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    Legislação Josefina-Pombalina

    Fonte iconográfica: Jornal “O Combate”, Lisboa, 8/5/1882, p. 1.

     

    Durante o reinado de D. José e o governo do marquês de Pombal (1750-1777) são vários os sinais da influência do direito natural e das Luzes na legislação (SILVA, 1828) sobre a dignidade humana, mais e melhor justiça e promoção da igualdade política e social, num processo de transformação dos vassalos, agregados a corpos sociais (paradigma corporativo), para indivíduos com prerrogativas e direitos próprios (paradigma individualista), isto é, menos privilégios, mais personalidade jurídica e coesão social (HESPANHA, 2019).

    Teremos oportunidade, neste verbete, de tratar, a propósito, da seleção das seguintes questões: a) o arranque para a abolição da escravatura; b) o fim do estigma entre cristãos novos e cristãos velhos; c) a extinção do “puritanismo” no seio da aristocracia; d) a desobrigação dos inquéritos sobre a limpeza de sangue; e) o principio do fim da “patrimonialização” dos ofícios e o início da remuneração por ordenado, bem como a prática dos concursos e avaliações para apurar, em condições de igualdade, as competências e o mérito; f) as leis testamentárias para defender o direito dos herdeiros legítimos (conceito agraciado pelo pombalismo) face ao uso indevido da última vontade; g) a reforma do Direito, nas fontes e nas interpretações, para acabar com o obscurantismo, a chicana e os abusos nos e dos tribunais; h) a educação “primária” como instrumento para apurar o saber ler, escrever e contar, e diminuir, desta forma, o desnivelamento social entre iletrados e letrados; i) consagrar o direito às mulheres para renunciarem à clausura imposta pelos pais e pela família.

    É preciso frisar, contudo, que esta dinâmica política e social foi acompanhada, em sentido contrário, por uma forte violência política, perseguição social, censura de ideias e abusos jurisdicionais, como a perseguição e extorsão de algumas casas nobres (Junta da Inconfidência), a repressão da liberdade de expressão (Real Mesa Censória), a perseguição aos inimigos do regalismo, como foi o caso da prisão do bispo de Coimbra e dos cónegos regrantes, a expulsão dos Jesuítas por controlarem áreas de comércio, educação e serviços religiosos, a aniquilação dos desafios à segurança e aos bons costumes (Intendente Geral da Polícia), a vigilância da mobilidade de pessoas e bens (controlo de passaportes e fronteiras) e a criação de práticas políticas de fidelidade e dominação (nomeações, demissões, exílios e degredos). Quer isto dizer, portanto, que a legislação josefina-pombalina é atravessada por contradições, antagonismos e até alguns paradoxos que são, aliás, próprios da transição do Antigo Regime para o Liberalismo, como, aliás, continuará na fase mariano-joanina (FRANCO, 2004; MONTEIRO, 2006).

    A autoria dos diplomas é uma questão relevante para a identificação dogmática e política dos seus responsáveis. Sabemos, com toda a certeza, que a maioria dos diplomas foram discutidos, preparados e apresentados pelo Tribunal do Desembargo do Paço depois de este tribunal ter sido manipulado politicamente, através da estratégia de instrumentalização dos votos, por causa da nomeação de novos desembargadores de feição pombalina, aumentando a mesa plenária, e da substituição de alguns desembargadores tradicionalistas, entretanto falecidos, por magistrados com provas dadas como reformistas na Casa da Suplicação (SUBTIL, 1995).

    Se a complexidade jurídica de alguns diplomas exigia, de facto, o contributo de melhores magistrados, o que sabemos, também, é que foi através da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, titulada pelo marquês, que foram preparados, ou para o despacho régio, ou para serem partilhados por outros tribunais (Inquisição, Mesa da Consciência e Ordens, Conselho da Fazenda, Procurador da Coroa), incluindo o ressuscitado Conselho de Estado presidido pelo próprio monarca.

