Saramago, José [Dicionário Global]
Saramago, José [Dicionário Global]
Autor de mais de 40 títulos, José Saramago, escritor intelectual que denunciou o presente e anunciou o futuro da civilização que se está a despedir de nós, contudo pensando no dia de amanhã e tomando partido pelo ser humano íntegro e reto, nasceu em 1922, na aldeia de Azinhaga. Em 1947 publicou o seu primeiro livro intitulado Terra do Pecado. Seis anos depois terminaria o romance Claraboia, publicado apenas após a sua morte. No final dos anos 50 tornou-se responsável pela produção na Editorial Estúdios Cor, função que conjugaria com a de tradutor, a partir de 1955, e de crítico literário. Regressa à escrita em 1966 com Os Poemas Possíveis. Em 1971 assumiu funções de editorialista no Diário de Lisboa e em abril de 1975 é nomeado diretor-adjunto do Diário de Notícias. No princípio de 1976 instala-se no Lavre para documentar o seu projeto de escrever sobre os camponeses sem terra. Assim nasceu o romance Levantado do Chão e o modo de narrar que caracteriza a sua ficção novelesca. Recebeu o Prémio Camões em 1995 e o Prémio Nobel de Literatura em 1998 – este prémio atesta o óbvio: foi um autor que contribuiu para o bem da humanidade, logo, os direitos humanos sempre foram o seu cavalo de batalha, pois na sua primeira entrevista após o prémio disse que o mais importante do mundo é saber dizer não à injustiça. Os seus livros estão publicados em 65 países de quatro continentes e traduzidos para 48 idiomas, incluindo o esperanto. A sua ação e obra deram um contributo fundamental em torno da problemática dos direitos humanos.
Em numerosas tradições, desde as mais primitivas, o ser humano é descrito como uma síntese do mundo e o centro do mundo dos símbolos. Como tal, deve representar um exemplo do bem e simbolizar o espírito e a carne, pois se a ligação for só a esta última perderá a sua imortalidade. O ser humano é sempre capaz de mais do que faz, pois o que o homem faz por combinações refletidas seria feito espontaneamente pela energia vital, sem consciência de si mesma, com muito mais segurança e com um artifício infinitamente mais maravilhoso.
Poderíamos proclamar o Ensaio sobre a Cegueira o modelo de inspiração para uma reflexão sobre os direitos humanos e assim dispensar uma breve contextualização histórica acerca da génese da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, aqui fica um voo rasante: Ciro, o primeiro grande rei da Pérsia, proclamou uma carta que se consagrou chamar Cilindro de Ciro, decretando a liberdade de culto, de escolha de uma profissão e, sobretudo, a abolição da escravatura – este documento foi apresentado pela ONU como a primeira carta dos direitos do Homem; mas o mais antigo código legislativo que chegou até nós veio da Mesopotâmia, o do rei Hamurábi, uma protodeclaração que apelava à justiça que proteja o fraco contra a arbitrariedade do forte e pensada para o mundo na sua globalidade; muito mais tarde, o imperador Galério publicou o chamado Édito de Sárdica, retomado por Constantino pela via da tolerância em relação aos cristãos, e que, proclamando a liberdade de religião e de consciência, continua nos nossos dias a ser o primeiro dos direitos humanos; a Magna Carta (composta por 63 artigos) do rei de Inglaterra, João sem Terra, um contrato inédito entre o rei, os seus vassalos e o povo e considerado hoje o primeiro texto no qual se basearam as garantias constitucionais inglesas e um dos mais importantes da história da democracia moderna, transformando a Inglaterra no primeiro país a converter-se num Estado de Direito, ao garantir a liberdade pessoal de todos os homens livres em relação à arbitrariedade real, culminando quatro séculos mais tarde, em 1689, no famoso Bill of Rights (13 capítulos), onde terá nascido, à luz do Direito e da democracia, a conceção dos Direitos Humanos; um ano mais tarde, em 1690, John Locke contribuiu com o seu Tratado do Governo Civil, pensamento que será retomado pelos franceses em 1789 na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo primeiro artigo defende a liberdade da condição humana e a igualdade de direitos; mas é a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, que é considerada, ainda nos nossos dias, tanto no plano político como jurídico, como a primeira Declaração dos Direitos do Homem verdadeiramente acabada; finalmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, cujos 75 anos celebrámos em dezembro, foi pensada na sequência de contextos históricos excecionais que provocaram 65 milhões de mortos – também períodos críticos e de horror viram nascer as declarações precedentes.
