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  • Kant, Immanuel [Dicionário Global]

    Kant, Immanuel [Dicionário Global]

    Possibilidades e limites da humanidade na filosofia de Kant

    Como pensador e cidadão, Kant foi um entusiástico militante da renovação positiva para a dignidade humana, transportada, primeiro, pelas Luzes e, depois, pelo programa de republicanismo constitucional, representado pelas Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789). Contudo, o que aqui se pretende não é elencar a coincidência, pelo menos parcial, de Kant com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas antes ir mais fundo. Procura-se, a partir de uma visão o mais ampla possível da obra kantiana e do respetivo contexto intelectual, ir aos fundamentos da própria conceção kantiana de humanidade, identificando as suas características profundamente originais, vertidas numa obra na qual se combinam corajosamente a esperança e o realismo, a aposta no valor do esforço e a permanente desconfiança em relação à capacidade humana de preferir a ilusão confortável à verdade inquietante.

    Um pensamento seminal

    A grandeza específica do pensamento de Kant é a de ele se ter revelado, ao longo de dois séculos de receção, como um pensamento essencialmente seminal. Outras grandes obras, como é o caso de Hegel, são magníficos pontos de chegada. Outras obras, ousados pontos de partida, como é o caso do pensamento de Nietzsche. A reflexão de Kant é um hospitaleiro lugar para a tradição, mas sobretudo um generoso alfobre de materiais para todo o pensar contemporâneo: o que já foi produzido e aquele que se esconde, ainda, nas promessas do futuro.

    Na obra de Kant repercutem-se temas centrais da tradição milenar da metafísica e da teologia ocidentais, mesmo universais. Numa certa maneira, o que foi a Crítica da Razão Pura, em particular na sua “Dialética transcendental”, senão um acerto de contas e um deliberado desvio de perspetiva no método de tratamento das grandes ideias que povoam o nosso imaginário desde a fundação da “idade axial” (“Axenzeit”), para usar a penetrante expressão de Karl Jaspers? Um desses temas é, sem dúvida, o próprio sentido da existência humana como comunidade. O estatuto da comunidade humana não pode ser separado da quarta pergunta, acerca da natureza humana, que, segundo Kant, definia o campo da filosofia numa “aceção universal” (“weltbürgerlichen Bedeutung”) (Logik, in KANT, 1902 ss., IX, 25).

    Com efeito, um dos temas mais carregados de possibilidades significativas é o do estatuto da humanidade como potencial sujeito. Esse tema permite um olhar plural, tanto temporal como semanticamente. Temporalmente, o tema da humanidade como sujeito permite estabelecer a ligação entre Kant e as filosofias da História anteriores, ou suas contemporâneas. Umas tão brilhantes como larvares, como é o caso de Pascal. Outras plenamente inaugurais, como em Voltaire. Outras amadurecidamente conflituais, como é o caso do antigo aluno Herder. Semanticamente, a noção de “humanidade” carrega uma polissemia, patente já no pensador de Königsberg, mas que vai disseminar-se na função fecundante que o conceito irá desempenhar muito depois da sua morte em grandes pensadores que não deixaram de prestar a Kant o seu merecido tributo.

    Foi Feuerbach quem abertamente reconheceu ter sido Kant o introdutor do conceito de “humanidade”, precisamente enquanto “género”, antecipando assim um tema nuclear para o pensamento do próprio Feuerbach. A observação de Feuerbach é efetuada no contexto da exegese do papel desempenhado pelo conceito de “Deus” na obra de Hegel. Dessa forma, o autor de A Ciência da Lógica era acusado de lançar uma sombra meramente simbólica sobre aquilo que Kant tentara pensar com luminosidade e transparência: “Mais precisamente, expressou-se a censura de que, segundo Hegel, Deus era somente um conceito de género, a saber, o conceito de género da humanidade. A única coisa a lamentar é que Hegel não tenha ele mesmo acentuado com precisão o referido conceito de género da humanidade, que Kant verdadeiramente introduziu pela primeira vez na Filosofia (na sua Ideia para uma história da humanidade com propósito cosmopolita e na sua recensão sobre as Ideias para uma filosofia da história, de Herder)” (“Bestimmter hat man ausgedrückt den Vorwurf, dass Gott nach Hegel nur ein Gattungsbegriff, und zwar der Gattungsbegriff der Menschheit sei. Zu bedauern ist nur, dass Hegel dies nicht selbst bestimmt ausgesprochen, überhaupt den Gattungsbegriff der Menschheit, den Kant eigentlich erst in der Philosophie einführte [in seiner ‘Ideen zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht’ und in seiner Rezension von Herders ‘Ideen zur Philosophie der Geschichte’]”) (FEUERBACH, 1839, 254).

