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  • Laicidade [Dicionário Global]

    Laicidade [Dicionário Global]

    O uso do termo “laicidade”, derivado do grego laós, “povo”, transporta uma densidade semântica que desautoriza interpretações frequentemente simplistas. Registemos três dessas leituras equivocadas, que consistem em: a) reduzir a aplicação do princípio da laicidade a matérias de religião; b) ver na separação das Igrejas e do Estado a concretização plena da ideia de laicidade; c) entender a privatização da religião como o seu confinamento à interioridade da vida pessoal e familiar. No primeiro caso, esquece-se que ao resolver por via da laicidade a gestão política da questão religiosa não se elimina, antes se fortalece, o foco de tensão que é a prática da liberdade de consciência. Daqui decorre que com mais rigor se deva afirmar que “a laicidade é o regime que assegura a liberdade pública de consciência para todos e cada um” (POULAT, 2006, 64). Ela é garantia dos cidadãos no exercício da liberdade de consciência em geral, e não só da liberdade religiosa ou da liberdade de culto. Quanto ao segundo caso, se é verdade que se separam duas grandes instituições, o Estado e as Igrejas, às quais se reconhece respetivamente a autonomia temporal e a autonomia espiritual, os sujeitos que as compõem são, ou podem ser, ao mesmo tempo, cidadãos e crentes. Enquanto seguidores ou simpatizantes de um credo religioso, os crentes, em nome da liberdade de associação, tendem a organizar-se em instituições intermédias de fiéis igualmente reguladas pelo princípio da laicidade. A nenhum indivíduo ou grupo que professa uma ideologia ou orientação de vida determinada é permitido impô-la a outro indivíduo ou grupo. Como já se disse acima, o princípio da laicidade aplica-se ao exercício da liberdade de consciência, seja qual for o domínio em questão, religioso ou outro. Em terceiro lugar, devemos notar que, sendo verdade que a laicidade privatiza a esfera do religioso, não a expulsa para fora da dimensão social. Como lembra Barbier, “A religião escapa ao domínio público do Estado, mas… pode existir e agir livremente na sociedade” (apud HAARSCHER, 1998, 63). Na verdade, a esfera privada remete para o domínio da sociedade civil.

    A laicidade pode ser vista a partir de duas perspetivas. Do lado do Estado, significa respeito e garantia da liberdade de consciência, com total ausência de discriminação com base em crenças e orientações de vida. Será laico o Estado que não privilegia nenhuma confissão religiosa ou conceção de vida boa assumida pelo seu povo, podendo o poder político regular o relacionamento com as confissões através da Lei da Liberdade Religiosa. Será ainda, em certa medida, o árbitro que não tolera que a conceção de vida de indivíduos ou organizações seja imposta a outros indivíduos ou grupos. Vista do lado dos cidadãos, a laicidade significa o reconhecimento e defesa do direito de eles desfrutarem de plena liberdade para aderir ou não a uma confissão ou orientação de vida, e para assegurarem uma atitude de vigilância crítica quanto à prática da laicidade pelo Estado. Essa vigilância denuncia tanto a imposição totalitária do ateísmo de Estado, como aconteceu na União Soviética, como a ideologia da tecnociência viabilizada através de meios particularmente subtis pela cultura contemporânea. Nos casos considerados, quando exista apoio do Estado, há desprezo pela liberdade de consciência e violação do princípio da laicidade.

    Embora o processo de secularização que foi coroado pelo estabelecimento da laicidade nas sociedades europeias contemporâneas faça parte da modernidade, as suas raízes vêm de muito longe. Em carta datada de 494 ao imperador Anastácio, o Papa Gelásio I (492-496) formulou com firmeza a doutrina sobre a existência de dois poderes “com esferas de atividade próprias e dignidades distintas” que inspirou o relacionamento político dos detentores do poder temporal e do poder espiritual ao longo da Idade Média. Podemos ver nessa doutrina o primeiro esboço de formulação do princípio da laicidade. Aí encontramos, sem dúvida, a enunciação da autonomia, tanto da Igreja como do Estado. Todavia, a moldura em que a fórmula se enquadra difere substancialmente do enquadramento atual da laicidade. Os dois poderes a que o Papa Gelásio I se refere têm origem em Deus e existe entre eles uma hierarquia em que o poder espiritual da Igreja prevalece sobre o poder temporal de imperadores e reis. Ora, como é sabido, foi em rutura com as teses da origem divina do poder e da hegemonia da autoridade eclesiástica sobre o poder temporal que se consolidou na modernidade a autonomia ínsita na conceção contemporânea de laicidade.