Mesmo assim, distinguem-se em geral duas gerações de direitos humanos. A primeira, a das grandes liberdades revolucionárias, proclama direitos liberais: associação, convicção, expressão, entre outros – é o espírito das declarações francesa e americana, que inspiraram entre outras a Declaração Universal; a segunda geração nasceu nos séculos XVIII e XIX, no proletariado dos campos, das minas e das indústrias. René Cassin, um dos principais redatores da Declaração que nos ocupa e que a considerava as tábuas da lei humana, por ocasião da sua redação receava ficar entalado entre o Oeste e o Leste. Para os primeiros, os direitos individuais têm a primazia e são sagrados e o Estado mais não é do que um instrumento para a sua concretização; para os segundos, são os direitos sociais que têm a primazia e que forjam os deveres dos indivíduos para com os grupos sociais aos quais pertencem: família, cidade e, bem entendido, o Estado. Para Cassin, contudo, as duas categorias de direitos são muito simplesmente indivisíveis. Assim, pela primeira vez, o desafio da Declaração aparece sendo superior às nações, às religiões, às ideologias. O que estaria agora a fazer entre nós Nelson Mandela? Questão pertinente. Nos nossos dias, a Declaração Universal continua sem ter sido assinada por todos os países do mundo e os seus princípios são regularmente discutidos e postos em causa.
Em Portugal, “A revolução de 25 de Abril de 1974 rompeu com um período ditatorial e abriu caminho a uma democracia assente nos direitos fundamentais, consagrada na Constituição da República Portuguesa de 1976 e aprofundada ao longo dos seus já 47 anos de vigência. No entanto, “se não descobrirmos maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos” (SARAMAGO, 1991, 6). O art. 13.º da Constituição da República Portuguesa dita: “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (LEÃO, 2023, 21). Com efeito, hoje a Constituição consagra um amplo catálogo de direitos fundamentais, que divide em direitos, liberdades e garantias e em direitos económicos, sociais e culturais, também designados simplesmente direitos sociais. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana é a base da República Portuguesa (art. 1.º) e da proteção constitucional dos direitos. Subjaz aos direitos sociais, pois também estes concretizam uma ideia de dignidade.
Mais recentemente (e o próprio Andrei Sakharov se debruça sobre o tema na obra O meu País e o Mundo), no decorrer do século XX, o mundo tinha os olhos postos em Portugal, onde, no último quartel, os mecanismos da queda do totalitarismo estiveram em marcha por meio da oposição à demagogia e à tirania policial e chantagem que a polícia secreta portuguesa desempenhou ao longo das décadas de ditadura salazarista, por via de uma ideologia de censura (a que José Saramago é intolerante), repressão policial, tortura ou prisão, armas usadas contra quem se opunha à ordem vigente. De uma forma geral, o povo vivia na miséria e o país estava mergulhado na estagnação, e é para estas realidades que o narrador de O Ano da Morte de Ricardo Reis, velada ou indiretamente, pretende chamar a atenção. A cidade de Lisboa, a que Ricardo Reis regressa dezasseis anos depois, palco da ação, apresenta-se como um labirinto, monótona, pobre, sombria, silenciosa, chuvosa, de águas turvas, metáforas que contribuem para evidenciar a opressão e a repressão exercidas pelo regime sobre o povo, que sempre é quem mais compreende um futuro digno e justo. Saramago, como Fernão Lopes, sempre nos convoca, leitores, a ser como o povo. Desta forma se percebe a afirmação final: a terra aguarda pela mudança. Em modo de diálogo fora do tempo, neste romance José Saramago faz uma denúncia da subversão e do aproveitamento das palavras e da figura de Camões por parte do regime; como Cesário Verde, remete para a evocação de um passado glorioso contrastante com a estagnação de um presente moribundo onde, como hoje, José Saramago considerava que grassava a corrupção, uma realidade muito complexa, pois pode assumir facetas variadas, sendo uma prática ou um comportamento desviante porque, em norma, os indivíduos têm um comportamento ético, mas há um conjunto muito alargado de cidadãos que recorre a ela.
