Jusnaturalismo [Dicionário Global]
Jusnaturalismo [Dicionário Global]
Jusnaturalismo: -Ismo ou opção teórica?
O jusnaturalismo relaciona-se com a filosofia do Direito Natural, decerto a mais clássica de todas as filosofias jurídicas, presente de forma elegante e recortada no Digesto de Justiniano, expoente do génio jurídico romano, que criou epistemologicamente a arte boa e équa, o Direito tout court.
Uma das formas mais brilhantes, e, na verdade, mais adequadas, de abordar a questão do jusnaturalismo deve-se ao grande filósofo do Direito francês Michel Villey (vulto de relevo mundial, que pontificou largos anos na Universidade Paris II), o qual, convidado a fazer o respetivo verbete num dicionário de teoria e sociologia do Direito, consideraria desde logo o problema (metaforicamente) pelo ângulo médico, encarando o jusnaturalismo como uma afeção, um exagero do Direito Natural (ou, explicando melhor, exagero da utilização ou da invocação do Direito Natural). O sufixo “-ismo” leva a uma conotação ideológica, e, portanto, dá-nos a sensação de que seria um viés de extremismo, radicalismo, exagero.
Porém, importa lembrar que o artigo de Villey não seria publicado, dado o seu carácter polémico. Recordemos o seu início, mais tarde dado à estampa na Revue Interdisciplinaire d’Études Juridiques: “Jusnaturalisme: Affection mentale, caractérisée par l’hypertrophie et l’altération des organes du ‘droit naturel’. Identifiée vers le milieu du XIXème siècle, avec toutes les autres maladies en isme. Mais les origines en remontent au commencement des temps modernes, depuis l’éclosion de l’Ecole ‘moderne’ dite du Droit naturel (Grotius – Pufendorf – Wolff etc…)” (VILLEY, 1986, 25 ss.).
Esta abordagem claramente nos leva a considerar uma dimensão objetiva e outra subjetiva na constelação de problemas em torno do Direito Natural. Aquela a que podemos chamar objetiva (embora sobre ela muito de subjetivo se venha a exercer) é a do próprio quid “Direito Natural” (no trecho citado é o “droit naturel”). Já a subjetiva consubstancia-se na forma como é vivida, encarada, aplicada, essa realidade do espírito Direito Natural. Cremos poder subdividir as atitudes possíveis, neste domínio, entre o bom uso e o mau uso do Direito Natural. Sendo que Villey identifica o mau uso, com hipertrofia e alteração dos “órgãos do Direito Natural”, com o “jusnaturalismo”.
Num livro póstumo, o autor de Le Droit et les Droits de l’Homme é explícito sobre o carácter complexo e até elitista (ou “esotérico” como diz, obviamente cum grano salis, o autor) do Direito Natural, o qual “não recomenda a todos”, apenas “aos que podem compreender”. E não entra em mais pormenores (no chamado Livre des Pages). Vale a pena reler essas linhas: “Le droit naturel n’est pas la philosophie des juristes – seulement les meilleurs d’entre eux – (le droit naturel inclut du reste le positivisme – et il explique le succès du positivisme – car de notre point de vue mieux vaut élever le juge médiocre dans cet excès plus que dans l’autre qui serait contraire: l’arbitraire, la fantaisie, le rationalisme –). Je ne recommande pas à tous le droit naturel, mais à ceux-là seulement qui peuvent comprendre. Le droit naturel est ésotérique” (VILLEY, 1995, 45).
É cómoda e facilita a démarche retórica de Villey (sempre usando termos clínicos) esta assimilação do jusnaturalismo ao erro, ao desvio, ao excesso, no uso do Direito Natural. Contudo, uma das regras da tópica jurídica é a da aceitação dos usos das expressões, porque se se infletem muito os sentidos, o entendimento geral ficará prejudicado. Ora, ocorre que o sentido comum, corrente, de “jusnaturalismo” não é esse. Não tem qualquer carga de excesso de “-ismo” ou sequer ressonância pejorativa. Salvo, eventualmente, para os do outro lado da barricada teórica, os juspositivistas, e mesmo para estes apenas quando se ponham a ultrapassar um juízo objetivo e passem a julgar subjetivamente.
O que correntemente se pretende designar com jusnaturalismo é a opção teórica pela adesão ao Direito Natural (se bem, se mal, se exagerada ou não, é outro problema) e não pelo estrito uso e crença no Direito Positivo.
Variedade das opções teóricas dos juristas
Ao contrário do que parece dizer a vox populi, os juristas não são todos iguais. Pensam e agem essencialmente de duas formas diferentes, que todo o cidadão devia conhecer e identificar – para seu próprio governo e orientação (e até defesa).