    Esta legislação foi, por conseguinte, josefina, pombalina e desembargatória e, apesar do seu radicalismo ser suscetível ao poder “absoluto”, envolveu, porém, várias instituições, atores e o próprio monarca, numa estratégia que permitiu ao marquês, nas suas Apologias, defender-se da acusação do uso discricionário do poder como corria na onda de libelos contra si (SUBTIL, 2007). Se não conhecemos, em detalhe, a fórmula deste envolvimento na produção de legislação, a coerência do pacote legislativo, ainda por cima repartido por alturas diferentes do reinado, exigiu, sem dúvida, uma direção política de que o marquês se terá encarregado com a cobertura régia.

    As áreas que iremos elencar para evidenciar este reformismo cobrem diversos campos sociais, políticos, jurídicos e culturais envoltos nas ideias e nos sentimentos dos filósofos das Luzes que alimentaram, em diversas versões caleidoscópicas, a ideia de que a defesa da dignidade do ser humano deve ser a trave-mestra de ação política (ARAÚJO, 2003). É impossível, por isso, ignorar a inovação e a ousadia desta legislação josefina-pombalina, marcada pela influência dos “estrangeirados” e pelos seguidores compulsivos das Luzes, uma vanguarda intelectual que apoiou a consciencialização e sistematização dos direitos humanos.

    Comecemos, então, pela escravatura, cuja legislação josefina-pombalina irá ressaltar, precisamente, os direitos pela dignidade e liberdade através de dois alvarás que apontavam para a sua abolição (FONSECA, 2014).

    O alvará de 19 de setembro de 1761, sem mais delongas, permitiu a alforria dos escravos que entrassem no Reino, tornando-se livres e com direitos de nacionalidade. Se é referida a quantidade “extraordinária de escravos” que se transportavam do império para o Reino, em particular, para Lisboa, e que faziam falta para o trabalho agrícola e de mineração nos domínios ultramarinos, não se concluiu, porém, que esta abolição fosse para favorecer a importação de escravos porque vinham “ocupar os lugares dos moços de servir, que ficando sem cómodo, se entregam à ociosidade e se precipitam nos vícios que dela são naturais consequências” (n.b. as citações ao longo do texto são retiradas da legislação referida).

    Um segundo alvará, de 16 de janeiro de 1773, criticava o não cumprimento da abolição decretada e punha fim, de uma forma gradual, à escravidão assente na progenitura e no nascimento, fazendo de Portugal o primeiro país abolicionista ocidental.

    No texto deste diploma pode ler-se que são “grandes os inconvenientes, que a estes Reinos se seguiam de se perpetuar neles a Escravidão” por “Pessoas tão faltas de sentimentos de Humanidade, e de Religião” para perpetuarem “um abominável comércio de pecados, e de usurpações das liberdades” com o argumento de que “os ventres das Mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito Civil”, ou seja, uma proclamação insofismável a favor da mudança do estatuto de escravo. Uma mudança reforçada com a ideia de que estes vassalos eram capazes para os ofícios públicos, para o comércio, agricultura e para os contratos de toda a espécie. O processo abolicionista seguia, portanto, a seguinte ordem: a) os nascidos de mães e avós escravos ficavam no cativeiro durante uma vida; b) os que tivessem escravidão vinda dos bisavós ficavam livres; c) os que nascessem no futuro seriam livres, independentemente do cativeiro dos seus progenitores, e “hábeis para todos os Ofícios, honras e dignidades”, sem o estigma de Libertos, epíteto considerado intolerável e indigno.

    É certo que este movimento não teve continuidade, mas quando o marquês de Sá da Bandeira (1835) retomou a política abolicionista, ligou a sua legislação ao movimento reformador pombalino, o que evidencia que os liberais consideraram como inovadora e precursora do “constitucionalismo”, a reforma sobre os direitos humanos encetada pelo pombalismo.