    Curiosamente, a pista simbólica da equivalência entre Deus e humanidade, aberta por Feuerbach relativamente a Hegel, será explorada muito mais tarde por Max Adler relativamente a Kant. Adler irá afirmar, repetidamente, que na ética kantiana o conceito de “Deus” é essencialmente um símbolo da humanidade histórica em progresso. Deus, enquanto ideia, seria uma representação dominada por um “conteúdo social” (“der soziale Inhalt”): “A fé da razão prática de Kant em Deus não é, portanto, no fundo nada mais do que a fé na possibilidade de desenvolvimento da humanidade” (“Der Glaube der praktischen Vernunft Kants an Gott ist also im Grunde nichts anderes als der Glaube an die Entwicklungsmöglichkeit der Menschheit”) (ADLER, 1975, 401). Mas o que é a “humanidade” para Kant? Qual a relação que esse conceito estabelece com a perspetiva múltiplas vezes reiterada de uma “comunidade” vivendo sob leis de razão? Serão estas duas conceções, meros sinónimos, conjuntos que coincidem em extensão e definição, ou, pelo contrário, duas representações substancialmente divergentes?

    Neste breve exercício de reflexão sobre a obra e com a obra de Kant, tentaremos demonstrar que “humanidade” e “comunidade de seres racionais”, embora partilhando um elemento projetivo essencial comum, estão longe de coincidir em extensão e natureza. Iremos averiguar os fundamentos dessa assimetria em três momentos principais: num primeiro, que poderemos designar como estando situado numa esfera dominantemente quantitativa e espacial; num segundo, que se situará num âmbito temporal e histórico; e num terceiro, que poderemos designar de ontológico e constitutivo.

    A humanidade no horizonte do espaço astronómico

    O interesse permanente de Kant pelas questões astronómicas não é indiferente para o nosso inquérito. Com efeito, não só o tema da infinitude física do universo constitui, por si só, um alimento fulcral da vertigem dialética que conduzirá à necessidade da disciplina crítica exercida pela filosofia transcendental sobre as desmesuradas pretensões da metafísica, como esse mergulho no infinito não poderá deixar de afetar a imagem de humanidade articulada pelo nosso filósofo.

    Em 1755, no mesmo ano em que o terramoto de Lisboa fez desmoronar a capital do império marítimo português, o jovem Kant embarca na sua viagem pelos incomensuráveis labirintos da matéria, na sua formidável reflexão sobre a estrutura e composição do universo, o que o tornou desde logo um dos pais da moderna Astronomia. Na Teoria do Céu (Theorie des Himmels), o lugar da humanidade não deixa de ser interrogado especulativamente. Nesta obra, o fundo geral em que as meditações de Kant sobre a condição humana se situam é o do prosseguimento da crítica do antropocentrismo, retomando o fio condutor do descentramento antropológico que poderemos também encontrar, por exemplo, em Kosmotheoros (1698), de Christiaan Huygens. A noção, então muito em voga nas versões populares de teodiceia, de um universo inteiramente dedicado à tarefa de satisfazer as necessidades humanas contrasta com a dupla conceção do pluralismo e da hierarquia das inteligências no universo.

    Na imensidão do universo, Kant, seguindo a linha dominante da sua época, admitia com segurança a existência não só de outros planetas povoados, como mesmo de outras espécies de seres vivos, não só possuidores de faculdades racionais, mas mesmo com capacidades intelectuais muito superiores àquelas exibidas pela nossa humanidade. No que concerne ao pluralismo de espécies inteligentes disseminadas pelo espaço exterior, a começar desde logo pelos planetas do nosso pequeno sistema solar, não se julgue que estamos perante uma moda ou um entusiasmo juvenil do nosso filósofo. Recorde-se que em plena Crítica da Razão Pura (1781), quando o nosso autor necessitou de encontrar um exemplo da atitude cognitiva que designa por “fé firme” (“starker Glaube”), ele não hesitaria em apostar na existência de habitantes em pelo menos algum dos planetas visíveis a partir da Terra, chegando até a afirmar ser a sua convicção tão intensa que seria capaz de colocar em jogo, a favor dessa suposição, toda a sua fortuna (Kritik der Reinen Vernunft, in KANT, 1902 ss., III, 534-535).