    Vencendo resistências várias, a laicidade só lentamente se impôs a partir do fim do Antigo Regime. Os credos religiosos tradicionais ofereceram-lhe a mais encarniçada oposição. E os mesmos promotores da laicidade por vezes a distorceram, ao instaurarem formas novas de sacralização da vida social e política. Foi assim que “a Revolução Francesa tentou sacralizar a nação; o amor da pátria era chamado a desempenhar o papel antes atribuído ao amor de Deus. Os regimes totalitários por sua vez quiseram sacralizar os substitutos terrestres do divino, tais como o povo, o partido ou a classe operária” (TODOROV, 2006, 72). Nas próprias sociedades laicas subsiste a dimensão de sagrado, ainda que muito diferente das conceções religiosas vindas de longo passado com seus dogmas e ritos. Verifica-se, porém, que o principal sagrado está agora impresso nos direitos humanos. Foi por essa via que a experiência francesa da laicidade originou, ao lado dos cultos tradicionais do catolicismo, protestantismo e judaísmo, uma espécie de “quarto monoteísmo”, isto é, a religião civil, com as suas tábuas da lei, a Declaração dos Direitos do Homem e os mandamentos da moral laica. À semelhança dos antigos cultos, postos periodicamente em causa, tanto por dissidências internas como por ataques movidos a partir do exterior, a laicidade padece a erosão dos movimentos sociais e das transformações das mentalidades induzidas pelos contextos civilizacionais. A conflitualidade acompanha historicamente a institucionalização política dos princípios e regras que regem a prática da laicidade, tanto mais que ela não é uma conceção estática, intemporal e absoluta. É um ideal dinâmico, aberto a tensões e mudanças normais nas sociedades em que vigora o sistema democrático. Assim se explica a existência de diferentes graus de realização histórica da laicidade, desde o mais geral, que assenta no reconhecimento pelo Estado da liberdade religiosa, até ao mais radical, agressivo e já no limite da democracia, que visa a erradicação da própria religião. Exemplo dessas tensões e desafios é a situação recente que perturbou fortemente o regime laico da França, país tradicionalmente marcado por essa tradição militante.

    O valor universal da ideia de laicidade encontra-se plasmado em realizações políticas muito diferentes de Estado para Estado. Não só a objetivação das suas práticas se faz segundo graus diversos de radicalidade, como se trata de um processo muito dinâmico em que se refletem a evolução das mentalidades e as transformações culturais. Cingindo-nos ao continente europeu, caracterizemos, ainda que muito sumariamente, a situação da laicidade em alguns países, na linha da informação fornecida por Guy Haarscher.

    Em França, a laicidade converteu-se em marca distintiva da instituição política, sobretudo a partir da 3.ª República. As origens longínquas dessa marca remontam à luta de Filipe, o Belo, contra as ingerências do Papado nos assuntos do reino, luta matricial do galicanismo. Este vai alcançar a forma revolucionária e extrema em 1790, com a Constituição Civil do Clero. Após a assinatura da Concordata entre a França napoleónica e o Vaticano, em 1801, passou a vigorar até 1905 o regime concordatário que conferia à Igreja Católica posição institucional dominante, coexistindo com a liberdade de consciência e a igualdade formal das confissões religiosas reconhecidas. Foi no combate a esse predomínio privilegiado do catolicismo no Estado que movimentos ideológicos como o livre pensamento, o anticlericalismo, o positivismo e o cientismo intensificaram o processo de laicização. O momento de mais alta tensão será atingido com a Lei de Separação de dezembro de 1905. Ao acabar com o regime concordatário em que a religião ainda estava no Estado, a Lei de Separação desatou os laços que prendiam a religião à soberania do Estado e foi retirado às Igrejas o estatuto público. Continuavam garantidas, no entanto, a liberdade de consciência e a liberdade de culto em que a organização dos cultos era atribuída a associações cultuais de âmbito comunal. A enérgica oposição às cultuais por parte das autoridades eclesiásticas levou, após a 1.ª Grande Guerra, ao fim da conflitualidade, com a criação de associações diocesanas dependentes da autoridade episcopal. Pela Constituição de 1958, a França assumia-se como República laica, neutra em relação às confissões religiosas, que são respeitadas e tratadas como entidades privadas. Mas não podemos esquecer que as condições concretas de passagem à prática da ideia de laicidade submetem-na ao inevitável conflito de interpretações. É por isso que um certo retorno das crenças religiosas ao mundo da vida tem levado recentemente a que se fale em França de uma “nova laicidade” em risco de cedências ao peso social das religiões. Esta laicidade nova ou aberta pretende mitigar a agressividade da laicidade de combate bem personificada pela 3.ª República.