Os jusnaturalistas acreditam que, além e acima do Direito Positivo, sobretudo legislado (mas que pode decorrer também de usos sociais, etc.), está um outro Direito, superior, o Direito Natural – de origem imanente, inerente às coisas, ou fonte divina (variam as perspetivas). É esta transcendência um vital ascendente da prevalência e importância crucial dos direitos humanos, que sem um fundo de crença jusnaturalista (ao menos remota e eventualmente inconsciente) não alcançariam a dimensão até em grande medida “redentora” do Direito no nosso tempo.
Já os juspositivistas apenas creem no Direito posto pelas sociedades, sobretudo legislado. Daqui decorrem enormes consequências. Desde logo, os direitos humanos seriam revogáveis a bel-prazer dos autoritarismos e totalitarismos, e continuaria tranquilamente a vigorar “Direito” numa sociedade em que prevalecesse a lei da selva, ou do mais forte, estribado em leis iníquas ou na ausência de leis justas e protetoras de direitos, liberdades, garantias, direitos sociais, etc. (que tudo isso hoje se integra de pleno direito na grande constelação de direitos do nosso tempo).
A oposição dualista entre jusnaturalismo e juspositivismo, ou mesmo, apesar de mais abrangente ainda, entre dualismo e monismo jurídicos, poderá parecer a alguns mera questão do passado. Certos dirão que, fora alguns círculos mais conservadores, ou mesmo religiosamente conotáveis, o jusnaturalismo já não tem curso, e esses, ou outros, recordarão que o puro e duro positivismo legalista já não será expressamente defendido por ninguém, tendo ainda os positivismos sociológico e histórico praticamente desaparecido, com a saída de moda, sobretudo no hoje de novo chamado mundo ocidental, do materialismo histórico e dialético.
Estas perspetivas têm assim também a virtualidade de enquadrar ideologicamente uns e outros. Grosso modo, os jusnaturalistas clássicos seriam católicos, os antigos jusnaturalistas racionalistas seriam iluministas e livres pensadores, os positivistas legalistas seriam burgueses e veteroliberais, os positivistas sociológicos e históricos seriam marxistas. É, evidentemente, uma audaciosa e simplificadora generalização, mas não deixará de captar algumas facetas do que seja (ou tenha sido) a realidade.
Cremos que se pode perfilhar qualquer das teorias ou visões de que falámos sem ter aderido ao credo religioso ou político que alguns lhe fazem corresponder. E tal realmente ocorre, pelo menos por vezes. Ernst Bloch, por exemplo, grande teórico da utopia como princípio de esperança (utopismo), teria sido, ao mesmo tempo, marxista e jusnaturalista, se podemos rotular alguém de uma forma tão simples e cabal. Portanto, embora seja útil que conheçamos estas assimilações, não deverá ser por elas que deveremos apreciar estas correntes.
Em grande medida, certamente para evitar as conotações ideológicas referidas, tem havido também quem, não se declarando nem positivista nem jusnaturalista, tenha tendido a apresentar uma outra (terceira) via. Alguns simplesmente falam em superação do positivismo jurídico. Não poucos, em vez de falarem de Direito Natural, preferem Justiça, ou Teoria da Justiça, ou apelam para a Natureza das Coisas (natura rerum), e, de algum modo numa fuga para a metodologia, resolvem os problemas filosóficos pelo uso da tópica, da dialética, da problemática. Não há muitos anos, uma teorização incubada no seio do constitucionalismo, e com desenvolvimentos judiciais (ativismo judicial), acabaria por pretender substituir-se teoricamente às duas clássicas correntes: foi o neoconstitucionalismo, que teve a sua voga, mas de que alguns começaram a afastar-se. Uma excessiva liberdade dos juízes (ativismo) pode dar alguns efeitos benéficos, pontuais, mas pode perigosamente levar ao subjetivismo e mesmo ao despotismo, o chamado “governo dos juízes”. Como em tudo, é preciso haver moderação, equilíbrio, bom senso.
As terceiras vias, porém, nesta matéria continuam a ser ou monistas ou dualistas. Se reconhecemos que pode incomodar a alguns dos dualistas o rótulo de jusnaturalista e a alguns monistas o de positivista, poderemos usar expressões mais inócuas. Mas todos sabemos do que se está a falar.
Correntes jusnaturalistas
Há várias modalidades ou variantes do positivismo e do jusnaturalismo, naturalmente. A bibliografia sobre o tema costumava inundar as feiras do livro de Leipzig todos os anos. Mesmo não existindo hoje um tal entusiasmo bibliográfico, o certo é que se podem detetar várias correntes.