    Abordemos, doravante, na mesma linha da defesa da dignidade humana, o nivelamento da taxonomia no interior da aristocracia por causa da desigualdade fundamentada na pureza de sangue. A legislação josefina-pombalina interveio para corrigir a distinção social fundada na ideia de que haveria uma nobreza mais pura do que outra, com consequências na reprodução homogâmica das mais consagradas. A questão do “puritanismo” foi ancorada no “compromisso” da confraria de Santa Engrácia (1663) que semeou, na nobreza, a divisão entre “puritanos” e “infetos” e instituiu o chamado grupo das doze casas nobres sem suspeita de “raça e ruim sangue”. A evocação da mácula judia fora da seita “puritana” e o regramento no mercado conjugal alimentaram uma segregação nobiliárquica com base na “pureza de sangue” (FERNANDEZ, 2017).

    Este cordão sanitário produziria desigualdades no acesso aos altos cargos de nomeação régia, justamente pela capacidade de influência e pressão política. Para acabar com esta situação, o Alvará de 5 de outubro de 1768 proibiria o “puritanismo nobiliárquico” radicado na pureza de sangue e procedeu ao alinhamento igualitário das casas nobres perante o monarca. Por causa da delicadeza desta situação devido ao protagonismo dos visados, a disposição legal foi cuidadosamente preparada e os procedimentos guardados em silêncio “oculto nos lugares mais recônditos dos Arquivos do Conselho de Estado, e da Secretaria de Estado”.

    A aprovação foi, por consequência, decidida numa reunião especial do Conselho de Estado (3 de outubro de 1768), presidido pelo monarca, que aprovaria, por unanimidade, o assento redigido pelo desembargador José de Seabra da Silva decidido numa junta de ministros (9 de agosto) que apreciou os pareceres do Desembargo do Paço, do Regedor e do Chanceler da Casa da Suplicação, e do Procurador da Coroa.

    Embora este nivelamento social e político ocorra no seio da aristocracia, não é menos certo que exprime e traduz a influência iluminista na defesa dos princípios da justiça, do ordenamento dos tribunais, do dever de cumprimento da legislação por todos e, evidentemente, promove a dignidade social que cabe à nobreza como grupo e ao nobre como particular. Mais do que acabar com a homogamia e extinguir a seita aristocrática, a iniciativa legislativa estabeleceu os termos “constitucionais” do contrato social entre o rei e a aristocracia.

    Aconteceria o mesmo com a questão dos cristãos velhos e cristãos novos, cuja diferença separava duas comunidades religiosas com as mesmas crenças, mas que a fidelidade dogmática decorria de uma vinculação histórica ligada, também, à pureza de sangue, produzindo efeitos na admissão a ofícios, na promoção das carreiras, no exercício de certas profissões, na obtenção de mercês e privilégios, alimentando, deste modo, uma desigualdade endémica e perversa que quebrava a sociabilidade de “polícia” defendida pelo reformismo pombalino (BETHENCOURT, 2000).

    O alvará de 25 de maio de 1773, que acabou com a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos (“estragos que tinha amontoado nestes reinos a esquisita e inaudita distinção”), comunga das características formais e retóricas dos diplomas pombalinos sobre matérias delicadas e sensíveis, que alteraram profundamente o status quo: a) alonga-se em argumentos históricos e nos exemplos dos reinados de D. Manuel e D. João III, os monarcas inspiradores das reformas josefinas-pombalinas; b) evoca os princípios da dignidade e da honra, associados ao direito natural, para contrariar as divisões artificiais na sociedade; c) demonstra que as decisões da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino não foram discricionárias, mas partilhadas por outros órgãos da administração régia, neste caso com o tribunal do Desembargo do Paço (consulta de 16 de fevereiro), a Mesa da Consciência e Ordens, o Conselho Geral do Santo Ofício e do Conselho de Estado presidido pelo próprio monarca (24 de maio).