Sakharov, como Saramago, também defendia que não somente os indivíduos, mas também os governos e as organizações internacionais, devem preocupar-se com a defesa dos direitos humanos por todo o mundo, com os mesmos critérios por todos os países. A Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamou, em 1968, “o carácter internacional da defesa dos direitos humanos, mas até hoje pouco se tem feito para pôr em funcionamento tal princípio” (SAKHAROV, 1976, 136). Como tal, é preciso superar a desunião em prol do ser humano e dos seus direitos. Precisamente, José Saramago considerava que vivemos numa plutocracia, um governo dos ricos, e que não há país no mundo que realmente viva em democracia – para José Saramago cabe-lhe melhor o termo “capitalismo autoritário” (SARAMAGO, 2022, 20), ora, não se lembra de uma greve contra o fabrico de armas numa fábrica de armamento, por exemplo, e há uma clara incompatibilidade entre os Direitos Humanos, que quiseram garantir o pensar, o criar, o escolher e o ser e simultaneamente uma família humana, e a globalização económica –, havendo demasiada injustiça social, sendo as multinacionais a exercer o poder real e a devorar os direitos humanos como o gato come o rato, logo, somos responsáveis no longo percurso rumo a uma melhoria. No contexto português, José Saramago defendia que o seu comunismo nascera “da consciência de que entre o desejo fundo do povo e a sua existência houvera sempre um abismo por preencher, por isso o povo emigrava, fugia de Portugal” (REAL, 2023, 121). Deste modo, apelava a um bem ético comum, usando mesmo o NÃO do Padre António Vieira, a palavra mais perigosa do mundo, pensando no sapateiro anarquista e libertário falhado na Claraboia, na medida em que o seu ideal de paz – José Saramago reconhecia que culturalmente “os homens são facilmente mobilizáveis para a guerra e dificilmente mobilizáveis para a paz […]. A humanidade não é uma abstração retórica, é carne sofredora e espírito ansioso, é uma esperança sempre à espera. A paz é possível. Mobilizemo-nos para ela (SARAMAGO, 2022, 19-20) – e igualdade a guiar a humanidade não difere do de Cristo. O ideal de pureza social que desejou para a humanidade nasceu nas suas longas caminhadas solitárias na Azinhaga, terra onde nasceu, afirma o próprio figurado no romance O Último Minuto na Vida de Saramago, de Miguel Real.
Numa perspetiva crítica acerca dos deveres e obrigações do ser humano, o que é o livre-arbítrio ou como o podemos ter, questionaria Heraclito, um dos pais da filosofia ocidental; porém, acrescentaria, seguramente pelo que conhecemos do seu pensamento, que isso não altera o facto de que todos somos membros da sociedade, pelo que há apenas um modo razoável de avançar: temos de agir como se fôssemos livres, temos de tratar os outros com cordialidade, procurar ser melhores – em essência, agir como os agentes livres que acreditamos ser. Refletiria William Paley, pensando em Deus, que as pessoas dizem que o sofrimento edifica o carácter, mas isso soa mais como um ser humano a tentar compensar a parte fraca do argumento do que qualquer outra coisa. Este é o problema do mal: não podemos ter uma divindade perfeita e todas estas coisas más. Então, Heraclito remataria em balanço ético que a Ética poderá ser a área mais importante da Filosofia, na medida em que envolve praticamente todas as decisões – grandes ou pequenas – que foram ou serão tomadas, tal como fazer a pergunta mais fundamental: como havemos de viver? Ora, colocando em perspetiva a fábula de La Fontaine O Lobo e o Cordeiro, de facto, a humanidade procura defender-se dos lobos de duas patas, bem mais perigosos que os seus congéneres quase em extinção. Para isso se fazem as leis, funcionam os tribunais, se enchem as prisões. Decerto muita gente, por esse mundo fora, se sentirá na pele do anho da fábula, pois tantas são as vezes em que os direitos humanos e até das crianças são atropelados. Urge, então, que a sociedade, em geral, e as famílias se empenhem em promover, contra a ditadura da força, os plenos direitos de cidadania. Assume então relevância a palavra corresponsabilidade como força e dever que impulsiona a união e o sentido comunitário, gerando gente forte que faça forte a fraca liderança. Assim, “o mundo precisa urgentemente de uma revolução moral, […] ética que desperte as consciências e mude os caminhos do homem” (SARAMAGO, 2022, 20). Na realidade, a utopia de Saramago pode “tornar-se habitável pelo trabalho, pelo esforço, pela vontade” (SARAMAGO, 1999, 1).
