do
    Direito aplicável é a existência, em cada um dos Estados em que o grupo está localizado, de um conflito armado, não a natureza ou o âmbito geográfico da atividade do grupo. Aliás, se um Estado, ao combater o grupo, sair do seu próprio território, entrando no território de um outro Estado, poderá envolver-se num outro conflito, agora de natureza interestadual.

    Se os conflitos interestaduais nunca desapareceram totalmente, pode referir-se que, já no século XXI, encontramos também conflitos interestaduais que, infelizmente, parecem revestir-se de características geralmente apontadas a conflitos combatidos por quem não tem qualquer formação militar e não conhece os mais básicos princípios que devem ser respeitados no decurso dos conflitos armados, como se verifica no conflito gerado pelo ato de agressão da Rússia à Ucrânia, em que se assiste a uma política de terra queimada em certas zonas da Ucrânia, sem qualquer distinção entre combatentes e civis, por um lado, e objetivos militares e bens de carácter civil, por outro, como exigido pelo Direito Internacional Humanitário; bem como ao uso de armas proibidas por convenções que vinculam ambos os Estados e outras violações graves deste ramo do Direito, quer contra combatentes, quer contra civis e, mesmo, em desrespeito pelas normas que protegem os restos mortais das pessoas falecidas devido às hostilidades.

     

    2.3. Jus post bellum

    O jus post bellum adquiriu importância no pós-Segunda Guerra Mundial e tornou-se fundamental no pós-Guerra Fria. Na verdade, antes da Segunda Guerra Mundial, os conflitos terminavam com a celebração de um tratado de paz, geralmente precedido por umas tréguas – armistício –, em que as condições desse tratado eram negociadas ou, eventualmente, em que havia uma rendição incondicional de uma das partes.

    No pós-Guerra Fria, a ideia de negociar a paz ainda foi viável nas ditas proxy wars. Mas quando chegamos a conflitos armados em que as partes em luta não prosseguem objetivos definidos, a negociação torna-se muito difícil, vide, impossível. Aquilo a que assistimos é à atuação de organizações internacionais (quer a Organização das Nações Unidas, quer organizações regionais) e ONGs tentando levar à suspensão dos confrontos e ganhar espaço para tentar estabelecer missões internacionais (onusianas ou de organizações regionais ou conjuntas) e chegar à cessação das hostilidades. Caso se consiga afirmar a paz, são muitas vezes estabelecidas peace-support operations, ou seja, operações multifacetadas que conjugam uma forte componente militar com uma componente civil significativa, de forma a garantir a estabilização da situação a longo prazo, pautando-se por uma ideia de peacebuilding ou de State building (e note-se que as operações devem ser moldadas às necessidades de cada caso, pelo que nem sempre se revestem das características de um dos tipos de operações, mas têm caraterísticas de diferentes modelos), ou seja, de reconstrução plena do Estado (dito “falhado” ou “colapsado”).

    Estas operações requerem forças multinacionais (e encontramos crescentemente forças onusianas a atuarem em conjugação com forças regionais) que reúnam condições para fazer frente a situações de quebra da paz, pelo que por vezes o objetivo é o de criar condições de segurança que permitam a implementação de uma administração de transição liderada pelas Nações Unidas, com vista à reconstrução do Estado. Nestes casos, há necessidade de alargamento das funções clássicas das missões para abranger atividades de polícia e de reconstrução de infraestruturas (desde escolas a sistemas de distribuição de água, por exemplo), bem como das instituições do Estado, como as de natureza política ou judicial. Para garantir a imparcialidade e isenção da designação dos titulares dos cargos políticos mais relevantes, encontramos frequentemente os membros destas forças a monitorizar eleições.

    Por outro lado, se se tratar de conflitos com raízes endógenas e em que têm lugar comportamentos como os suprarreferidos, percebe-se que a convivência pós-conflito não é nada fácil, pelo que o pessoal destas missões leva a cabo um esforço para tentar que os membros dos grupos que estiveram em luta comecem a dialogar, empenham-se fortemente para atuar nas raízes do conflito (percebe-se que a determinada pessoa é difícil a convivência com alguém que sabe que violou a sua filha, ou a sua mulher; e muitas situações traumáticas poderiam ser chamadas à colação…).

    Esta dimensão é, por isso, importantíssima para que não verifique um reacendimento do conflito, pelo que, para além de contribuir para a reconstrução do Estado, tem também uma significativa dimensão de prevenção de conflito, evitando segundo e terceiro reacendimentos do mesmo conflito.

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    Autora: Assunção Pereira

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