Orientação Sexual e Identidade de Género [Dicionário Global]
Orientação Sexual e Identidade de Género [Dicionário Global]
I. A orientação sexual e a identidade de género (doravante adotaremos a sigla anglo-saxónica SOGI) referem-se a questões profundamente pessoais da vida das pessoas que têm um impacto significativo na sua vida e no exercício da sua cidadania. Normalmente, estas características referem-se às pessoas LGBTI+, ou seja, pessoas gays, lésbicas, bissexuais, transgénero, intersexo, entre outras, também denominadas por “minorias sexuais”. A proteção dos direitos humanos das pessoas LGBTI+ é um dos desafios mais prementes dos direitos humanos a nível global, como reconheceu em 2011 a então secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, no emblemático discurso “Gay Rights are Human Rights”, proferido no Conselho para os Direitos Humanos. Se tivermos em consideração o panorama social, político e legislativo a nível global, o discurso de Clinton teve o efeito de reforçar a ação da opinião pública mundial de que o mundo continuava a ser muito desigual para os cidadãos.
Mas importa, desde já, clarificar o que devemos entender por orientação sexual e identidade de género. Esta nomenclatura é aquela que é adotada pelo direito internacional dos direitos humanos. E é importante sublinhar que, muitas vezes, as pessoas visadas não se reveem nestes termos, tendo surgido outros, tais como não binário. No entanto, no campo dos direitos humanos, a SOGI é a nomenclatura utilizada, ainda que escassamente. Quer isto dizer que não encontraremos em nenhuma declaração, convenção ou carta de direitos humanos a referência específica às pessoas LGBTI+, mas sim à orientação sexual (sobretudo) e à identidade de género como fatores proibidos de discriminação no acesso aos demais direitos.
Num primeiro momento, a orientação sexual foi enquadrada na categoria sexo, já prevista nos principais tratados de direitos humanos. Neste sentido, em 1994, o caso Toonen v. Australia, no Comité para os Direitos Humanos – órgão responsável por apreciar queixas de violações do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos –, foi disso demonstrativo, uma vez que o Comité entendeu ter havido discriminação com base no fator protegido sexo, que englobava a orientação sexual. Não existia, à época, efetivamente uma distinção “entre sexualidade (ou qualquer dos seus quase-sinónimos) e orientação sexual. A orientação sexual não está separada do desejo, impulso, amor, eros e fenómenos relacionados [e] pretende, dentro das ciências sociais ou do Direito, apontar e ajudar a debater, de forma mais precisa, um aspeto da experiência sexual que carrega um significado social e político particular. Como a sexualidade em geral, a orientação sexual ‘flutua’” (HEINZE, 1995, 45 [tradução nossa]). Esta situação continua a desafiar o reconhecimento legal do estatuto da SOGI, sobretudo porque estamos perante um conjunto de fatores que se caracterizam por uma grande fluidez, desde logo a orientação sexual, mas também o reconhecimento legal da identidade de género e a sua autodeclaração, bem como a identidade não binária (O’HALLORAN, 2020, 39-41).