    A suspensão da colação das honras e dignidades aos recém-convertidos à fé é vista como uma manifestação de “inabilidade” infame e opressiva por os excluírem não só dos empregos da justiça e da fazenda, como de “todas as Dignidades, e Honras Eclesiásticas, Políticas e Civis”. O diploma régio pretendia, por isso, remover a injúria, a “opressão, e violência; e tudo o que os pode dividir, e perturbar neles a uniformidade de sentimentos” e a repor a reputação, a honra e a “pureza” de todos os vassalos, para que não haja mais nenhuns interrogatórios se não para prova de vida e costumes. Termina com um apelo à igualdade e à fraternidade dos povos, mandando anular as disposições “maquinadas, e introduzidas para separar, desunir, e armar os Estados, e Vassalos destes Reinos, uns contra os outros em sucessivas, e perpétuas discórdias, com o pernicioso fomento da sobredita distinção de Cristãos-Novos, e Cristãos-Velhos”.

    Na mesma linha reformista de anulação dos privilégios de nascimento e dos abusos perniciosos ao bem comum que resultam destas divisões, podemos perceber o aligeiramento que se começa a verificar nos processos de candidatura a lugares régios (magistratura, lideranças militares, cargos eclesiásticos, governos ultramarinos, ofícios de fazenda, cargos na Casa Real) que requeriam os chamados inquéritos de limpeza de sangue e as inquirições de genere, como as devassas e os processos de habilitação para confirmação da vida “mecânica”, ou do estilo de vida “enobrecida”. Um movimento reformista que adota, sem rebuço, a tendência para eliminar muitas distinções de privilégio, os modelos de segregação fundados na pureza de sangue e os lutuosos autos de indagação e testemunhos para obtenção de honras, privilégios, máculas ou ferretes (OLIVAL, 2004).

    Uma outra novidade reformista tem a ver com a justiça, a moldura das leis e as suas interpretações. O acesso à justiça e ao cumprimento das leis sofreu uma alteração “constitucional” profunda com a Lei da Boa Razão (18 de agosto de 1769). Em primeiro lugar, alterou as fontes do Direito com o protagonismo dado à legislação pátria e a consequente desvalorização do ius commune e do direito canónico (SUBTIL, 2021; HESPANHA, 1978). Depois, descartou as interpretações das glosas e comentários dos doutores (opinio communis doctorum) sobre casos omissos ou de difícil interpretação e passou essa jurisprudência para as deliberações tomadas na mesa grande da Casa da Suplicação e simplificou o ato processual com evidentes vantagens para os que acediam aos tribunais, fugindo da discricionariedade, da chicana e da exploração económica dos advogados e controlando as artimanhas e as manhas dos procuradores das partes.

    Com a lei da Boa Razão pretendeu-se, desta forma, atingir um conjunto de objetivos que melhorassem a aplicação da justiça e o acesso à mesma, o fim do obscurantismo criado pela ignorância, melhorar a aplicação e execução das penas e diminuir a desigualdade social diante dos tribunais. Esta reforma estruturante foi, por isso, acompanhada e apoiada pelas reformas dos estudos maiores da Universidade de Coimbra (1772) para formar outro perfil de magistrado e da rede de estudos menores (1759), supervisionada pelo Diretor Geral dos Estudos e, mais tarde, pela Real Mesa Censória (1771), para “democratizar” a leitura e o conhecimento sobre o processo judicial.

    Vejamos, agora, as iniciativas para valorizar o trabalho, garantir as condições que o promovam, incentivar o mérito e a avaliação de desempenho em contraciclo com a cultura do privilégio, a desigualdade entre mecânicos e nobres, e a fidelidade como critério de preservação do ofício. E, sobretudo, a grande mudança que consistiu na “despatrimonialização” dos ofícios que, por força dos rendimentos próprios, caucionava uma autonomia resistente à disponibilidade e amovibilidade. No desenvolvimento deste processo foi implementada a prática dos ordenados, fixados por tabelas e graduados por categorias, remunerados periodicamente de forma impessoal e burocrática (SUBTIL, 1998).

    À medida que o modelo de “patrimonialização” era posto em causa, alteravam-se os critérios do desempenho profissional, pelo que a legislação pombalina, muito influenciada pelo paradigma mercantilista, realça, em especial, quatro novos direitos: a) o mérito individual contra os privilégios das linhagens familiares; b) a adoção da racionalidade como regulador no recrutamento e progressão das carreiras contra o costume e a vantagem da proeminência social; c) a valorização do trabalho como motor do desenvolvimento e bem-estar social; d) a defesa do interesse público dos ofícios em detrimento do interesse particular.

