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    Igualdade [Dicionário Global]

    A igualdade é um dos princípios-base que orientam os direitos humanos e é um princípio fundante e estruturador da grande maioria da ordem jurídica ou sistema jurídico. Assim como a ideia de liberdade, a igualdade enforma os valores superiores dos ordenamentos jurídicos, tal como vêm concebidos e representados em diversas democracias e constituições, isto é, como parte do regime democrático e integrante do conteúdo material da Justiça e do pluralismo político. Nestes termos, da regra de justiça – princípio da igualdade – resulta o sistema jurídico. O princípio da igualdade é, por assim dizer, a expressão do princípio da Justiça e a afirmação da ideia de Direito (TABORDA, 1998, 241-269).

    O direito à igualdade destaca-se na Constituição da República Portuguesa como vetor prioritário, nos princípios gerais, logo no seu art. 13.º – Princípio da igualdade: “1) Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2) Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. O princípio da igualdade, ou o também chamado “direito de igualdade”, pretende, em última instância, facilitar e tornar possível o desenvolvimento integral da pessoa e o exercício efetivo da dignidade de cada cidadão.

    É recorrente a explicitação de uma conexão da igualdade com a transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, através da Revolução Francesa, reconhecida como o nascimento da democracia moderna. Enquanto a sociedade do Antigo Regime se fundamentava na desigualdade entre os homens, essa conexão é afirmada no pressuposto de que teria surgido pela primeira vez na História uma revolução que tinha como bandeira a igualdade, a soberania do povo, a liberdade, a ideia de direitos do Homem.

    Na senda do esforço empreendido por R. Koselleck para o estudo de conceitos sociais e políticos, a “história dos conceitos” corresponde a um instrumento complementar e necessário para a interpretação histórica. O estudo conceitual, neste caso da igualdade, permite identificar camadas significativas, experiências e diferentes contextos político-sociais, que procedem de realidades históricas e épocas cronológicas distintas, sugerindo permanências estruturais, ou a também designada “simultaneidade do anacrónico” (KOSELLECK, 2006, 103).

    Diferentemente de estudos que reduzem os conceitos a uma singularidade temporal, os estudos da história dos conceitos desmentem a circunscrição do princípio da igualdade à Revolução Francesa, como se a genealogia daquele conceito não tivesse uma morfologia bem mais ancestral do que aquela que espoletou o carácter laico da cidade e da conceção republicana da sociedade, resultantes dos documentos jurídicos da Revolução Francesa (KOSELLECK, 1999). Acerca do princípio da igualdade, existem estudos que o situam no Cilindro de Ciro, uma carta dos direitos que remonta a Ciro, o Grande, o primeiro rei da Pérsia, em 539 a.C., ao qual são atribuídas a libertação dos escravos da Babilónia, a igualdade racial e a declaração do direito de cada qual escolher a sua religião.

    Da análise e fundamentação do princípio da igualdade, do seu conteúdo, desdobramentos e direções, resultaram diferentes correntes de pensamento.

    Tido como imprescindível para a compreensão da Modernidade, na corrente do liberalismo o sentimento e a ideia de igualdade fundamentam todas as instituições políticas e sociais. Enraizando-se na liberdade e na história da igualdade, fixou-se como competência do Estado a garantia dos direitos individuais, o poder de exigir a obediência à lei, fazendo da liberdade política a base dos valores liberais. Segundo o liberalismo, na “era dos direitos” (BOBBIO, 2004) a igualdade parte da premissa de que todos os indivíduos de uma determinada nação, por exemplo, estão sujeitos às mesmas leis que regem o país, possuindo os mesmos direitos e deveres. Ou seja, seria reconhecida a igualdade a todos os cidadãos, independentemente de classe social, cor, género ou religião, pois estariam sujeitos às mesmas leis e teriam igual disponibilidade de direitos civis e políticos. Assim, a corrente liberal define-se como sendo a doutrina segundo a qual o Homem, todos os homens, indiscriminadamente, tem determinados direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade (BOBBIO, 1994, 23). Deste modo, a liberdade política fundamentaria o princípio da igualdade, ao contrário das correntes contratualistas ou jusnaturalistas.

    Em Uma Teoria da Justiça, John Rawls procurou uma outra conciliação entre a liberdade e a igualdade (RAWLS, 1993). Como resposta às desigualdades económicas e sociais, na sequência da tradição do “contrato social” (dispositivo criticado pelo pendor “contratualista”), Rawls desenvolveu a ideia de “justiça como equidade”. Para esta corrente de pensamento, a igualdade é um valor baseado na ideia de que se deve tratar de forma igual os iguais e de maneira desigual os desiguais, de modo que não se trataria de estabelecer uma equivalência estrita ou absoluta, mas sim de promover a justiça. Este seria o mecanismo para evitar desconsiderar as características, preferências, aptidões ou singularidades dos indivíduos. Por esta via, significaria que o princípio de igualdade não suprimiria as diferenças.

