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    Hobbes, Thomas [Dicionário Global]

    O pensamento do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) foi contemporâneo do desenvolvimento moderno de uma filosofia mecanicista, em profunda reação ao mundo escolástico e à hegemonia eclesiástica do medievo. Sua obra magna, Leviatã, descrita por ele como elaboração profética acerca dos nervos e das engrenagens desse grande autômato que é o Estado, desloca o lugar do Homem de criatura para criador, sob a luz sutil do desejo de se ombrear com a arte magna de Deus, a natureza. Do Homem como arte para o Homem como artista: se a modernidade inaugura a famosa rebelião contra a autoridade opressiva do pensamento religioso, seus arautos são todos, uns mais que outros, filósofos do poder. O que realmente podemos? poderia ser assumida como pergunta-chave do pensamento filosófico na modernidade. Hobbes oferecia, em sua resposta, a mais crua autópsia dos mecanismos do poder e do destino humano dependente dele.

    Segundo filho de um clérigo alcoólatra e jogador, Hobbes obteve proficiência em grego e latim aos oito anos, durante sua formação em Malmesbury. Sob a tutela do tio, que financia seus estudos em Magdalen Hall (atualmente uma das faculdades que integram a Universidade de Oxford), o filósofo destaca-se como aluno, tendo mostrado forte interesse pelo estudo das humanidades. É, por isso, recomendado pelo diretor ao Lord Cavendish (futuro conde de Devonshire) para acompanhar seu filho mais velho a uma viagem pela Europa em 1610, exercendo com isso sobre o rapaz influência tão decisiva que os ensaios de William Cavendish deixam dúvidas sobre poderem ter sido redigidos pelo próprio Hobbes. Sob o título de Essays, os manuscritos estabelecem, pelo evidente diálogo com a obra homônima de F. Bacon (de quem Hobbes também era muito próximo), algumas interessantes diferenças no trato de determinados temas, o que fez L. Strauss (1952), por exemplo, repensar a origem da preocupação política do jovem Hobbes sob uma disposição fundamentalmente moral, em vez de geométrica, como se costuma fazer. Uma das provas está na primeira grande empresa intelectual de Hobbes: uma tradução de História da Guerra do Peloponeso, do historiador grego Tucídides, publicada em 1629, que denuncia uma virada histórica fundamental para o que se apresenta como sua filosofia política.

    Isso não reduz, absolutamente, o papel das discussões científicas da época para as vias abertas pela obra de Hobbes. Admirador de Elementos de Euclides e das investigações físicas de G. Galileu (que ele conheceu durante viagem à Itália), o pensador inglês assimila os novos princípios do movimento a partir da geometrização do espaço, agora concebido não mais em domínios estanques com leis distintas, mas em um todo homogêneo, infinito e organizado pela lei da inércia – a estabelecer que os corpos, independentemente de sua natureza, se movem em razão de algo que não lhes é inerente, como uma qualidade, mas pela atuação de uma força externa. A linguagem matemática das ciências impôs-se como modelo para abordar florações do saber tão distintas quanto eram a Física e a Política, aproximadas não só pela credibilidade do rigor metodológico, mas sobretudo pela crença em um saber dominado, do início ao fim, pela razão humana. Como R. J. Ribeiro (2006) comenta, a constatação de que só podemos conhecer, adequada e cientificamente, aquilo que nós mesmos engendramos é parte fundamental da força de atração que as Matemáticas, e a Geometria mais que as outras, exerceram sobre os intelectuais do período moderno. É da condição de verdade reconhecida pela razão geométrica que surgem as hipóteses do contrato social, como mecanismo pelo qual o humano constitui a si mesmo através da sociabilidade. Mas se as Matemáticas parecem servir os propósitos metodológicos de Hobbes, limitar o valor filosófico de suas obras apenas a eles, como faz E. Cassirer (2003), é não reconhecer o peso devido de suas conclusões políticas e da imbricação que elas possuem com o seu tempo.