    No que concerne à mais ousada especulação sobre a hierarquia de inteligências, já nos planetas do nosso sistema, Kant efetua uma interessante analogia entre a tese acerca da densidade média decrescente dos planetas, à medida que se afastam do centro solar. Trata-se de um dos corolários da teoria newtoniana da gravitação universal, que nos procura dar conta da passagem de planetas telúricos (até Marte) a planetas gasosos (depois de Júpiter). Com efeito, o jovem Kant vai interrogar-se sobre se a posição intermédia da Terra (é preciso não esquecer que em 1755 o último planeta então conhecido era Saturno) não implicaria também, no que ao grau de inteligência dos seus habitantes diz respeito, uma posição intermédia. A humanidade ocuparia na hierarquia das capacidades intelectuais uma posição de transição, tendo, de um lado, a grosseria extrema dos habitantes de Mercúrio e, do outro, a subtileza inteligente dos presumíveis habitantes de Júpiter e de Saturno (Theorie des Himmels, in KANT, 1992 ss., I, 366-367).

    O balanço para a humanidade da habitação num universo sem centro nem limites não poderia deixar de ser, pelo menos, melancólico. Apesar da nossa grotesca tendência para a sobrevalorização, a verdade é que a nossa espécie é rude e grosseira. A humanidade é uma espécie que não só não esgota o campo da racionalidade, como se encontra “infinitamente afastada do degrau superior dos entes” (“unendlich weit von der obersten Stufe der Wesen absteht”) (Theorie des Himmels, in KANT, 1992 ss., I, 379-389). Muito mais tarde, em pleno período crítico, ao analisar a estrutura da moralidade, Kant não deixa de efetuar um análogo exercício de descentramento. Com efeito, aí se acentua sem evasivas que a estrutura propriamente universal e transcendental do agir nada tem que ver com as circunstâncias mundanas e antropológicas, mas sim com os “conceitos puros da razão”, sendo por isso os imperativos éticos válidos igualmente também para “outros seres racionais” (Grunledgung zur Metaphysik der Sitten, in KANT, 1902 ss., IV, 389).

    Confrontado com a infinitude do mundo, a humanidade sente-se, pois, como que pulverizada, “destruída”, para usar a expressão de Kant na Crítica da Razão Prática. O firmamento fervilha não só de luzes estelares, mas com a multidão inumerável de mentes que delas se alimentam. Mas mesmo no que concerne à “lei moral interior”, a segunda causa da “admiração” kantiana, estamos muito longe de a considerar uma propriedade exclusiva da humanidade. Pelo contrário, a personalidade moral é algo que tem de ser perseguido com tenacidade a partir da condição animal e sensível que é a nossa (“Duas coisas enchem o espírito duma admiração e duma veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequente e incessantemente a reflexão com isso se ocupa: o céu estrelado por cima de mim e a lei moral em mim. […] O primeiro panorama de uma quantidade inumerável de mundos destrói por assim dizer a minha importância como criatura animal, que deve devolver a matéria da qual se formou ao planeta (um simples ponto no universo) depois de ter sido durante um certo período de tempo (não se sabe como) dotado de força vital. O segundo, pelo contrário, eleva infinitamente o meu valor como uma inteligência, através da minha personalidade, na qual a lei moral me revela uma vida independente da animalidade e mesmo de todo o mundo sensível […]” (“Zwei Dinge erfüllen das Gemüt mit immer neuer und zunehmenden Bewunderung und Ehrfurcht, je öfter und anhaltender sich das Nachdenken damit beschäftigt: Der bestirnte  Himmel über mir, und das moralische Gesetz in mir […] Der erstere Anblick einer zahllosen Weltenmenge vernichtet gleichsam meine Wichtigkeit, als eines tierischen Geschöpfs, das die Materie, daraus es ward, dem Planeten (einem blossen Punkt ins Weltall) wieder zurückgeben müss, nachdem es eine kurze Zeit (man weiss nicht wie) mit Lebenskraft versehen gewesen. Der zweite erhebt dagegen meinem Wert, als einer Intelligenz, unendlich, durch meine Persönlichkeit, in welcher das moralische Gesetz mir ein von der Tierheit und selbst von der ganzen Sinnenwelt unabhängiges Leben“) (Kritik der Praktischen Vernunft, in KANT, 1902 ss., V, 161-162).