Só na segunda metade da década de 2000 surgiu aquela que pode ser entendida como uma definição consensual do entendimento de ambos os conceitos. Em 2006, um conjunto de ativistas e académicos reuniu-se em Yogyakarta, na Indonésia, para encontrar estratégias que garantissem a segurança e a igualdade das pessoas LGBTI+ no globo. O resultado foi a adoção dos The Yogyakarta Principles. The Application of International Human Rights Law in relation to Sexual Orientation and Gender Identity, comummente conhecidos como “Princípios de Yogyakarta”. Estes princípios, que sublinham quais as obrigações dos Estados para garantir os direitos humanos das pessoas LGBTI+, têm como referencial a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como documento amplamente aceite em matéria de direitos humanos. Assim, determinam os Princípios de Yogyakarta que por orientação sexual “se deve entender a capacidade individual de cada pessoa de uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual, bem como para manter relações íntimas e sexuais com pessoas de um género diferente, do mesmo género, ou mais do que um género” (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2006, 6 [tradução nossa]). Esta proposta está em linha com a posição de vários académicos que foram propondo algumas definições desde o início da década de 1990 (GARRIDO, 2019, 96). Para além disso, aponta-nos, então, que todas as pessoas têm uma orientação sexual, traduzindo-se numa experiência transversal a toda a humanidade. Assim, o termo orientação sexual remete-nos para um conjunto vasto de orientações, sejam elas heterossexual, homossexual – muito embora o termo já não seja utilizado, por ter uma conotação historicamente negativa, e preferindo-se a denominação gay – ou bissexual, quando se referem, respetivamente, à atração para com pessoas do género oposto, do mesmo género ou para mais do que um género. Sendo uma experiência individual, o espectro foi alargado para acomodar outras orientações, tais como a androssexualidade, a demissexualidade, a pansexualidade ou, mais recentemente, a digissexualidade, entre muitas outras. No entanto, a definição conceptual de orientação sexual proposta pelos Princípios de Yogyakarta não é isenta de críticas, nem de problemas de interpretação, como, por exemplo, no caso das pessoas que se identificam como assexuais – um termo amplo que agrega um conjunto de orientações que têm em comum o facto de as pessoas não terem atração, emocional ou sexual, por qualquer género. É inequívoco que se trata de uma orientação sexual, mas a definição proposta por Yogyakarta não parece contemplar essa possibilidade, ao sustentar a ligação intrínseca entre a atração e a capacidade de se envolver como basilares na definição de orientação sexual.
No que concerne à identidade de género, é importante definir, previamente, o que se entende por género. Foi na Conferência de Pequim, em 1995, que primeiramente se definiu o termo género. Desde então, o género passou a figurar como uma categoria protegida no âmbito do direito internacional dos direitos humanos. Servimo-nos da definição oferecida pelo Instituto Johns Hopkins Program for International Education in Gynecology and Obstetric (JHPIEGO), da University of Johns Hopkins, que define género como os “atributos económicos, sociais, políticos e culturais e as oportunidades associadas ao facto de serem mulheres ou homens. As definições sociais do que se deve entender por ser uma mulher ou um homem variam consoante a cultura e modificam-se com o tempo. O género é uma expressão sociocultural de características e papéis particulares que estão associados a certos grupos de pessoas com referência ao seu sexo e sexualidade” (JOHNS HOPKINS PROGRAM FOR INTERNATIONAL EDUCATION IN GYNECOLOGY AND OBSTETRIC, s.d.). Assim, o entendimento do género é específico consoante a cultura e o período de tempo em que se insere. Por outro lado, o género determina aquilo que é esperado, permitido ou ainda valorizado por determinada sociedade, consoante o género em questão.
Partindo desta definição conceptual de género, é possível avançar para a delimitação da identidade de género. Recorremos novamente aos Princípios de Yogyakarta, que a definem como a “experiência interna e individual de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído à nascença, incluindo o sentido pessoal do corpo (que pode implicar, se for livremente escolhido, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de género, incluindo a forma de vestir, o discurso ou maneirismos” (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2006, 6).
Tratando-se a SOGI de características profundamente identitárias de cada indivíduo, estes não as podem escolher, nem tampouco abdicar delas. A abertura das sociedades, sobretudo das sociedades europeias, à diversidade e à inclusão das pessoas LGBTI+ foi um processo complexo, em distintas velocidades, e que se mantém em permanente construção. Este caminho inacabado resulta, sobretudo, de se compreender que os processos de marginalização e discriminação não residem exclusivamente na orientação sexual e na identidade de género dos sujeitos, mas sobretudo na relação destas características com outras. Os estudos mais recentes têm prestado atenção à interseccionalidade no que se refere à discriminação e à diferente experiência de cidadania. Como refere Alba Alonso, os “indivíduos situados entre eixos diversos (mulheres negras, lésbicas, etc.) sofreriam a desigualdade de modo único e qualitativamente diferente, impossível de ser analisado a partir de uma mera soma de categorias” (ALONSO, 2010). Assim, a interseccionalidade é uma “combinação de outros tipos de critérios de diferença, como a classe, a raça ou a orientação sexual, sublinhando a relevância de todos eles para entender as desigualdades” (ALONSO, 2010). Assim, as intersecções identitárias, ou outras, vão ter um impacto determinante para, no caso das minorias sexuais, a desigualdade e a marginalização.