    Poder-se-ia falar em igualdade de oportunidades, que representaria a possibilidade de oferecer as mesmas condições a indivíduos diferentes do ponto de vista social. Seria, como propunha Rawls, fazer com que todos pudessem partir de um ponto comum. Nesse caso, a igualdade não estaria no teto, mas na base. Assim, dever-se-ia tratar desigualmente os desiguais na medida da sua desigualdade, e a igualdade formal passaria a ser algo desejado e perseguido.

    Foi a partir do princípio da igualdade que se construiu a crítica à conceção liberal de democracia, onde se situa T. H. Marshall (1967) e a sua teoria evolucionista dos direitos. Nesta perspetiva, uma política emancipatória daria concretização à exigência de que a democracia deveria ser articulada com programas promotores da igualdade, especialmente no plano económico. A pobreza teria de ser erradicada, na medida em que comportaria uma negação maior do princípio da igualdade. Para a redução das desigualdades económicas, tornavam-se então incontornáveis modalidades de redistribuição da riqueza e do rendimento dos mais ricos em benefício dos mais pobres, nas quais teriam função angular os sistemas de “bem-estar social”. Deste ponto de vista, os processos de emancipação social, que iriam da igualdade política à igualdade económica, com particular teorização na obra de T. H. Marshall, dependeriam essencialmente do desempenho do Estado-providência, o veículo gerador da igualdade efetiva na sociedade. A conjugação de interesses específicos do Estado e interesses sociais em competição colocaria desafios renovados à vigência das normas democráticas.

    Em face de tais pressupostos teóricos acerca da igualdade, e daquela corrente da crítica “de esquerda” à democracia liberal, desenvolveu-se a contra-argumentação de que, em vez da igualdade prometida, haveria a estéril uniformização do pensamento e das condutas, bem como a negação de liberdades.

    Em oposição às concessões filosóficas e políticas que valorizavam a função determinante do Estado na promoção da igualdade, destacou-se, entre outras correntes de pensamento, o chamado “libertarismo de direita”. Também considerado uma extremização do “liberalismo clássico”, a partir de obras de escritores como John Locke, Friedrich Hayek e Ludwig Von Mises, esta filosofia política invoca a liberdade como a questão crucial, o princípio axial, colocando o Estado como a ameaça maior às liberdades (LONG, 1998, 303-349). A igualdade é, assim, considerada uma utopia, na medida em que haverá sempre grandes ou pequenos desníveis sociais. Se, do ponto de vista material, a igualdade se revela inalcançável, a igualdade da liberdade já se colocaria como algo mais factível. Por consequência, seria possível proporcionar a criação, pelo menos do ponto de vista formal, de um espaço comum adequado à manifestação da liberdade. Deste modo, tornar-se-ia possível criar mecanismos para tornar os indivíduos igualmente livres.

    Contestando a igualdade abstrata ou apenas reconhecida no plano formal, o marxismo libertário reivindica que não se pode separar o enunciado dos direitos das suas condições de exercício: para a questão da igualdade, a resposta nunca poderá ser apenas jurídica. Numa análise marxista da igualdade, os direitos não se decretam, conquistam-se (LÖWY, 1993). Essa é a perspetiva de uma corrente socialista e da libertação, identificada com hermenêuticas do marxismo, que valoriza o protagonismo dos movimentos sociais na conquista dos direitos. E a igualdade será resultado de lutas, derrotas e vitórias para fazer reconhecer o direito material. Para esta corrente de pensamento, não existirão direitos “naturais” ou “normais”: existem diferentes estádios de libertação humana. Os direitos nunca terão sido outorgados; antes e de cada vez terão sido conquistados na sequência de alguma correlação de forças alterada numa determinada sociedade.

    A igualdade, tal como outros direitos, teria um passado. Em cada patamar, terá sido conquistada palmo a palmo. A igualdade, como as liberdades, teve de ser arrancada através de complexos e duros combates. A atribuição de protagonismo aos movimentos sociais e à organização das lutas resulta da afirmação de que os direitos não se conquistam sem força social e de que a igualdade não se desloca no espaço e no tempo sem uma força que a materialize. Por isso, nesta compreensão do princípio da igualdade, a sua história seria a de um combate dos povos, tão antigo quanto a história da humanidade. No que configura uma teoria da revolução, a conquista da igualdade teria fundamento na teoria marxista da revolução autoemancipadora (LÖWY, 2012, 194). E para o caminho da humanidade rumo à igualdade, no meio do exercício dialético, apesar de cada um dos processos críticos, catástrofes e retrocessos, nesta conceção, será pela ação transformadora dos sem-direitos que as descriminações negativas, profundamente enraizadas nas sociedades, serão superadas.

    A relação entre igualdade e liberdade, a conexão entre igualdade e desigualdade, a interpretação dos desafios colocados às respostas políticas, sociais e culturais a dar aos problemas da interação entre a igualdade e diferença, entre discriminação e dessemelhança, distinguem correntes de pensamento, diferenciam modelos de sociedade e demarcam a configuração do tipo de democracia.