    Vistas as coisas sob o prisma do espaço e do mundo, a humanidade é, na melhor das hipóteses, um diamante que tem de ser lapidado. Vejamos agora o que nos pode oferecer uma perspetiva traçada a partir da temporalidade sobre a condição humana.

    A humanidade como possibilidade histórica

    Será que Herder e Kant estão tão afastados, como normalmente se considera, no que respeita à realidade da humanidade (cf. SOROMENHO-MARQUES, 1998b)? No mundo dos fenómenos, o que surpreendemos são indivíduos singulares dispersos pela geografia e pela História. A “humanidade” não é algo a encontrar no campo da intuição sensível, nem sequer no diligente trabalho conceptual do historiador sobre os dados empíricos. A humanidade é um horizonte de possível. É uma ideia que ilumina a leitura do tempo histórico e que surge como uma tarefa para a nossa razão prática. Com efeito, é a perspetiva da humanidade, não como um dado objetivo, mas como uma tarefa a realizar pelo esforço e pela disciplina que pode transformar a História num tema filosófico. A passagem de uma situação de fragmentação entre singularidades individuais para o estatuto de uma humanidade comunitariamente organizada surge então como a possibilidade de um “fio condutor” para uma filosofia da História.

    A humanidade como uma tarefa a construir tem uma relação direta com o estatuto binário da condição humana, com o facto de os princípios da racionalidade, os únicos que permitem a constituição de um campo de transparência e comunicação universal onde a humanidade se torne possível, ocuparem apenas uma parte da nossa estrutura ôntica. Na verdade, os homens, no seu agir, combinam o instinto animal com a dimensão de cidadãos racionais do mundo: “Visto que os seres humanos nos seus esforços não procedem no conjunto de forma simplesmente instintiva, como animais, e também não como cidadãos racionais do mundo, segundo um plano combinado […]” (“Da die Menschen in ihren Bestrebungen nicht bloss instinktmässsig, wie Tiere, und doch auch nicht, wie vernünftige Weltbürger, nach einem verabredeten Plane, im ganze verfahren […]”) (Idee zu Einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht, in KANT, 1902 ss., VIII, 17).

    A dilaceração interna à constituição humana, entre animalidade e racionalidade, é acompanhada no exterior das relações intersubjetivas por conflitos de toda a ordem, que Kant integra no quadro do conceito de “sociabilidade insociável” (“die ungesellige Geselligkeit”). Nessa medida, o grande filósofo da paz articula uma teoria do conflito, uma espécie de dialética (em sentido hegeliano) da guerra, como estando inserida nesse processo de lapidação do melhor que se oculta no “diamante” humano. A sociabilidade insociável, como conceito hermenêutico para a compreensão da positividade possível deixada como lastro da violência histórica, poderia “cumprir” as seguintes funções no processo de “racionalização” progressiva da condição humana:

    1. Despertar as Keime (os embriões de racionalidade adormecida), que através do antagonismo permitem ultrapassar a ordem do instinto.
    2. Desenvolver as Keime através de uma série de gerações.
    3. Considerar a racionalidade como obra sua, da condição humana, pois foi desenvolvida pelo seu esforço.
    4. Vislumbrar o maior problema que se coloca à humanidade como sendo o da edificação do Estado de Direito em todas as escalas geográficas (portanto, um horizonte de sociabilidade sob leis racionais) (Idee zu Einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht, in KANT, 1902 ss., VIII, 22).

    A ideia de uma humanidade vivendo sob leis racionais é, então, inseparável de um processo transformador no sentido de uma maior racionalidade, condição essencial para a comunicação inerente à constituição de uma ordem política internacional. Ora, para Kant, esse processo é duplo. Como vimos acima, trata-se não só de um processo de “racionalização”, mas também de um processo de “hominização”, nos sentidos antropológico e biológico em que o conceito é usado nos nossos dias. Kant não hesita, tanto antes como após as inovações aportadas pelo amadurecimento crítico da sua filosofia, em contemplar os aspetos, também eles históricos, do enraizamento da racionalidade no corpo de uma animalidade em autotransformação. Roçando de muito perto as temáticas oitocentistas do evolucionismo, Kant sublinha que a dignidade da condição humana reside também no esforço de passar de um animal rationabile a um outro que se pode tornar em animal rationale. Esse esforço de passagem de um animal dotado de capacidade para a razão (“Vernunftfähigkeit begabtes Tier”) a um animal efetivamente dotado de faculdades racionais (“vernünftiges Tier”) é um drama que não se expressa, somente, no palco da deliberação ética. É uma enorme odisseia que envolve o tempo longo da história natural e sucessivas cadeias de gerações progressivamente mais humanizadas (Anthropologie in Pragmatischer Hinsicht, in KANT, 1902 ss., VII, 322).