    Cairia, para o futuro, o costume de, após a morte do proprietário, os ofícios serem transmissíveis aos filhos e parentes, para passarem a ser providos em pessoas aptas e capazes, devidamente avaliadas. Os “mecânicos”, por exemplo, tidos como “os modos, os métodos, ou a arte de trabalhar as primeiras matérias”, ganharam independência profissional porque o vínculo profissional corporativo das “mestranças”, que obrigava o trabalhador a ficar debaixo de um mestre que lhe impunha o método e a remuneração, deixou de ter sentido.

    Deste modo, trabalhar livremente, por conta e risco, sem constrangimento ou dependência, aumentaria os oficiais e a concorrência, estimulando a igualdade de oportunidades, a qualidade e o preço do serviço. Mas, considerando a importância dos “braços e as mãos de todos os estados”, a legislação previa a formação profissional. O alvará de 22 de dezembro de 1761 é muito claro ao afirmar que não se deve procurar ofícios para as pessoas, mas pessoas para os ofícios que não sejam “pessoas abjetas, e impróprias”.

    A doutrina sobre esta matéria começou a ser desenhada com o alvará de 3 de agosto de 1753, quando se determinou que os ofícios vagos só podiam ser ocupados por quem tivesse “merecimento, arte, indústria e experiência” e denotasse ser hábil e perito depois de avaliado em concurso. E continuou com a demorada narrativa da lei de 23 de novembro de 1770, que contém os argumentos de facto e de direito que contrariam a passagem de quaisquer ofícios de pais para filhos, porque os ofícios são, por natureza própria, para serem exercidos por pessoas hábeis para a “utilidade pública” e não para satisfazerem privilégios que alimentam a desigualdade social e não promovem o esforço, o trabalho, a idoneidade e a qualidade.

    O diploma depois de se esforçar por dar uma panorâmica histórica, invocando Cortes, reinados e legislação das Ordenações e extravagante, conclui que a invenção deste direito de transmissibilidade repousa nos Jesuítas e nas consultas fantasiosas dos doutores que introduziram “maliciosa, e abusivamente aqueles inventados costumes”. E, em contrapartida, faz emergir o princípio de que o ofício “nada mais tem, que uma comissão simples, e precária” e “totalmente dependente do seu bom, ou não serviço, ou para se conservar, ou ser dela expulso” (SUBTIL, 1995).

    Outra área cuja reforma pombalina promoveu a igualdade e justiça, no âmbito dos direitos humanos e da razão natural, da ordem familiar e princípios do bem comum, foi a alteração no direito de testar e a defesa dos herdeiros legítimos, incluindo os bens de raiz sujeitos às regras da vinculação. Esta orientação pela adoção da equidade e defesa da família foi ancorada no direito natural, frequentemente invocado porque “não permite que alguém se locuplete com grave jactura de terceiro” (Lei de 9 de setembro de 1769).

    As leis testamentárias josefinas-pombalinas transformaram as relações familiares entre pais e filhos, anularam o domínio do filho mais velho sobre os restantes irmãos e diminuíram a capacidade discricionária do pater familiae, por lhe ficar cerceada a capacidade de poder dispor dos seus bens de forma arbitrária, ou para distribuir a sua herança ou os bens adquiridos. O objetivo destas reformas foi, portanto, limitar a vontade dos testadores ao bem comum, segurar condições de equidade e zelar pela “utilidade pública da conservação dos vassalos”.

    O primeiro diploma sobre a matéria, a lei de 25 de junho de 1766, discorre sobre os abusos de última vontade quando os testadores, insinuados artificialmente e enfraquecidos pela doença, se iludem pelas aparências de convenções e contratos que os envolvem em fraudulentas e ímpias negociações. Por mero oportunismo, os testadores esquecem os deveres e os direitos decorrentes do “afeto entre as pessoas conjuntas pelo sangue para se prestarem recíprocos socorros” e, em consequência, criam situações que conflituam, enfraquecem a coesão social, aumentam as desigualdades e não promovem os direitos naturais.