Nesta apreciação, há sempre uma componente interpretativa de grande tomo. Acaba por se ver o que nos chama mais a atenção… Assim, afigura-se-nos que há algumas correntes mais evidentes:
a) Jusnaturalismo romântico. Da mesma forma que há um positivismo algo dado ao argumentum baculinum inventado pelos jusnaturalistas (alguns deles, evidentemente), para o qual o lema máximo seria dura lex, sed lex, brocardo da decadência romana, quando a única boia de salvação social era apenas a inflexibilidade dos comandos coercitivamente postos em prática, também se pode dizer que há uma versão do jusnaturalismo inventada pelos positivistas (TRIGEAUD, 1995). Prescindindo do conhecimento das leis, da metodologia, apenas impulsionado por razões, não da Razão, mas todas do coração, ou, pelo menos, da subjetividade, esta conceção do Direito Natural identifica-o, sem muito mais delongas, com a Justiça e pretende-se justiceira, mas apenas num plano de anelo, com muito pouca ligação com a realidade e as suas circunstâncias e condicionalismos. Vaga, retórica, teórica, no céu dos conceitos, e mais que nele no das boas intenções, este jusnaturalismo merece o epíteto de “romântico”, por contraposição a qualquer perspetiva científica. Note-se, por exemplo, que Hervada (1987) foi dos que quiseram dar ao Direito Natural, pelo contrário, uma dimensão científica.
Quando alguém, invocando ou não explicitamente o Direito Natural, pugna quixotescamente apenas pela Justiça, desde que o faça ainda de forma séria e académica e/ou forense (e não como pretensão sem qualquer lógica, de má-fé, etc.), pode bem catalogar-se como protagonizando uma situação de jusnaturalismo romântico ou de romantização do Direito Natural ou da Justiça.
b) Jusnaturalismo titularista. Os autores que apresentam mais certezas e um didatismo mais evidente neste tema resolvem os complexos problemas da aplicação do Direito Natural recorrendo a um esquema mental nada idealista, crítica que em geral é endereçada a todos os jusnaturalismos.
Tudo costuma partir da tópica desvendadora do Direito, procedimento que epistemologicamente se sucedeu à abordagem positivista da definição (aliás uma definição cheia de imperfeições e até erros, que se ia glosando em cada nova variante de uma pouco imaginativa ars combinatoria – como apontou Jacques Leclercq), e da descrição (procedimento apenas mais redundante). A tópica teórica do Direito pode, numa linha jusnaturalista, colher-se numa passagem do Digesto de Justiniano: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere, ou seja, a “Justiça é a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o que é seu”. O Direito é o objeto da Justiça. A Justiça é atingida pelo caminho prático do Direito. Um dos elementos-chave, tópico essencial, desta frase irradiante é o suum cuique. O seu de cada um.
A pergunta, que Javier Hervada já havia identificado como recorrente em aulas elementares, quando os estudantes resolvem problematizar, é a seguinte: e então, se a Justiça é “a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o que é seu”, o que é esse seu de cada um, como se determina, como se alcança? A resposta é retoricamente forte, é mesmo pesada, é de algum modo convincente: o seu de cada um é o que a cada um pertence ou aquilo a que a cada um é devido por via de um mediador entre as coisas (lato sensu) e as pessoas, entre os direitos e as pessoas, a que chamamos título jurídico. Ora, os títulos jurídicos são, explicando por outra forma, os meios juridicamente adequados, juridicamente aceites, juridicamente eficazes, para operar transformações ou assegurar situações na ordem jurídica, o statu quo jurídico.
Título jurídico é uma fórmula, modo, ou procedimento (até um rito – expressão que se usa mais no Brasil neste âmbito jurídico), ou facto documental em cada sociedade concreta (ou formação social) considerado institucionalmente apto a determinar com rigor, atual e pessoalmente, o que é de cada um (o suum) numa dada relação jurídica, ou de uma forma geral, como é o título “natureza” ou “condição” humana, que, contudo, não é aceite pelos que exageram o rigor dogmático do título: os titularistas, precisamente.
Assim, fala-se, desde logo, em títulos de crédito, por exemplo. Mas também, de forma bem distinta, no título sucessório nas monarquias hereditárias, que garante o legítimo acesso ao trono por via sucessória. No Havre, a contratação de marinheiros fazia-se com um gesto de camaradagem e uma fórmula verbal, do género “Temos homem!”. Entre algumas tribos, na América, o cachimbo da paz, proverbialmente imortalizado pelos westerns, selava o fim de hostilidades guerreiras. A Antropologia Jurídica regista várias manifestações do ritualismo dos títulos.