    Nessa medida, Kant estabelece uma clara correlação entre a unidade jurídica e política, futuramente possível da humanidade, e a unidade biológica da nossa espécie, ocorrida no processo temporal da hominização. Uma correlação entre o software e o hardware, para usarmos uma metáfora informática. Com esse desígnio, elaborou o pensador de Königsberg uma diferença conceptual fundamental, a saber, entre “descrição natural” (“Naturbeschreibung”) e “história natural” (“Naturgeschichte”). Só pela via deste último conceito, que constitui uma protoideia em sentido regulador, poderemos satisfazer a nossa necessidade de conhecimento compreensivo. Enquanto a descrição natural corre o risco de nos deixar prisioneiros de uma diversidade sincrónica, num labirinto de fragmentação sem princípio de unidade, a história natural permite-nos ultrapassar diferenças, aparentemente absolutas nas classificações, mostrando parentescos anteriormente insuspeitos (Von den Verschiedenen Rassen der Menschen, in KANT, 1902 ss., II, 434). É precisamente pela perspetiva aberta pela “história natural” que poderemos entrever, apesar de todas as suas diferenças anatómicas e morfológicas, todos os seres humanos como pertencendo a um mesmo “género natural” (“Naturgattung”), contra a tese tendencialmente racista das “criações locais” (“Lokalschöpfungen”), que estabeleceriam um abismo ontológico no qual apenas existem diferenças secundárias (Von den Verschiedenen Rassen der Menschen, in KANT, 1902 ss., II, 429).

    Sobre a temática racial, Kant consegue, por meios estritamente especulativos, uma proeza que só foi possível demonstrar empiricamente já no século XX, depois da descoberta do ADN, em 1953. Seguro de que a diversidade racial não afetava a unidade da espécie humana, o nosso pensador irá introduzir dois conceitos com um potencial duplamente hermenêutico e heurístico. Por um lado, o conceito de “tronco comum” (“gemeinschaftlicher Stamm”), e, por outro, o conceito de “diferenças hereditárias” (“erbliche Charaktere”). Pela articulação entre ambos os conceitos, consegue Kant explicitar o processo histórico-natural que permite a diferenciação de diferentes classes de indivíduos que se tornam em raças, sem cair na posição extrema, não confirmada pelo mais atualizado conhecimento científico, de estender essa diferenciação ao ponto de invalidar a pertença de todos os diferentes segmentos da humanidade ao mesmo “tronco comum” do género humano (Bestimmung des Begriffs einer Menschenrace, in KANT, 1902 ss., VIII, 99).

    Os três limites a uma efetiva comunidade humana de seres racionais

    A construção de uma comunidade vivendo sob leis racionais, como empresa humana universal, tem como face positiva a perspetiva do Estado de Direito à escala internacional, mas como limite a persistência de um resíduo intransponível, uma opacidade insuperável da condição humana, que funcional como resiliente obstáculo à plena determinação da vontade humana pelos imperativos racionais. Vejamos como esse resíduo persistente se manifesta sob a forma de três limites aparentemente insuperáveis.

     