    A necessidade de ordem é, quase sempre, o reflexo prospectivo de uma época conturbada. Hobbes, feito irmão gêmeo do medo, viveu em um período de guerras violentas entre as dinastias Tudor e Stuart e acabou profundamente abalado pela Guerra Civil, que teve início em 1642 e só encontrou fim com a execução do Rei Carlos I, e de seus aliados, em 1649. Reflexos daqueles movimentos iniciais que culminariam na Guerra Civil podem ser encontrados na primeira grande obra da filosofia de Hobbes, The Elements of Law Natural and Politics (1640), reflexos que seriam depois aprofundados em Behemoth (escrita em 1668, mas só publicada postumamente, expõe uma interpretação das causas da Guerra Civil na Inglaterra entre 1640 e 1660). Dedicado ao então conde William de Newcastle, o livro enfoca a natureza humana sob o interesse de explicitar o que é um corpo político e a lei, a fim de que os homens evitem o medo que têm uns dos outros e tornem possível a paz.

    Após a eclosão da Guerra Civil, Hobbes, em exílio na França e com situação financeira delicada, empreende sua obra cientificamente mais formal e rigorosa, De Cive (1642), terceira parte de uma trilogia em latim forjada de trás para frente (as outras duas partes são De Corpore, publicada em 1655, e De Homine, em 1658). Centrando seu discurso fundamentalmente sobre a questão política, e retomando argumentos expostos na segunda parte de seu Elementos, De Cive apresenta uma longa reflexão sobre a relação da religião com a autoridade civil (depois retomada em Leviatã), além de apresentar as determinantes da razão para o que ele entenderá como “leis naturais”. É nessa trilogia, intitulada Elementorum Philosophiae, que a compreensão física de Hobbes mais claramente sistematiza os elementos que fazem parte dos mecanismos de funcionamento de qualquer substância existente, entre elas, sobretudo, os homens. Fato é que a ordem de publicação adotada por Hobbes inverte a ordem que ele atribui ao seu sistema político, em Elementos de Filosofia, e que descreve o seguinte percurso: a) análise da constituição dos corpos; b) análise da natureza humana; c) análise do corpo político. De Cive, que se propôs aprofundar o ponto c), já trabalhado na segunda parte de Elementos da Lei, é publicado antes do De Corpore (1655), dedicado a expor pela primeira vez os argumentos físicos ou de filosofia primeira tratados junto ao ponto a), e do De Homine (1658), dedicado ao ponto b), também trabalhado na primeira parte de Elementos e Leviatã. Isso significa que o ponto a), cuja disposição pretende conferir fundamento aos dois outros pontos, não se impõe, verdadeiramente, como mais fundamental que os outros dois, o que mais uma vez acentua a preocupação moral em Hobbes como mais importante que seus interesses geométricos.

    Hobbes parece encontrar um clima propício a seu retorno a Londres à época da publicação de seu livro mais conhecido, Leviathan, or Matter, Forme, and Power of a Commonwealth, Ecclesiasticall and Civil (1651). O novo regime de Olivier Cromwell tornou convidativa a obra em que o pensador inglês se propôs, de maneira mais incisiva (e conservadora), à defesa do Estado Absoluto e à refutação das pretensões de as doutrinas religiosas exercerem autoridade sobre o governo civil. Essa preocupação teológico-política encontra na imagem do Leviatã a razão última de seu propósito em conferir unidade aos estudos físicos e políticos:

    Expusemos até aqui a natureza do Homem (cujo orgulho e outras paixões o obrigaram a submeter-se ao governo), juntamente com o grande poder de seu governante, o qual comparámos com o Leviatã, tirando essa comparação dos dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó, onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã, lhe chamou “rei dos soberbos. Não há nada na Terra, disse ele, que se lhe possa comparar. Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas abaixo dele, e é o rei de todos os filhos da soberba.