Aquando do 60.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da atribuição do 10.º Prémio Nobel a Saramago, este escreveu num opúsculo editado pela Fundação com o seu nome que aqueles direitos são “desprezados grosseiramente pelos poderes económicos e financeiros soberanos, perante a apatia geral de uma sociedade, que, no fundo da sua consciência, talvez já não acredite, se alguma vez teve essa ilusão, no cumprimento ao menos satisfatório dos preceitos consignados naquele documento” (SARAMAGO, 2008, 4), pretendendo com isto dizer que a nós, cidadãos comuns, não nos resta outra atitude que defender esta declaração por todos os meios e “exigir em todos foros o seu urgente cumprimento” (SARAMAGO, 2008, 4), pois, segundo ele, o século XXI, onde a regressão continua, será aquele em que ganharemos ou perderemos a batalha pela causa mais nobre de todas
Não isolamos por ora qualquer título da sua obra, ainda que a tentação seja referir, no âmbito desta temática, os pobres e o trabalho em Levantado do Chão; através de uma visão crítica, as condições de trabalho, desde que o sol nasce até que se põe, tendo morrido muita gente, e as barracas exíguas em que dormiam, e a igualdade, tudo isto expresso no Memorial do Convento; tudo e até o equilíbrio do epicurismo e do estoicismo no Ano da Morte de Ricardo Reis; a igualdade, justiça e liberdade no Ensaio sobre a Cegueira; a democracia no Ensaio sobre a Lucidez; ou a síntese da civilização ocidental e a sua consciência humana n’A Caverna – tenta transformar, na nossa consciência, as expectativas em esperança e o grande trabalho que a esperança nos pede é a confiança nos deveres –, que advêm da imposição de deveres para com a nossa comunidade expressos no art. 29.º da Declaração Universal – e obrigações do ser humano, pois sem uma cidadania ativa e plenamente consciente será difícil levar a cabo qualquer transformação (neste sentido, a Fundação José Saramago elaborou em 2017 uma Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos), celebrando a vida o mais justa possível, sabendo que “da mesma forma que a lei da morte não pode ser compreendida sem tremor (Kierkegaard), o mistério do nascimento não pode ser abordado sem fascínio” (ESQUIROL, 2022, 36). Assim, “oxalá o humano fosse ainda mais humano! Ser mais humano não significa ir para lá do humano, mas intensificar o humano do humano, aprofundar o humano do humano, porque é aí que se encontra o mais valioso” (ESQUIROL, 2022, 13-14). Ora, o século XX, o da barbárie mais extrema da violência totalitária, mostrou que o governo do mundo permanece ainda repleto de banalidade e interesses particulares, sendo que, na verdade, “o humano, na sua raiz, está mais intimamente vinculado à responsabilidade do que ao poder; que uma civilização mais humana leva-nos a fazer do mundo um lar e não a abandonar o lar para dominar o mundo” (ESQUIROL, 2022, 16).
Tanto mais se impõe, quer o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quer uma Carta dos Deveres e Obrigações…, quanto os problemas da vida são insolúveis à superfície e só podem resolver-se na profundidade. São insolúveis nas dimensões da superfície. Na verdade, importa o “eu” como poder e a capacidade de prometer, pois o ser humano não se distingue pela força física, mas pelo engenho, que multiplica a sua força. Na circunstância da vida humana, o engenho deve tornar possível o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A ação humana (que tem vindo a diminuir, segundo Hannah Arendt) tem de os pôr em prática.