    Ao ser resolvido, pelos acordos de Latrão de 1929, o contencioso oitocentista entre a Itália e o Vaticano, o catolicismo foi reconhecido como religião do Estado italiano. Pela nova Concordata de 1984, esse regime foi alterado e, na Itália, deixou de vigorar o princípio do catolicismo como religião de Estado. A Espanha, que na Constituição de 1912 estabelecia a Igreja Católica como única religião da nação, sem ser permitido o exercício de outro culto, viu a República rejeitar essa doutrina e, sobretudo, mover feroz perseguição à Igreja. Já no Estado franquista, o catolicismo recuperou o poder perdido. A Constituição de 1978, após a queda do franquismo, estabeleceu a separação da Igreja e do Estado. No entanto, a Igreja Católica continua a ser marca importante da identidade espanhola no quadro da liberdade religiosa. A Bélgica, que na Constituição de 1831 garantia a liberdade de consciência, viveu a laicidade e, por compromisso das forças partidárias de liberais e socialistas, foram reconhecidos o catolicismo, largamente maioritário, e outras confissões. A questão escolar em torno da escola pública, da escola livre, e do ensino religioso, originou, desde meados do século XIX, conflitos graves entre a Igreja e os políticos liberais e socialistas defensores da escola laica. Só o pacto escolar de 1958 trouxe finalmente alguma tranquilidade, ao abrir caminho ao pluralismo. Desse pluralismo faz parte a laicidade integrada como elemento ideológico da sociedade belga, mas não como seu fundamento ideológico. A Irlanda, Estado livre e religiosamente neutro desde 1921, contou com o apoio da confissão católica para fortalecer a sua autonomia contra a Grã-Bretanha protestante. Ainda que a Igreja Católica não tenha sido constituída Igreja de Estado, a nação irlandesa apresenta carácter identitário católico fortemente enraizado. A influência do catolicismo continua a ser importante em matéria de educação e de costumes. Na Grécia, a sociedade encontra-se profundamente marcada pelo peso institucional do cristianismo ortodoxo. Historicamente, a Igreja Ortodoxa foi o bastião que garantiu a defesa da alma helénica contra a vizinhança, a leste, do poder otomano e do islamismo, e a oeste, do catolicismo. No plano constitucional, a Grécia contemporânea confere à Igreja ortodoxa estatuto de religião dominante do Estado grego. Embora a liberdade religiosa seja reconhecida, há resistência à implantação de outras confissões e ao proselitismo religioso. O grau de laicidade neste país ocupa o lugar mais baixo entre os Estados da União Europeia.