II. A homossexualidade teve, ao longo da história da humanidade, entendimentos e inclusões distintas. Deter-nos-emos no período que se inicia com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no qual os direitos humanos ascendem a tal e deixam de estar na esfera estadual e no domínio reservado dos Estados. O mundo era caracterizado, a 10 de dezembro de 1948, por uma prevalência da intolerância e da ampla criminalização das relações sexuais consentidas entre adultos do mesmo sexo. Na Europa, vigoravam os códigos penais que criminalizavam os “vícios contra a natureza” ou as “ofensas não-naturais”, dependendo do contexto. No caso português, encontrava-se em vigor o Código Penal de 1886, alterado em 1954, que previa medidas de segurança – desde logo a restrição da liberdade, ou liberdade vigiada, o internamento obrigatório ou qualquer outra medida prevista no art. 70.º – para aqueles que “habitualmente se entregassem aos vícios contra a natureza”, de acordo com o art. 71.º do mesmo diploma. Esta redação é bastante genérica, mas entendida como referindo-se aos homossexuais.
Antes de 1886, a penalização da homossexualidade era feita por via da criminalização dos atentados aos pudor (CASCAIS, 2020). O Código Penal Português foi exportado para os territórios sob domínio colonial e vigorou muito para além das independências, em 1975. A Guiné-Bissau foi, dentre as ex-colónias portuguesas, aquela que primeiro reviu a sua lei penal para um dispositivo mais adaptado à realidade. Seguiu-se Cabo Verde (2005), São Tomé e Príncipe (2012), Moçambique (2015) e Angola (2021). É interessante perceber que, em todos os países, é deixada cair a formulação colonial dos “vícios contra a natureza”, mas a forma como cada país entende, ao nível do Direito Penal, a orientação sexual e a identidade de género é bastante distinta. Se nos casos da Guiné-Bissau e de Moçambique há uma completa omissão da questão, nos casos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe os homicídios motivados pela orientação sexual da vítima – Cabo Verde alarga a proteção também à identidade de género – têm um agravamento da moldura penal. Mas o caso mais interessante é o recentemente adotado Código Penal da República de Angola, que prevê um agravamento das penas para vários tipos de crimes, quando motivados pela orientação sexual (GARRIDO, 2019, 107 ss.).
III. Partindo da definição dos conceitos de orientação sexual e identidade de género, bem como da importância de uma abordagem interseccional, torna-se importante refletir sobre o seu impacto nos direitos humanos das pessoas LGBTI+. Fica claro que não estamos, portanto, a falar de direitos distintos ou especiais para um grupo determinado, mas sim de direitos humanos universais, dos quais todas as pessoas no mundo são titulares por força da sua humanidade. Por isso mesmo, deve ser abandonada a denominação direitos LGBTI+, muito comum no contexto anglo-saxónico, em favor de direitos humanos das pessoas LGBTI+. Esta alteração permite-nos focar a tónica na pessoa humana, que partilha uma humanidade com todas as demais, sem a segmentar ou compartimentar.
Os principais tratados internacionais de direitos humanos, por regra, não contemplam nenhuma destas duas características. A exceção é a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo art. 21.º proíbe a discriminação com base na orientação sexual, entre outros. Embora a identidade de género não esteja explicitamente discriminada, pode-se entender como estando contemplada na categoria género, essa sim prevista pela Carta da União Europeia. O caminho de ambos os fatores, como veremos, tem sido feito por via da jurisprudência dos tribunais de direitos humanos, e não por via da codificação em tratados internacionais. E nem poderia ser de outra forma, dada a polarização e resistência que o tema gera na esfera da política internacional.