    Um limite constitutivo

    O primeiro e mais fundamental de entre esses limites é o que surge na obra central de Kant sobre religião. Nesse texto de 1793, que forte perturbação viria a provocar na biografia do já idoso filósofo, é efetuada uma separação entre “uma sociedade civil jurídica” (“eine rechtlichbürgerliche Gesellschaft”) e “uma sociedade civil ética” (“eine ethischbürgerliche Gesellschaft”). Numa perspetiva de filosofia da História, o segundo conceito designa um ideal de sociedade contido numa ideia, mas que não é jamais plenamente realizável por humanos. Trata-se de uma união de seres humanos sob leis de virtude, não coativas, o que não pode ser o resultado da “vontade geral” (“allgemeine Wille”) do povo, que se limita ao plano político legal, mas sim obra de Deus, embora cada um dos seus membros deva concorrer para esse fim “como se” (“als ob”) tudo dependesse apenas de si (Die Religion innerhalb der Grenzen der Blossen Vernunft, in KANT, 1902 ss., VI, 96). Importa recordar que, para Kant, “Deus” não é um objeto de conhecimento, não é possível ter em relação a Ele qualquer aproximação de tipo científico, e muito menos qualquer espécie de “prova” da sua existência. No limite, Deus é um postulado da razão prática (um “querer que assim seja”). Mesmo aí, trata-se de um postulado facultativo, pois a validade da ética kantiana não depende da crença em Deus, bem pelo contrário. Uma ação moral operada pelo medo de um castigo divino é para Kant heteronómica. É realizada por medo, e não pela adesão autónoma e incondicional da nossa vontade à universalidade da lei moral.

    No melhor dos futuros possíveis, a humanidade será capaz de se constituir como sociedade civil jurídica, unida por leis acompanhadas pelo poder de coação. Mas mesmo nesse reino de legalidade pública imperaria o que Kant designa de “estado de natureza ético” (“ethischer Naturzustand”), cuja raiz reside na recapitulação do pessimismo luterano acerca “da retorcida madeira” (“aus krummen Holze”) de que somos feitos (Die Religion innerhalb der Grenzen der Blossen Vernunft, in KANT, 1902 ss., VI, 100).

    Um limite funcional

    Em vários estudos dedicados ao tema da paz em Kant, temos caracterizado a posição kantiana como podendo ser designada como propugnando um federalismo defensivo. Um modelo de federalismo que era mais do que aquilo que o Abbé de Saint-Pierre e outros confederalistas ofereciam no século XVIII, mas francamente menos do que o federalismo constitucional, nascido com a Constituição norte-americana de 1787. Indo até mais longe, Kant manifesta plena consciência de que o seu modelo de federalismo constitui uma espécie de “substituto negativo” (“negative Surrogat”) da “ideia de uma república mundial” (“Idee eine Weltrepublik”). A raiz para tal limitação habita num limite funcional, aparentemente insuperável, que impede a reprodução perfeita, na relação entre os Estados, do processo de formação da ordem jurídica ao nível das relações entre os indivíduos. Sem a existência dessa resistência funcional, nada se oporia à paulatina concretização de um “Estado de povos” (civitas gentium ou “Völkerstaat”), que deveria abarcar no mesmo abraço de legalidade e ordem “todos os povos da Terra” (“alle Völker der Erde”) (Zum Ewigen Frieden, in KANT, 1902 ss., VIII, 357).

    Um limite gnosiológico

    Os dois tipos de limite acima identificados remetem para a própria estrutura interna da condição humana. Para alterar esses dados essenciais, teríamos de esperar uma nova Criação, algo que Kant sempre recusou como sendo uma expectativa visionária e irrealista. Mas haverá algum outro limite, que, pela sua aparente proximidade e plasticidade, poderia produzir um resultado inesperado? A nossa resposta é afirmativa, e a raiz dessa terceira e perturbante limitação pode ser descortinada numa curiosa passagem em que Kant se refere a um povo de demónios. Nessa passagem, escreve Kant que “O problema da edificação do Estado é, por muito duro que isso possa soar, resolúvel até para um povo de demónios (desde que eles sejam providos de entendimento)” (“Das Problem der Staatserrichtung ist, so hart wie es auch klingt, selbst für ein Volk von Teufeln (wenn sie nur Verstand haben) aufllösbar”)(Zum Ewigen Frieden, in KANT, 1902 ss., VIII, 366). O que pretende Kant comunicar-nos com isto? O que significa, na verdade, a reserva condicional que o nosso autor coloca entre parêntesis, para que as dificuldades colocadas no caminho da fundação de um Estado possam ser solucionadas com êxito?