    Por causa destas heranças odiosas, a nova legislação proibia os testamentos de seculares, regulares ou eclesiásticos contra os herdeiros legítimos contados até ao quarto grau e, no caso de os bens não terem sido testados, passariam para os herdeiros legítimos ou para o fisco da coroa. Os tabeliães e escrivães que desobedecessem a estas orientações arriscariam penas de prisão e a perda do ofício. O mesmo aconteceria se as heranças fossem deixadas às comunidades dos diretores, confessores ou a letrados para manipularem os testadores com doenças “graves ou agudas” através de codicilos, escritos ou nuncupativos (SUBTIL, 1995).

    Mais tarde, a extensa lei de 9 de setembro de 1769 continua a tradição legislativa pombalina de desenvolver, em detalhe, os argumentos que justificam a introdução das inovações reformistas mais radicais. Neste caso sobre os direitos de sangue à herança contra os privilégios e os abusos, defendendo a “sucessão ab intestato, pela qual se devolvem os bens aos parentes propínquos, agnados, ou cognados, conforme a razão natural [sublinhado nosso]”.

    O que se procura é, naturalmente, evitar a liberdade ilimitada de testar inventada por juristas especulativos que provocavam “insultos da malignidade, e da cobiça, e contra as muitas falsidades, litígios, dissensões, e perturbações, que resultam da livre fação dos Testamentos”. Defende-se, claramente, a consagração da sucessão natural, a começar pelos próprios filhos testamentados. Ninguém, de qualquer estado, tendo parentes até ao quarto grau, podia dispor de todos os bens que herdou sem consentimento dos parentes e, se não tivesse filhos, só podia dispor dos bens adquiridos e doados aos parentes mais gratos. Porém, no caso de ter filhos, podia dispor da terça parte dos bens herdados em benefício de algum filho e, dos bens adquiridos, podia dispor da mesma terça a favor de pessoas estranhas.

    Só quando o testador não tivesse parentes até ao quarto grau é que podia dispor de metade dos bens herdados e de todos os adquiridos como bem lhe parecesse. Estas disposições também abrangiam as causas pias e bens de alma (encapelados) que ficavam limitados a um terço da terça, exceto os legados para as misericórdias e hospitais destinados aos dotes de órfãos, cura de enfermos, sustentação de expostos ou escolas e seminários de educação.

    Um dos aspectos mais radicais desta legislação teve que ver com os regulares e eclesiásticos que deixaram de poder suceder nos morgados ficarem incapazes para possuir quaisquer bens e serem excluídos como herdeiros, com o argumento de que não faziam parte da sociedade, dado que ao abraçarem a vida religiosa terão morrido para o mundo. Uma proibição que se estendia à instituição de capelas gravadas, em prédios urbanos ou rústicos, com missas e outros encargos pios, que, sem conta peso e medida, “são já tantos os sobreditos encargos de Missas, que ainda que todos os indivíduos existentes nestes Reinos em um e outro sexo fossem clérigos, nem assim poderiam dizer a terça parte das missas”. Sem dúvida uma grande ofensiva contra os sectores da Igreja que, ao arrepio da tendência igualitária da legislação josefina-pombalina, persistiam em defender a continuação de regalias e privilégios.