Foi o Sistema Europeu de Direitos Humanos o primeiro a ter de apreciar a questão da violação de direitos humanos em razão da SOGI dos indivíduos. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) não faz qualquer referência à proibição da discriminação em razão da orientação sexual e da identidade de género. Mesmo assim, os mecanismos de controlo europeus tiveram, desde cedo, de se confrontar com a questão. Em 1955, chegou à extinta Comissão Europeia dos Direitos Humanos uma petição interposta por um nacional alemão condenado por crime de homossexualidade e sentenciado a 15 meses de prisão. No caso W. B v. Federal Republic of Germany, o queixoso alegou que a sua condenação e sentença violava os seus direitos ao respeito pela vida privada e familiar, bem como a proibição da discriminação, i.e., respetivamente, os arts. 8.º e 14.º da CEDH. À época, vigorava na Alemanha um código penal de 1935 que criminalizava a homossexualidade. A Comissão Europeia dos Direitos Humanos, na sua apreciação da petição, entendeu que a Convenção não impedia os Estados Partes de legislar sobre a homossexualidade, na medida em que o direito à vida privada e familiar podia ser restringido tendo em consideração outros aspetos, tais como a moralidade e a saúde públicas (JOHNSON, 2016, 12-13).
Os desenvolvimentos jurisprudenciais mais interessantes têm sido feitos pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), que, em 1981, decidiu o primeiro caso, o emblemático Dudgeon v. the United Kingdoom. O caso em questão referia-se à discriminação da lei penal em vigor na Irlanda do Norte que criminalizava todos os atos sexuais entre adultos do mesmo sexo, situação que, inclusive, já havia sido revogada noutras partes do Reino Unidos (Inglaterra e Gales). Fruto desta disposição penal, a polícia fazia frequentes rusgas a casas de pessoas suspeitas de serem homossexuais. Jeffrey Dudgeon, residente em Belfast, foi alvo de uma dessas rusgas policiais em janeiro de 1976. Nesse mesmo ano, submeteu uma petição para a CmEDH, que posteriormente a encaminhou para o TEDH. Em 1981, o TEDH deliberou que tinha havido uma violação do art. 8.º (respeito pela vida privada e familiar), mas entendeu também não ser necessário apreciar a alegada violação do art. 14.º (proibição da discriminação) em conjugação com o art. 8.º.
Desde então, o TEDH tem decidido vários casos envolvendo a discriminação com base na orientação sexual, sendo o mais relevante o caso Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal (1999). O caso refere-se à regulação do poder parental de uma menor após a separação do casal, em 1990, em cujo processo de divórcio se estabeleceu que a menor ficaria a cargo da mãe, tendo o pai o direito de visitar a menor. No ano seguinte, Silva Mouta passou a viver com um companheiro do mesmo sexo. Após sucessivas recusas da mãe em garantir o seu direito de visita, e tendo verificado que a menor se encontrava, de facto, a viver com os avós maternos, Silva Mouta interpôs uma ação no Tribunal de Família e Menores para reavaliação, à qual a mãe sempre se opôs, com alegações graves contra o pai da menor e o seu companheiro. Este Tribunal veio, em 1994, a decidir atribuir a guarda da menor ao pai, sublinhando que este estava em melhores condições para garantir um desenvolvimento saudável à menor. É importante referir que era conhecida, desde o início do caso, a orientação sexual do pai. Por isto mesmo, a decisão do Tribunal de Família e Menores assume particular relevância, pois “mostra a forma como os juízes reconheceram o direito à não discriminação, não condicionando o debate em torno do ‘interesse da criança’ à orientação sexual do pai” (SANTOS et al., 2009, 47). A mãe da menor recorreu da decisão, e o caso transitou para o Tribunal da Relação de Lisboa. Em janeiro de 1996, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o seu acórdão – no qual se reverteu a decisão da primeira instância e se atribuiu a guarda da menor à mãe –, o qual teve rasgos de preconceito, uma vez que o Tribunal adicionou um novo elemento para a sua apreciação: a orientação sexual do pai. Considerou o Tribunal da Relação de Lisboa que o facto de o pai viver em comunhão com outro homem constituía uma “anormalidade” que não atendia ao superior interesse da criança, a qual, no seu entender, deveria ser preservada destas situações. O que é interessante na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa é que este “não deixou de reconhecer que Silva Mouta constituiu uma família com o seu companheiro ‘em termos análogos às dos cônjuges’, embora esta nova família