    Nos países de tradição protestante, as Igrejas mantiveram-se mais próximas e articuladas oficialmente com o poder político e, ao mesmo tempo, abertas à progressiva secularização. Assim sucede em Inglaterra, onde a Igreja anglicana se encontra estabelecida, pertencendo ao soberano a chefia da Igreja e a proteção da fé. Na Dinamarca, a Igreja luterana possui estatuto de Igreja de Estado, do qual depende através do ministério dos assuntos eclesiásticos. Todavia, além da liberdade religiosa estar garantida, é respeitado o pluralismo dentro da Igreja. Foi o calvinismo que cimentou a identidade nacional dos Países Baixos na luta pela independência e libertação da soberania espanhola. A permanência do espírito humanista e a linhagem dos que Kolakowski chama “cristãos sem Igreja” criou uma atmosfera de pluralismo propícia à separação das Igrejas do Estado. Os progressos da secularização da sociedade tornaram a Holanda um dos países multiconfessionais de laicidade exemplar. A liberdade religiosa, acompanhada da neutralidade do Estado, só foi alcançada pela Alemanha a partir da Constituição de Weimar, após a Grande Guerra de 1914-1918. Passadas as vicissitudes históricas da Segunda Grande Guerra, a divisão em República Federal e República Democrática, e a reunificação em 1991, as Igrejas são tratadas como “corporações de direito público” e apoiadas financeiramente pelo Estado. Participam ativamente como elementos da vida pública alemã.

    Em Portugal, a luta pela secularização e laicidade da sociedade e do Estado foi desencadeada sobretudo pelo movimento republicano, desde o último terço do século XIX. Esse objetivo ficou juridicamente consagrado com a Lei da Separação da Igreja do Estado e com a Constituição Portuguesa de 1911. A religião católica, apostólica, romana deixava então de ser a religião da nação que quer a Constituição de 1822, quer a Carta Constitucional de 1826 haviam reconhecido. É igualmente o princípio da separação do Estado das Igrejas e de outras comunidades religiosas que a Constituição de 1976, no n.º 4 do seu art. 41.º, estabelece. Para definir as regras a que deve obedecer a aplicação efetiva do princípio constitucional foi elaborada a Lei da Liberdade Religiosa (lei 16/2001, de 22 de junho), que no seu art. 4.º determina que “o Estado não adota qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas” e que “nos atos oficiais e no protocolo do Estado será respeitado o princípio da não confessionalidade”. A existência desta lei veio regular, na prática, em muitos aspetos pouco óbvios, o relacionamento do Estado com as confissões religiosas, mantendo com a Igreja Católica a vigência das bases estabelecidas com a Santa Sé pela Concordata de 1940. As clarificações assim obtidas não impedem o aparecimento de tensões e resistências suscitadas por sectores da sociedade civil sensíveis a leituras mais exigentes sobre o alcance da laicidade. Manifestação de atenção vigilante e crítica é a Associação República e Laicidade, com sede em Lisboa, constituída por escritura pública datada de 27 de janeiro de 2003. De acordo com os respetivos estatutos, reivindica, em nome de uma orientação humanista, laica e tolerante, a formação de cidadãos que sejam livres, emancipados de qualquer tutela, responsáveis e ativos na participação da vida democrática. Subscreve uma ideia de laicidade em que o espaço público não esteja dominado por grupos doutrinados por conceções religiosas, ideológicas, filosóficas, raciais, estéticas, económicas ou outras. A Associação pratica uma atitude de vigilância e crítica sobre a aplicação do princípio da laicidade na vida da sociedade portuguesa. Considera que esse princípio é subvertido em vários planos, nomeadamente pela manutenção da Concordata, pela existência de uma Lei da Liberdade Religiosa e pela persistência de hábitos sociais vindos da multissecular tradição clerical.

    O fenómeno da secularização, que permeia as sociedades europeias desde o século XVIII, expandiu-se em virtude da crescente confiança do homem nas suas capacidades científicas e técnicas. Como consequência, assistiu-se ao desatar dos laços com as instituições religiosas e ao inevitável apagamento da presença da religião no espaço público. Não quer isto dizer que a laicidade se deva identificar com o processo social da secularização. Ela é antes o culminar do processo secularizador enquanto dinamizado pelo princípio humanista em sua forma mais radical. No cerne desse princípio não está só o intuito de tornar o homem mais humano, mas também, sempre que levado ao extremo em nome da autossuficiência da racionalidade, se visa que o humano seja desligado em absoluto do Transcendente Divino.

    Bibliografia

    Impressa

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    Digital

    República e Laicidade, http://www.laicidade.org/associacao (acedido a 04.03.2024).

    Autor: Luís Machado de Abreu

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