Em Saramago, a ironia permite o distanciamento e revela o absurdo lógico com sentido de humor. José Saramago não deixava que o incompreensível fizesse sentido; o seu tom era uma maneira de fazer crítica através da forma. Escrever sobre o incumprimento dos direitos humanos de modo muito sério teria sido dar demasiada importância a uma coisa ilógica e horrível em todos os aspetos. Para ele, era necessário ser quase capaz de rir na cara daqueles que praticam o mal, por que “por vezes o riso é tudo o que temos para preservar a dignidade” (HILL, 2001, 72). Deste modo, a escrita de Saramago também é, por via da parábola ou da alegoria, uma acusação formal contra aqueles que estão mais preocupados com os corpos celestes do que com o mundo a seus pés, e é um apelo para que se faça uma pausa e se tenha em consideração a posição da qual abordamos o pensamento sobre as atividades da condição humana. Neste sentido, Heidegger está enganado: o homem não é atirado para o mundo; se formos atirados, então – de modo não diferente dos animais –, é para a terra. O homem é guiado com precisão, e não atirado, precisamente por essa razão a sua continuidade acontece e a forma como ele tem lugar ali é visível.
No Ensaio sobre a Cegueira Saramago, que ilumina todos os extremos da natureza humana, faz-nos temê-la associando-a à cegueira que conduz a selvajaria e crueldade, o que significa um incitamento à nossa busca de amor e esperança. Justamente, a dignidade, que não deve ser amputada e sim respeitada (o dever de nos respeitarmos uns aos outros), do ser humano é um dos conceitos mais fervorosamente defendidos por Saramago: a dos trabalhadores em Levantado do Chão, a mesma de Baltazar Sete-Sóis no Memorial do Convento, aquela de todos salva pela mulher do médico ao assassinar o chefe dos malvados no Ensaio sobre a Cegueira, a do oleiro n’A Caverna ou a de Maria Guavaira na Jangada de Pedra, ou até mesmo a dignidade das crónicas da Bagagem do Viajante, onde, a par dos contos, germinou a sua prosa estendida nos romances. Note-se que foi H., protagonista do Manual de Pintura e Caligrafia, que lhe ensinou a honradez do trabalho disciplinado e a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direção das raízes, algo a que, aprendendo a ser paciente, a confiar e a entregar-se ao tempo, se dedicou em Levantado do Chão, transmitindo a dureza das experiências, no Alentejo, que tornou “virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida” (SARAMAGO, 1999, 19). Com a peça de teatro Que farei com este Livro, por via de uma humildade orgulhosa de Camões faz ver que “Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros…” (SARAMAGO, 1999, 21). Na verdade, são os sonhos e a vontade humana que asseguram o rumo do mundo, pelo que podemos ler O Ano da Morte de Ricardo Reis como uma espécie de antítese no seu seio, bem ao jeito pessoano, e da intervenção do nosso Nobel nos destinos do mundo, ora, até a terra e não apenas os barcos interessava mover. Assim, fruto da insatisfação com a herança europeia escreveu A Jangada de Pedra, uma nova busca do ser em cada um de nós, a utopia de um mundo mais justo, que seria pensado no passado em História do Cerco de Lisboa, a história de Raimundo Silva, um homem simples mas algo invulgar, por acreditar num outro lado das coisas, as quais só podem ser compreendidas quando tivermos cavado fundo nelas.
Os direitos humanos são um fantasma que paira sempre sobre José Saramago. Eis que n’O Evangelho Segundo Jesus Cristo confessa a sua incompreensão com a crença estabelecida por uma religião, confundindo-o a ausência de um sentimento mínimo de responsabilidade que gerou justamente um sentimento trágico da mesma e suscita uma necessidade de pseudoperdão pela aparente inconsciência divina. E é assim que chegamos a outra peça, In Nomine Dei, humanamente mais uma pequena luz da sua razão nesse paroxismo demencial da intolerância com que ele era intolerante no domínio das crenças religiosas. Então veio à cena da sua vida literária Ensaio sobre a Cegueira, um dos degraus finais rumo ao Prémio Nobel, para recordar que “usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante” (SARAMAGO, 1999, 32), antes de redigir um dos mais belos romances de amor da literatura portuguesa, Todos os Nomes, lição sobre uma das coisas mais importantes na vida: pedir a um ser humano.