tenha sido considerada ‘anormal’ e por isso prejudicial ao desenvolvimento da criança” (SANTOS et al., 2009, 52). Face a esta situação, o pai recorreu da decisão e recorreu às instâncias europeias para reparar o que, no seu entender, constituía uma infundada discriminação com base na sua orientação sexual. O TEDH, depois de admitir a petição, deliberou sobre a questão e proferiu a decisão em dezembro de 1999. O TEDH veio a verificar ter havido uma diferença de tratamento, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, derivada da orientação sexual do queixoso. No acórdão, o Tribunal de Estrasburgo sublinhou que o Tribunal da Relação de Lisboa introduziu um elemento novo – a homossexualidade do pai da menor – para a sua apreciação do caso, pelo que, na sua avaliação, o “Tribunal apenas pode concluir que houve uma diferença de tratamento entre o requerente e a mãe de M., que se baseou na orientação sexual do requerente, noção que é abrangida, sem dúvida, pelo artigo 14.º. da Convenção. O Tribunal lembra a este respeito que o elenco de situações referidas nesta disposição tem um carácter meramente indicativo, e não taxativo, conforme revela o advérbio ‘nomeadamente’ (em inglês ‘any ground such as’)” (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 1999-200, § 28). Este acórdão é o primeiro em que se afirma, taxativamente, que a orientação sexual não é um fator ao abrigo da categoria sexo da Convenção Europeia, mas sim um fator autónomo que deve ser enquadrado à luz de uma leitura alargada da Convenção.
Nesse mesmo sentido decidiu a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, em 2012, num caso com contornos muito semelhantes. No caso em questão, relativo à regulação dos poderes parentais de Atala Riffo, natural do Chile, decretou-se que a guarda das suas três filhas menores seria atribuída ao pai, tendo a sua orientação sexual – Rifo vivia em comunhão com outra mulher – sido desde logo instrumentalizada pela defesa do pai e sido, manifestamente, um fator decisivo na atribuição da guarda das menores ao mesmo, em maio de 2003. Atala Riffo recorreu para o Tribunal de Menores de Villarrica, que se pronunciou em outubro desse ano sustentando que “havia ficado estabelecido que a orientação sexual da demandada não representava impedimento para o desenvolvimento de uma maternidade responsável, que não apresentava nenhuma patologia psiquiátrica que a impedisse de exercer o seu ‘papel de mãe’ e que não havia indicadores que permitissem presumir a existência de motivos de incapacidade materna para assumir o cuidado pessoal das menores de idade” (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2012, § 44 ). O tribunal de primeira instância focou-se objetivamente nas capacidades de Atala Riffo para desempenhar as suas obrigações parentais, sublinhando o superior interesse da criança. À semelhança do caso Silva Mouta, o tribunal de segunda instância viria a reverter a decisão anterior, posteriormente reafirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça do Chile. Nessa altura, Atala Riffo apelou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, que, após uma apreciação da petição, decidiu encaminhar o caso para a Corte Interamericana dos Direitos Humanos. No acórdão Atala Riffo y niñas v. Chile, de 24 de fevereiro de 2012, a Corte Interamericana debruçou-se extensivamente sobre as questões do superior interesse das menores em questão, mas também acerca da orientação sexual como categoria protegida pelo art. 1.º, n.º 1, da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos. A Corte fez uma análise sobre os desenvolvimentos nesta matéria, quer ao nível do sistema de proteção de direitos humanos da ONU, quer ainda ao nível da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, para concluir que “Um direito reconhecido das pessoas não pode ser negado ou restringido a ninguém, e sob nenhuma circunstância, com base na sua orientação sexual. Isso violaria o art. 1.1. da Convenção Americana. O instrumento interamericano veta a discriminação em geral, nele incluindo categorias como as da orientação sexual, que não pode servir de sustentação para negar ou restringir nenhum dos direitos dispostos na Convenção” (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2012, § 93). Desde então, a Corte Interamericana já decidiu outros casos emblemáticos, dos quais se destaca o caso Azul Rojas Marín y otras vs. Perú, no qual o Peru foi condenado pelo facto de agentes estatais terem discriminado, torturado e humilhado Azul Rojas Marín, que à época dos factos (2008) se identificava como homem gay.