    A faculdade de entendimento, de que os diabos teriam de ser providos para uma boa decisão em matéria de Estado, não nos remete para o plano moral, nem para o interesse prático da razão em geral, mas sim para o domínio cognitivo, isto é, para o horizonte do interesse teórico. Se não é possível esperar da humanidade – mesmo no seu melhor momento, antecipável do ponto de vista de uma filosofia da História iluminada pela ideia de progresso – qualquer reconversão ética radical, muito menos poderemos esperar uma qualquer reviravolta moral no tocante a um “povo de demónios”, que seriam por definição seres malignos optando pelo mal – cuja raiz coloca o egoísmo no lugar do universal – como princípio da ação. A referência que Kant efetua à faculdade do entendimento procura situar claramente a condição de possibilidade da construção do Estado não num plano moral, mas sim num plano teórico, quer dizer, no domínio gnosiológico, do conhecimento dos objetos situados no espaço e no tempo. A intenção clara de, neste contexto, colocar fora de prioridade a dimensão ética surge quando, mais adiante, Kant inverte a habitual relação entre moralidade e constituição política, ao escrever: “pois não é de esperar da moralidade a boa constituição política, mas antes, inversamente, primeiro desta última a boa formação moral de um povo” (“wie denn auch nicht von dieser [moralidade] die gute Staatsverfassung, sondern viel mehr, umgekehrt, von der letzteren allerest die gute moralische Bildung eines Volkes zu erwarten ist”) (Zum Wwigen Frieden, in KANT, 1902 ss., VIII, 366).

    Qual é, em síntese, a importância do entendimento no processo de construção da paz? O entendimento é necessário para levar o povo de demónios a compreender que não existe outra alternativa ao Estado, se o objetivo da sobrevivência constituir também para os diabos um móbil de ação. Nesta medida, se em vez de Estado colocarmos uma ordem internacional regida por algumas regras essenciais comuns, então Kant antecipou em duzentos anos a lógica da dissuasão nuclear que evitou (pelo menos até agora…) a hecatombe de um conflito nuclear direto entre grandes potências. As dúvidas hermenêuticas que conduzem à hipótese de uma terceira limitação residem precisamente aqui. Quando escreve sobre a necessidade de entendimento, Kant parece querer significar que são os homens, e não os diabos, a necessitar de perceber que não existe alternativa à lei e à ordem, nos planos estadual e internacional, se quisermos escapar à destruição pelo ferro e pelo fogo. O limite gnosiológico, o terceiro e mais perigoso, por ser o que mais invisível se revela, de tão íntimo e interiorizado se encontrar em nós, conduz-nos à incerta pergunta: será que temos entendimento suficiente para vermos o que está em jogo na urgência de construir uma ordem internacional baseada no Estado de Direito à escala internacional? Será que todos teremos capacidade e lucidez suficientes para aceitar a vida como um valor que deve ser preservado, ou seremos, pelo contrário, levados por uma paixão particularista, tribal e fanática ao suicídio?

    No terceiro limite à possibilidade de constituição de uma humanidade como comunidade de seres racionais esconde-se a teimosa resistência do egoísmo e da singularidade que se fecha na sua concha como se aí residisse o centro do mundo. Como escreveu Kant, deixando antever a sombra mortal que acompanha a aventura humana, “As paixões são gangrenas para a razão pura prática e a maior parte das vezes incuráveis” (“Leidenschaften sind Kerbschäden für die reine praktische Vernunft und mehrenteils unheilbar”) (Anthropologie in Pragmatischer Hinsicht, in KANT, 1902 ss., VII, 266).

    Bibliografia

    ADLER, M. (1975). Das Soziologische in Kants Erkenntniskritik. Ein Beitrag zur Auseinandessetzung Zwischen Naturalismus und Kritizismus. Aalen: Scientia Verlag.

    FEUERBACH, L. (1839). Gesammelte WerkeÜber Philosophie und Christentum in Beziehung auf den der Hegelschen Philosophie Gemachten Vorwurf der Unchristlichkeit (vol. 8). Ed. W. Schuffenhauer. Berlin: Akademie Verlag.

    KANT, I. (1902 ss.). Gesammelte Schriften. Berlin: Königliche Preussische Akademie der Wissenschaften/Preussische Akademie der Wissenchaften.

    SOROMENHO-MARQUES, V. (1998a). Razão e Progresso na Filosofia de Kant. Lisboa: Edições Colibri.

    SOROMENHO-MARQUES, V. (1998b). “Herder e Kant: Os limites do enraizamento natural do progresso”. In Razão e Progresso na Filosofia de Kant (311-335). Lisboa: Edições Colibri.

    SOROMENHO-MARQUES, V. (2007). “Kant e a comunidade de seres racionais. Quatro notas críticas”. In L. R. dos Santos (coord.). Kant: Posteridade e Atualidade (291-301). Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

    Autor: Viriato Soromenho-Marques

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