    É possível que Hobbes nunca tenha resolvido definitivamente essa antítese entre o natural e o artificial, entre o mundo físico e o humano, que seus textos evidenciam, mas não se pode dizer que ele não a tenha percebido. Se parece haver uma continuidade irresistível entre os apetites naturais e o orgulho humano, entre as paixões e a razão, a experiência dessa continuidade é sempre o apelo decisivo que o filósofo inglês nos convida a fazer, como se a lógica dos argumentos dependesse menos do rigor matemático que da introspecção reflexiva para a qual nos mobiliza. É mesmo com vistas a essa autorreflexão que Hobbes postula os dois princípios fundamentais da sua filosofia política – que, segundo ele, inaugura a disciplina enquanto ciência. Tais princípios, no entanto, ao se mostrarem circunscritos ao conceito de natureza humana, evidenciam que o próprio conceito de “natureza” se apresenta problemático, aquele em que melhor se revela a impossibilidade de resolução da antítese, sobretudo se levarmos em conta o caráter das suas reflexões sobre a religião.

    Vejamos. O primeiro princípio sustenta que os apetites naturais levam a que cada um tome como próprio o que é de uso comum (De Cive, dedicatória). A força desse postulado institui o que Hobbes entende por estado de natureza, um momento hipotético a anteceder a instauração do pacto social que edifica ao mesmo tempo a sociedade e o Estado. Em estado de natureza, os homens se igualam, na medida em que, nada tendo que os distinga um dos outros de maneira relevante, anseiam ser reconhecidos pelos demais em certa precedência, em um valor que os faça tão melhores sob o olhar alheio quanto eles são para si mesmos. Ao mesmo tempo, o indivíduo humano é dotado de uma noção radical de liberdade, enquanto direito de fazer ou possuir tudo aquilo que deseja. A paixão que movimenta o desejo de precedência, nomeada de vaidade, dispõe a liberdade dos desejos sob nova base: os apetites naturais, se deixados à própria sorte, transmutam-se em desejo de poder (entendido como os meios de que se dispõe para obter um bem) e de domínio, mas também de ameaça e de temor. A partir da vaidade, o humano desenvolve sua qualidade mais específica: a de calcular e raciocinar, ou seja, a razão.

    Seguindo a natureza racional do Homem, Hobbes nos faz constatar seu segundo princípio, aquele que postula a busca racional para evitar a morte violenta, então assumida como mal supremo (De Homine, 11.6). A igualdade de condições da liberdade em estado de natureza torna cada um vulnerável aos desejos de poder dos outros, porque não só os recursos e bens são finitos, como nada impedirá alguém de realizar seus desejos de posse e de incremento da potência vital. Esse princípio poderia ser assimilado àquele já conhecido instinto de autopreservação da vida, mas a proposição negativa da formulação de Hobbes evidencia o traço mais forte de seu entendimento da racionalidade humana: jamais totalmente desvinculada dos apetites, a razão, ao conceber a necessidade de preservar a vida, não pode negar que esta necessidade esteja fundamentada sobre o afeto generalizada do medo da morte violenta. Aqui é ainda a vaidade quem fala. A disposição racional dos humanos em abrir mão de sua liberdade irrestrita a fim de obter segurança contra a vaidade alheia não só origina o pacto social e o Estado (commonwealth), mas também toda a moralidade possível.

    Há aqui, segundo Martinich (1992), duas interpretações que se opõem: os secularistas afirmariam, por um lado, que é moral a lei fundamentada na autopreservação e na prudência que lhe decorre. O problema com esta abordagem está, naturalmente, em como universalizar preceitos de interesse individual, o que parece denunciar certa ausência de teoria moral em Hobbes. Os religiosos, por outro lado, afirmariam que Hobbes assume uma teoria do comando divino da moralidade, em que o interesse próprio, antes de ser fundamento, apenas mobiliza os humanos para a busca da moralidade. O problema, no entanto, está em que esses últimos acabam por separar a moralidade daquela psicologia tão bem descrita por Hobbes, como se afinal não houvesse continuidade entre as paixões e a razão, entre a natureza e o Estado. De fato, Hobbes pretende elevar o autointeresse ao estatuto moral, a partir de uma derivação racional das leis da natureza, ou seja, dos preceitos descobertos pela razão para evitar a guerra, a partir dos quais se instauram as leis civis, pertencentes ao corpo político e social no qual o egoísmo da autopreservação não mais impõe sua régua valorativa. São essas leis naturais que, confirmadas por Deus, constrangem à submissão todo ser que é racional: ser moral é, portanto, ser racional.