    Mas, os efeitos desta legislação sobre a transmissão de bens com o fito de perseguir a resistência ao nivelamento social, colocaram sérios problemas de execução e desenvolveram o expediente das fraudes, negociações e subterfúgios de “viciosa cobiça” para iludirem e prejudicarem o espírito das leis. Houve, por isso, necessidade de, através de um novo alvará (1 de setembro de 1774), criminalizar e prevenir para garantir os direitos dos herdeiros legítimos. São assim proibidas quaisquer convenções clandestinas, contratos ou pactos propostos aos putativos herdeiros, mesmo feitos com escritura pública e celebrados por advogados e, ao mesmo tempo, elencadas penas para os incumpridores e prevaricadores (degredo, perda de bens, confisco, desnaturalização, multas) e, bem assim, acionados mecanismos disciplinares de vigilância, como o recurso à devassa permanente, com prémios para os denunciantes e castigo para os encobridores, e a proibição, para  maiores de 60 anos, de venderem ou alienarem quaisquer bens em prejuízo dos herdeiros legítimos. Prevendo-se segundos casamentos com filhos do primeiro, ficou instituída a obrigatoriedade de inventário dos bens móveis e semoventes de raiz, tanto para assegurar as legítimas aos filhos, como para impedir a distribuição destes bens pelo segundo matrimónio. No caso de os filhos serem menores, atendendo à gestão e conservação dos bens inventariados, era nomeado um administrador.

    A área da educação foi transversal a toda esta legislação, na medida em que o prosseguimento das políticas para defender, tendencialmente, direitos iguais para todos os vassalos-cidadãos requeriam condições mínimas de conhecimento, como era o caso de saber ler, contar e escrever o que, sendo muito raro, impedia a consciencialização dos mesmos direitos e a capacidade de os invocar e exigir. Há, por este modo, uma clara aposta no desenvolvimento comunitário assente no sistema de educação e cultura, considerados como pilares da qualidade do trabalho e, consequentemente, do aumento da riqueza. Esta aposta para promover competências em muitos mais indivíduos despertou, igualmente, oportunidades de ofícios, autonomia cívica e individual. Esta reforma, já referida, dos estudos menores e dos estudos maiores foi uma das marcas mais emblemáticas da política josefina-pombalina para a criação de um novo ambiente cultural que fosse impulsionador da exigência cívica pela “constitucionalidade”, defesa e cumprimento de direitos.

    Por fim, uma chamada de atenção, mesmo que circunstancial, sobre os direitos de as mulheres disporem da sua vontade para aceitarem o ingresso na vida religiosa. A legislação josefina-pombalina introduziria inovações ousadas, evidenciando o enraizamento numa consciência moral e cívica de vanguarda. Referimo-nos à limitação imposta à clausura, uma vez que as noviças podiam, fora das obediências e obrigações aos pais, passar a dispor da faculdade para requererem experimentar a vida civil, durante um determinado tempo tutelado por uma mulher idónea, fora do mosteiro. A avaliação feita pela própria, quanto às reais motivações da sua vocação e da entrega a clausura, ditaria a continuidade ou o abandono da vida religiosa. Esta legislação surtiu efeitos imediatos porque, entre o ano de 1762 (meia dúzia de anos depois da publicação da bula) e o final do reinado de D. José (1777), ou seja, durante 15 anos, foram suprimidos 28 conventos, uma média de dois conventos por ano (SUBTIL, 2011).

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    Como citar:

    Subtil, J. (2022). “Legislação Josefina-Pombalina”. In J. E. Franco, P. Jerónimo, S. M. Alves-Jesus, T. C. Moreira (coords.). Dicionário Global dos Direitos Humanos. https://dignipediaglobal.pt/dicionario-global/legislacao-josefina-pombalina-2 [ISBN: 978-989-9012-74-5]

     

    Escrito por -

    Doutor e Agregado pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa em História Moderna. Professor Catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa. Foi Presidente do Conselho Científico durante nove anos entre 2010-2022. Exerceu vários cargos públicos com destaque para membro da Comissão de Reforma da Torre do Tombo, Secretário Geral Adjunto do Ministério de Sousa Franco, membro da Direção do INAFOP, Instituto Nacional da Formação de Professores, sendo presidente Bártolo Paiva Campos. É membro integrado do CEDIS, Centro de I&D sobre Direito e Sociedade da Nova School of Law. Tem dezenas de publicações no país e no estrangeiro em livros, capítulos de livros e artigos em revistas. Orientou e orienta teses e dissertações no âmbito da história moderna em diversas universidades. Colabora com vários projetos integrados no Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta, Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes. Tem vários louvores públicos. Orcid - 0000-001-7461-9461

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