IV. Ao nível de avanços legislativos, Portugal tem tido uma interessante evolução neste campo. A despenalização da homossexualidade em Portugal deu-se através da adoção do decreto-lei n.º 400/82, de 23 de setembro. Este foi um marco importante no caminho português para uma igualdade entre cidadãos, mas a lei penal de 1982 não foi isenta de problemas, a começar, desde logo, pelo art. 207.º (Homossexualidade com menores), que previa que “[quem], sendo maior, desencaminhar menor de 16 anos do mesmo sexo para a prática de ato contrário ao pudor, consigo ou com outrem do mesmo sexo, será punido com prisão até 3 anos”. Esta norma seria novamente prevista na revisão penal de 1995 (decreto-lei n.º 48/95, de 15 de março), cujo art. 175.º (Atos homossexuais com menores) previa que “[quem], sendo maior, praticar atos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”. A norma seria definitivamente revogada na alteração ao código penal de 2007 (lei n.º 59/2007, de 4 de setembro), não se distinguindo a natureza sexual nem a orientação sexual do agressor nos atos praticados contra menores.
Ao nível da legislação nacional, Portugal tem testemunhado um significativo avanço legislativo desde o início da década de 2000 – do qual a alteração à lei penal suprarreferida é disso um exemplo –, num esforço por parte do legislador para sanar as desigualdade entre cidadãos. Em 2001, a lei n.º 7/2001, de 11 de maio, alargou o reconhecimento das uniões civis às pessoas do mesmo sexo, tal como clarifica o seu art. 1.º, n.º 2, que refere que a “união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”. Em 2003, a lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, aprovou o novo Código do Trabalho, cujos arts. 22.º (Direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho) e 23.º (Proibição de discriminação) proibem expressamente a discriminação dos trabalhadores com base na sua orientação sexual. Esta viria a ser revogada pela lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, atualizando o Código do Trabalho e mantendo a proibição nos termos do art. 24.º (Direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho). Neste caso, a norma alarga a sua proteção não apenas à orientação sexual, mas também à identidade de género. A alteração mais significativa aconteceu em 2004, com a sexta reforma constitucional (Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de julho), que inclui a orientação sexual no princípio da igualdade (art. 13.º). Determina a referida norma que todos os cidadãos são iguais perante a lei e que “[ninguém] pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (art. 13.º, n.º 2).
Portugal é, assim, um dos 11 países do mundo que preveem a proibição constitucional da discriminação com base na orientação sexual. São eles a África do Sul, Bolívia, Cuba, Equador, Fiji, Malta, México, Nepal, Portugal, San Marino e Suécia. A estes junta-se o Kosovo – muito embora seja bastante discutível a questão de o Kosovo ser um Estado independente –, bem como outros Estados Partes de uniões federais, como é o caso de alguns estados da União Federativa do Brasil (MENDOS et al., 2020). Esta alteração constitucional permitiria, anos mais tarde, que se legislasse em favor do reconhecimento legal do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o que viria a acontecer em 2010.
Em 2018, a Assembleia da República adotou a lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, diploma que garante o direito à autodeterminação de género e expressão de género, bem como a proteção das características sexuais. Este diploma incorpora a nomenclatura proposta pelos Princípios de Yogyakarta+10 (2017), mostrando que este documento, embora não vinculativo, tem uma influência sobre as matérias legislativas dos Estados. O art. 2.º proíbe a discriminação de todas as pessoas, numa relação semelhante àquela encontrada no art. 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O art. 3.º (Autodeterminação da identidade de género e expressão de género) refere que “O exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género de uma pessoa é assegurado, designadamente, mediante o livre desenvolvimento da respetiva personalidade de acordo com a sua identidade e expressão de género” (art. 3.º, n.º 1). Por seu turno, dispõe o art. 4.º que “todas as pessoas têm o direito a manter as características sexuais primárias e secundárias”. Este diploma veio colmatar uma lacuna do ordenamento jurídico português.
Todos estes avanços fazem de Portugal um dos países do mundo com legislação mais avançada nesta matéria, contudo, é importante que sejam acompanhados de programas e políticas públicas em prol da igualdade, tolerância e cidadania ativa.
Bibliografia
Impressa
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Autor: Rui Garrido