    É por intermédio da razão que Hobbes pôde conceituar as noções de “direito” e “justiça”. Que todo Homem proteja, quanto possível, sua vida e os membros do corpo: eis o princípio do Direito Natural, aquele no qual a liberdade, em estado de natureza, se transmuta em ameaça de guerra de todos contra todos, pois cada um possui os mesmos direitos, enquanto juiz de si próprio, aos meios e às ações de que deve se valer para a autopreservação. Essa autoridade em ajuizar livremente para si mesmo, explicitação última da noção de soberania para Hobbes, é aquilo mesmo de que os humanos deverão abrir mão em favor da república (common-wealth), a fim de poderem garantir a vida contra a ameaça da morte violenta. A constituição do Estado é, desse modo, produto de um paradoxo: a liberdade em buscar os meios de autopreservação provoca o estado generalizado de ameaça da vida por outros humanos dotados de mesma liberdade. Não se trata simplesmente de obter um consenso, mas do estabelecimento de um poder que infunda medo, “coagindo-os assim tanto a manter a paz entre si, como a juntar suas forças contra um inimigo comum” (Elementos da Lei, parte 1, XIX.6).

    As razões a favor e contra as ideias de Hobbes sempre provocaram debates intensos, e já à época, desde que suas obras passaram a ter amplo conhecimento a partir da década de 1650, o pensador inglês viu-se acusado de ser ateu e imoral. Tais acusações, não raro, decorrem dos que se dispuseram a pensar sua teoria só superficialmente. De todas elas, contudo, aquela feita sobre a justificativa possível, oferecida por Hobbes, a toda forma de tirania, sobretudo em Leviatã, talvez seja a mais difícil de recusar. Se ser moral é ser racional, e se é a razão que descobre as leis naturais, propor que o governante esteja justificado ao agir em conflito com elas, desde que mantenha a paz interna e a proteção contra o inimigo externo, favorece quem pretende reconhecer em Hobbes uma filosofia do poder totalitário. O que não se pode deixar de reconhecer, no entanto, é que a constatação ao mesmo tempo do valor da razão, para o estabelecimento das regras morais, e da sua limitação em se fazer aceita, se não for provocada pelos afetos correspondentes, dispõe a obra de Thomas Hobbes como dotada de irrecusável atualidade para a reflexão política em Filosofia – quiçá para nosso autoconhecimento.

    Bibliografia

    BERNARDES, J. (2002). Hobbes e a Liberdade. Rio de Janeiro: Zahar.

    CASSIRER, E. (2003). O Mito do Estado. Trad. Á. Cabral. São Paulo: Códex.

    HOBBES, T. (1998). Leviathan. Ed., introd. e notas de J. Gaskin. Oxford: Oxford University Press.

    HOBBES, T. (2010). Os Elementos da Lei Natural e Política. Introd. J. Gaskin. Trad. B. Simões. São Paulo: Martins Fontes.

    MARTINICH, A. P. (1992). The Two Gods of Leviathan: Thomas Hobbes on Religion and Politics. Cambridge: Cambridge University Press.

    NUNES, P. H. (2010). O Pensamento Político de Thomas Hobbes. S.d.: Simplíssimo Livros.

    RIBEIRO, R. J. (1999). Ao Leitor sem Medo: Hobbes Escrevendo contra o Seu Tempo (2.ª ed.). Belo Horizonte: Ed. UFMG.

    STRAUSS, L. (1952). The Political Philosophy of Hobbes: Its Basis and Its Genesis. Trad. E. M. Sinclair. Chicago/London: Phoenix Books.

    Autor: Cesar de Alencar

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