Julgamos que Memorial do Convento, obra que estabelece relações de intertextualidade com provérbios, a Bíblia e, nomeadamente, Camões, Vieira ou Pessoa como ponto de partida para ironizar e ridicularizar outras situações nele relatadas, merece mais alguma atenção, na medida em que apresenta uma época de contradições, de aparências, de perversos conluios entre a política e a religião, aspeto francamente denunciado no romance; é uma exaltação dos simples e pobres e a mais pura compaixão por uma sociedade em que a população vivia acuada e fanatizada e pouco mais comia do que sardinha e arroz, portanto, em pleno desequilíbrio social em imensos aspetos, como a justiça, a religião inquisitiva, que aplicava penalizações físicas e económicas a quem não seguia os seus preceitos, e a repressão sobre as mulheres. A capacidade descritiva e a postura irreverente como o narrador olha o passado e o evoca como terreno fértil para a ironia fortalecem o seu posicionamento de contrapoder, os comentários valorativos e o tom moralístico. No tempo histórico e da narrativa, um dos pontos mais tocantes dos direitos humanos é a condenação de Baltasar à fogueira, em 1739. Pensando no título, trata-se de um resgate do esquecimento dos verdadeiros obreiros do convento, uma homenagem ao povo (fazendo a listagem de nomes de A a Z), justamente a memória da epopeia de um povo, o enaltecimento da coragem e do esforço do povo português e denúncia do sofrimento e dos sacrifícios por que teve de passar. Portanto, importa finalmente caracterizar algumas personagens do romance e registar a sua dimensão simbólica. D. João V é absolutista, prepotente, fazendo recair sobre o povo opressão considerável; o povo é o herói da obra, são os homens anónimos imortalizados, o espelho do sofrimento, sacrifício e da superação humana; Baltasar, queimado numa fogueira, é um homem simples, destemido, determinado e leal; Blimunda, com o dom de ver o interior das pessoas, é astuta, destemida, persistente e pouco convencional para a época; Bartolomeu Lourenço é resiliente, de trato fácil, curioso, ambicioso, sonhador e visionário; Domenico Scarlatti é fiel, sensível e sonhador. Simbolicamente, a Passarola/convento constituem uma metáfora da liberdade e do poder do ser humano em oposição à opressão; Sete-Sóis/Sete-Luas representam, ele, o dia, a força física, o trabalho, ela, a noite, a magia, o transcendente, o mundo onírico; o número sete simboliza a mudança, renovação e totalidade.
Retiramos de toda a obra de Saramago o imperativo de uma luta contra a ignorância, o ódio e o medo de ser (e não apenas existir), o amor pela mulher, o amor como Deus, o erguer do ser humano frágil e até uma exaltação do cão, o que supera os direitos humanos, o “repositório do que de bom têm os Homens” (MATOS, 2013, 28), a figura do cão que atravessa toda a obra como figuração literária da dedicação, solidariedade, confiança, fidelidade, amizade, constância e mesmo justiça. É como se nos inspirasse a aprender a ser mais do que a ter. É o ensinamento de toda a sua obra, de onde realçamos um dos seus textos em prosa mais curto, mas incisivo: A Maior Flor do Mundo. Aqui se fala de regar e não de colher.