    As democracias tinham prometido uma igualdade difícil de conquistar. A democracia tinha erguido a esperança duma sociedade assente, entre outros princípios, na igualdade. A verdade é que a igualdade continua a constituir um dos problemas de fundo para a democracia. Manifestam-na incompleta. Porque as leis igualitárias não são suficientes para extirpar as discriminações, as desigualdades e diferenças no interior de cada sociedade; porque a igualdade material, ou de conteúdo – “na lei” –, continua a ser o programa constitucional que se revela de mais difícil e complexa realização; porque não corresponde a um pleno dado de facto, a igualdade evidencia aos defensores da democracia o quanto falta fazer para completar a democracia em cada um dos países que a adotaram como sistema de organização política.

    As desigualdades representam um problema multidimensional que afeta múltiplos sectores sociais. Como referem diversos autores, estas tendem a relacionar-se e a intercetar-se entre si, gerando sistemas ou regimes de desigualdade que persistem e se reproduzem nas sociedades, e demonstram como a formação de desigualdades comporta consequências de fundo para a organização das sociedades e no funcionamento das instituições, com implicações na extensão e no aprofundamento dos problemas sociais (PIKETTY, 2022).

    Tal como a batalha pela igualdade de género, na História contemporânea, as diferenças de cor, sexo ou religião comportam desafios para a edificação das democracias. E, sobretudo, no plano local, e para além da proximidade, numa escala mais global, a grande complexidade configura-se quando, cada vez mais, da desigualdade se sai para a diferença, quando se salta da dualidade para a apartação (BUARQUE, 2003, 28). Os meios de ação científicos e tecnológicos multiplicam-se, contudo, a longa marcha para a igualdade que fundamenta o projeto democrático continua bloqueada. As gigantescas desigualdades que estruturam as sociedades, e que moldam as relações entre os Estados e os povos, não param de se agravar, aumentando inexoravelmente.

    O crescimento económico concentrado para alguns tem transformado a desigualdade em uma diferença, uma diferença crónica, a diferença em dessemelhança entre seres de um mesmo território. Em contraposição ao princípio da igualdade, deste modo, mais do que as desigualdades sociais e mais forte do que desigualdade territorial, prevalece uma economia da apartação, que desagrega e que, em vez da desigualdade, impõe a diferença, dividindo as sociedades em enclaves de gente apartada, fazendo pessoas diferentes e não apenas desiguais, habitantes do mesmo planeta, porém, partes separadas da humanidade. E é a democracia que declina, que vai definhando e esboroando-se sempre que o princípio da igualdade é negligenciado ou secundarizado numa sociedade. E, o que não é menos grave, a democracia torna-se estática, dando mostras de todos os sintomas de agonia, quando a negação da igualdade que a desfigura, sem sinais de indignação, se acomoda e se torna habitual no nosso meio. A democracia deixa-se minar ao resignar-se ao seu contrário: o afastamento da igualdade. Trata-se de uma crise do espírito democrático, e, mais ainda, de uma crise de civilização. Porque está em crise uma civilização quando prescinde de viver à altura das suas aspirações. Sem o ímpeto e as dinâmicas sociais, políticas e culturais que dimanam do princípio da igualdade, para além do desfigurar da democracia, uma sociedade transporta em si a anunciação de um retrocesso humano e civilizacional (JULIEN, 1974, 34).

    A igualdade é um sonho traído ou uma esperança inalcançável? O princípio da igualdade contribuiu para dar corpo a audaciosas promessas de uma sociedade “nova”, alimentou aspirações e expectativas profundamente ansiadas por populações em diferentes contextos históricos, é um eixo essencial de uma cultura dos direitos humanos e, em graus diversos, com intensidades variáveis, corresponde a um horizonte de esperança duma sociedade democrática. Apesar de as democracias se terem desviado de alguns dos seus objetivos mais ambiciosos, recordar-lhos, contrapondo-lhes as realidades prevalecentes, será vital para que não percam o sentido das finalidades. É que toda a alteração ou secundarização de princípios fundamentais – como é o caso da igualdade – vulnerabiliza as bases da democracia e atrofia a consciência dos cidadãos, como das organizações sociais, políticas e culturais, no que se reporta à salvaguarda dos direitos humanos, na expressão da Justiça e na afirmação da ideia de Direito.

    A igualdade, anunciada pelas democracias, que enforma, como princípio-base, as cartas dos direitos humanos, deveria ser uma forma quotidiana de justiça, atingida por um moroso trabalho, por uma ação perseverante, renunciando a que os direitos humanos sejam remetidos para o campo da utopia, impedindo que a democracia fique a meio caminho…

    Bibliografia

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    PIKETTY, T. (2022). Uma Breve História da Igualdade. Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates.

    RAWLS, J. (1993). Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Editorial Presença.

    VILLEY, M. (2007). O Direito e os Direitos Humanos. São Paulo: Martins Fontes.

    Autor: Edgar Silva

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