Entre nós, o Código Civil (embora em normativos de índole materialmente constitucional) elenca as fontes de Direito: como a lei, o costume, etc. Nas fontes institucionais também se integram atos incluídos em fonte de Direito (na jurisprudência), como é o caso da sentença. E ainda se devem referir institutos jurídicos como o contrato, o testamento, etc., que são igualmente títulos jurídicos. Acrescente-se a titularidade proveniente de usucapião, aquisições originárias, etc.
O problema é que um positivismo não estritamente legalista também aceitará como títulos os legitimamente considerados numa dada ordem jurídica. E mesmo um positivista legalista, afinal, com o enorme impacto da lei na regulação da vida social, certamente pouco se afastará de um jusnaturalista que jure apenas por um conjunto de títulos, é certo que mais vastos do que a simples lei, mas ainda assim confinados ao determinado.
Porém, não se pode esquecer o fundamental, para além das discussões mais ou menos técnicas. Por isso, temos que ir às origens. Recordemos que a narrativa fundadora/legitimadora do jusnaturalismo, contada e recontada em todos os manuais e tratados introdutórios que professam essa perspetiva, é o mito de Antígona. Ordem do soberano, possivelmente lei e muito plausivelmente costume, dariam razão à execução iníqua do não sepultamento de um dos irmãos da princesa, que disputavam o trono de Édipo. Ora, Antígona, ao invocar as agraphoi nomoi (leis não escritas), terá ou não explicitamente remetido para o Direito Natural e assumido uma posição jusnaturalista. De qualquer forma, salvo algumas perspetivas de um entendimento mais “purista”, a mensagem que o mito difundidíssimo (e encenado, aliás, em belíssimas peças de teatro, de Sófocles a Jean Anouilh e mesmo a António Sérgio, entre nós) passa é a de que há um Direito Natural acima do positivo e que esse Direito Natural consubstancia a Justiça.
É a questão da Justiça que está em causa. Ora, não haverá muito mais justiça na consideração de um único ou, pelo menos, muito preponderante título jurídico (como o farão os juspositivistas legalistas, a maioria dos juspositivistas, e hoje ainda mais numerosos), ou na consideração de vários títulos jurídicos possíveis. O espírito de ir procurar a solução a um lugar seguro mas alheio, uma caixinha ou repositório de soluções, é pelo menos uma aproximação ao dogmatismo. Claro que a atitude simétrica, de acreditar que o julgador, sem parâmetro externo, possuiria uma ciência ou sabedoria ou justiça infusa, é também perigoso e leva ao subjetivismo. No fundo, são os extremos do procedimento: o subjetivo, que crê poder o julgador extrair a justiça de si como a aranha segrega o seu fio, e o objetivo, que vai procurar algures o padrão, o norte, para encontrar a solução. E quanto ao que é de A ou de B, esse padrão é o título.
Num como no outro caso, na situação do positivista legalista como na do jusnaturalista que não dá um passo sem a caução do título, concreto, aplicável, está-se perante um titularismo. No primeiro caso, abertamente evidenciado, ainda que nem se faça muito alarde da categoria “título”; no segundo, o titularismo domina o jusnaturalismo, ao ponto de se poder dizer que se está perante um jusnaturalismo positivista. Jusnaturalismo titularista é o mesmo que jusnaturalismo positivista. Ou, dirão os mais desconstrutores, é ainda o positivismo sob capa jusnaturalista, que seria apenas um discurso legitimador de um procedimento em tudo idêntico. Num e noutro caso, note-se que o grande problema do Direito Natural versus Direito Positivo, que é a questão da Justiça, está perdido no jogo de encontrar ou não título válido, atual, para aquele caso, para aquela(s) pessoa(s).