A sua voz inquietante faz falta para desassossegar e acalmar simultaneamente. Escreveu sobre tudo o que importa mais num texto sobre o racismo, em que o contextualiza até ao primeiro encontro entre hominídeos ruivos e negros, questiona a nossa progressão tanto em cultura, civilização e direitos humanos, elevando a importância dos deveres e obrigações num “espaço do encontro e da solidariedade” (SARAMAGO, 1996, 2). A sua obra levanta os olhos e questiona o mundo para que a generosidade impere. É certo que, segundo ele, não está nas nossas mãos resolver as misérias do mundo, mas devemos agir como tal. É o nosso dever. E, de facto, com o autor de Levantado do Chão torna-se menos difícil descobrir e edificar, no espaço da cultura, o modo de lidar com a nossa consciência e assim crescermos como seres humanos e cidadãos. Se os direitos humanos não são praticados, então não existem e constituem “uma promessa que ninguém se mostra disposto a cumprir” (SARAMAGO, 1999, 4). Esta é a premissa de Saramago. Na sua obra, o mal, o verdadeiro, tem a ver com a ausência de pensamento e o conformismo. Na verdade, o ser humano é fraco e obediente. É aí que faz o mal. É aí que achincalha os direitos do Homem, como lemos relatado em Levantado do Chão, onde se luta por melhores condições de vida (em analogia com a própria vida do autor) ou por via das milícias secretas criadas no regime de Salazar. É esse efetivamente o problema do Homem: é preciso que se queime para aprender. Deste modo, Saramago defende igualmente uma nova religião do Ocidente: a liberdade de expressão, aquela mesma de cujo amplo abuso falou Rushdie em novembro passado, dizendo que devemos continuar a fazer, com renovado vigor, o que sempre precisamos de fazer: responder ao discurso mau com um discurso melhor, “contrapor narrativas falsas com narrativas melhores, contestar o ódio com amor e acreditar que a verdade ainda pode prevalecer mesmo numa era de mentiras. Devemos defendê-la com firmeza e defini-la o mais amplamente possível. Portanto, sim, devemos defender o discurso que nos ofende, caso contrário não estamos a defender a liberdade de expressão” (RUSHDIE, 2023, 28). Talvez possamos ver na obra de Saramago votada literariamente aos direitos humanos não mais do que um ideal face ao qual o contraste com a realidade é flagrante. Logo, os direitos por que luta são uma construção contínua e obras como o Ensaio sobre a Lucidez constituem forte contributo. A sua obra, que é uma catedral, é como a de Cassin, que concebeu a Declaração semelhante a um templo, portanto como uma construção humana reivindicada como tal, sendo todo o edifício o símbolo das ligações entre os indivíduos e a sociedade, tendo a fragilidade como frontispício, as escadas, a seguir ao preâmbulo que seria o pátio, como princípios de liberdade, igualdade e fraternidade e os pilares como principais direitos.
No âmbito da ética, neguemos a excessiva racionalidade, ou parcial, do consequencialismo de Jeremy Bentham. Este defendia que o consequencialismo significa que um ato é correto ou incorreto com base nas suas consequências, e não com base no tipo de ato que é, ao que poderíamos questionar como pode ele decidir que consequências são moralmente importantes. Responderia que, depois de mesmo assim ter definido os requisitos morais (intensidade, duração, certeza, amplitude, fecundidade, pureza e proximidade – sete, como os pecados mortais, mas com intenção oposta, racional…), na verdade, torna-se um jogo de números. Acrescento consequências de qualquer ação em termos do prazer ou dor que pode causar… E então olho para o requisito moral que é preciso para cada pessoa escolher aquelas ações.
A ilusória vitória histórica dos direitos humanos está a resultar numa degradação sem precedentes das esperanças de vida digna da maioria da população mundial. Os direitos humanos deixaram de ter voz ativa nas relações internacionais e os seres humanos e povos não são objeto da sua prática mas sim de discurso sobre os mesmos. Espinosa refere dois sentimentos que devem ser equilibrados e a que Boaventura de Sousa Santos já se referiu também: o medo e a esperança. Ora, hoje não se deteta equilibradamente estes sentimentos, porquanto a maioria da população do mundo vive sujeita ao medo, por várias razões. Noutro sentido, há uma franja muito pequena da população que vive cheia de esperança, sem receios, pois sentem-se capazes de lidar com as adversidades. Concluímos que a expectativa de uma vida digna não é igual em toda a população mundial e, assim, os princípios dos direitos humanos são subvertidos, logo, é preciso acreditar que o desespero se pode transformar em esperança.
Apesar de se tratar da primeira declaração de uma ideologia moderna a proibir a escravatura, ela ainda existe sob muitas formas. Ora, Saramago questionava porque pensamos o que pensamos, quando tentava definir o que o ser humano é, e sobretudo tenta saber por que motivo o ser humano bloqueia qualquer projeto que tenha como destino a humanidade. Com efeito, José Saramago é “um espelho de virtudes éticas onde a inteireza de princípios se assume como resposta permanente a uma exigência da sua dignidade humana” (NORAS, 2013, 53). Estava Saramago consciente de que os artigos da Declaração de 1948 permanecem frágeis e que é crescente a tentação de numerosos Estados ditos democráticos deixarem de os respeitar. Daí na sua obra transfigurar com recursos expressivos o desejo que no futuro o ser humano venha a tornar as regras da sua vida em conjunto mais aperfeiçoadas e universais, esperando, sobretudo, ao dar exemplos da história de Portugal e universal, que não seja necessária nenhuma nova tragédia para as inspirar. Sendo a ética a prática e a fundamentação da Moral, no entendimento de Fernando Savater, Saramago entendia que, e este foi um dos pontos altos do seu discurso em Estocolmo na aceitação do Nobel, “Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor” (SARAMAGO, 1999, 39). Efetivamente, chega-se mais solicitamente a Marte do que ao nosso semelhante, pelo que, simplesmente porque ele não procurava convencer obrigatoriamente ninguém, a razão do Nobel na herança de Saramago reside no despertar da consciência. À hora da morte terá sonhado um sol de justiça, a sua ideologia, o sentimento, a ética e a responsabilidade, pois podemos encarar que para ele “o que salva o mundo é o empenho de todos, o compromisso com o outro, o bem que a todos é comum, a solidariedade que fortifica, o prazer de ajudar que revigora, a proporção de riqueza que a todos afasta da miséria, é o pão sobre a mesa, a escola para os filhos, o amparo para os velhos, um fim de semana criador, uma televisão fecunda, não uma caricatura do divertimento, grotesca […] enfim, hoje a democracia, sempre assenhorada por elites, virou […] a mais argentária plutocracia que sobre a terra existiu” (REAL, 2023, 173-174), ao contrário da cultura que o nosso autor deseja, aquela das controvérsias, polémicas e disputas de ideias no seio da história, literatura e ciência, com todos envolvidos e em todos os sítios, sendo o reino de Deus o socialismo e o que nos move o desejo de justiça e uma humanidade toda igual, como almejou no Memorial do Convento, que todos possam ser reis ou rainhas e ambos santos e não obstinados devotos ou ideológicos como o enganador profeta Matthys ou o vicioso Jan Van Leiden, rei de Münster, em In Nomine Dei. Sonhava com a sua justa Josephville; sonhou, com a Madalena d’O Evangelho Segundo Jesus Cristo, com a transformação das mentalidades; sonhou, pela prosa de MR, “legar uma obra que faça justiça ao sonho dos homens, pregando a igualdade e a solidariedade” (REAL, 2023, 133); n’A Caverna sonhou com uma sociedade que não seja defeituosamente ansiosa e ambiciosa; nas suas Pequenas Memórias sonhou com a suavidade e harmonia da Lisboa da sua adolescência; no primeiro Ensaio mostrou que se não pudermos viver inteiramente como pessoas, ao menos que não vivamos como animais; sonhou com a Blimunda do Memorial a rebelião social e o desassossego espiritual; sonhou que várias personagens suas, que eram ele, fizeram pelos direitos humanos o que os governos moralmente estavam obrigados a fazer; sonhou, enfim, com tudo o que Eduardo Lourenço designou nele como a sua utopia, o seu testamento literário. Aprendeu que a humildade e a sapiência, com que lidou por meio dos seus avós, ensinavam a retidão e o exemplo ético. Deste modo, “A tinta de qualquer lei contém o sangue seco de milhões de transgressões” (SMET, 2018, 35), “Portanto, lutar pelos direitos humanos é, em última análise, lutar pela democracia” (SARAMAGO, 2008, 4).
Bibliografia
Impressa
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Digital
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“Somos seres amputados”, https://www.josesaramago.org/conferencia/somos-seres-amputados/ (acedido a 17.12.2023).
“Verdade e ilusão democrática”, https://www.josesaramago.org/conferencia/verdade-e-ilusao-democratica/ (acedido a 15.12.2023).
Carta Universal dos Deveres e Obrigações dos Seres Humanos, https://www.josesaramago.org/carta-universal-dos-deveres-e-obrigacoes-dos-seres-humanos/ (acedido a 10.12.2023).
Autor: António José Borges