Onde se vai de novo colocar a questão da Justiça é nas tentativas de superação do titularismo. Uma superação do estrito titularismo, próprio de um acanhado jusnaturalismo positivista (e do positivismo legalista), faz incluir a natureza ou a condição humana (é duvidoso que haja mesmo uma natureza humana) no rol dos títulos jurídicos, permitindo assim a consideração de verdadeiros direitos fundamentais naturais, que para muitos se identificam com os direitos humanos. esta a grande fundamentação filosófica (teórica, e política) dos direitos humanos, um verdadeiro ponto fixo de Arquimedes.
c) Jusnaturalismo dialético. Ainda há muitos juristas que concebem o Direito Natural como uma dimensão filosófica, que faria conjunto com os direitos fundamentais, a nível interno dos países, e os direitos humanos, que seriam a sua versão internacional. Outros, porém, encaram o Direito Natural como uma espécie de trunfo na manga de quem não tem argumentos de Direito Positivo. Feliz ou infelizmente, os tribunais hoje raramente dão ouvidos a essa cartada espetacular… Mas há ainda um outro grupo que, com base, afinal, numa forma mentis positivista, dogmática, normativista, encara os direitos humanos como um direito-outro, um catálogo de direitos paralelo aos do Direito Positivo. As listas elencadas nas múltiplas declarações de direitos são hoje Direito Positivo, mas é verdade que foram, antes, Direito Natural, pelo menos alguns dos direitos nelas contidos. A transformação, nos tempos constituintes revolucionários a partir do século XVIII, das ideias jusnaturais em princípios juspositivos de alguma forma colocou o dedo na ferida. O Direito Natural não é um direito outro, uma lista paralela de direitos.
Tal remete para uma outra forma de encarar o Direito Natural: a forma dialética. É verdade que não parece haver muita doutrina explicitando concretamente como é que o Direito Natural não é um decálogo moisaico, escrito a letras de oiro sobre tábuas de mármore, antes uma subtil realidade mutável, dada à dialética, com o auxílio da tópica e da retórica. Autores como Michel Villey, François Vallançon,ou Francisco Puy foram, porém, nesse sentido.
Numas jornadas internacionais de Direito Natural, em Córdova, dois juristas foram encarregados de versar o tema da metodologia do Direito Natural, e vale a pena ver a enorme distância de perspetivas por que encararam a questão. Imagine-se agora como é complexo ver o problema postulando que o próprio Direito Natural é um método e não um dogma, uma forma de nos aproximarmos da Justiça sopesando os casos concretos com o uso de tópicos. Com efeito, o Direito Natural é uma metodologia, e uma metodologia dialética. Mas também deve ter-se cuidado, porque reduzir o Direito Natural apenas à metodologia dialética não será esvaziar-lhe uma parte do seu imenso legado? No fundo, admitimos que a dimensão metodológica seja importantíssima, seja mesmo o essencial, mas certamente, embora neguemos a perspetiva dogmática, de catálogo, não há dúvida de que ela ainda paira no imaginário um tanto difuso que é património comum dos juristas nesta temática.
d) Neojusnaturalismo crítico. Um neojusnaturalismo crítico pretende salvar ainda o legado jusnatural, mas adaptá-lo em diálogo e, por vezes, absorvendo muitos mais contributos da História do pensamento e da prática jurídica. Fá-lo de forma dual: utilizando duas modulações do radical jusnaturalismo: o “neo-” e o “crítico”. O neojusnaturalista crítico quer continuar a invocar o património jusnatural, mas também se poderia simplesmente considerar um dualista, evidentemente.
O “neo-” sobretudo remete para a revolução dos direitos humanos e para a consideração de que é preciso considerar o seu a seu dono pelo facto de cada qual ser Pessoa. Recusando o agelástico jusnaturalismo titularista, que é, como vimos, uma outra forma de positivismo.
O “crítico” remete para todo o legado das correntes críticas em Direito, com várias designações e arautos, que em geral saíram de moda também (salvo microclimas). Algumas não passavam de uma adaptação de cartilhas ideológicas – não tendo esse legado valor senão esse mesmo. Mas outras foram capazes de sugerir aportações de vulto para a “despinguinização” jurídica, como referia Luis Alberto Warat. Aliás, este mesmo autor argentino, exilado no Brasil, que não deixou de ser iconoclasta até em estudos sobre a norma fundamental de Kelsen (em banda desenhada), apercebeu-se de que havia (e haverá) estudos pretensamente críticos que revelam grave desconhecimento da técnica jurídica e a vontade de substituir o discurso sobre o Direito por passos em volta dele, redundando em simples verbalismo e lateralização.
Além disso, a qualificação, hoje, de um jurista não está só nestes eixos clássicos da oposição binária jusnatural/positiva. Há dimensões institucionais e metodológicas a considerar. Pode-se ser judicialista ou normativista, e em grau diverso. Pode-se ser defensor do pensamento tópico, dialético e problemático ou do pensamento dogmático, construtivista, logicista, sistemático. E a combinação destas dimensões nem sempre é simples. Embora, em geral, se seja dualista, judicialista e problemático, de um lado, ou monista, legalista, e dogmático, do outro.
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Autor: Paulo Ferreira da Cunha