Levi, Primo [Dicionário Global]
Levi, Primo [Dicionário Global]
“Considerai se isto é um homem” é um dos versos do poema “Shemà”, do escritor italiano Primo Levi. Levi foi prisioneiro do campo de concentração de Auschwitz e fez dessa experiência um modo de pensar não apenas no que viveu naquele quase um ano limitado pelos arames farpados, mas, sobretudo, nas relações humanas para além do Campo. Fazendo de sua escrita um espaço de reflexão e diálogo, tal verso pode vir a ser lido como uma espécie de chave de leitura que inaugura e abre seu pensamento e sua escrita.
Químico de formação, Levi nasceu em 31 de julho de 1919 na cidade de Turim, na região de Piemonte, na Itália, onde se casou com Lucia Morpurgo, com quem teve dois filhos, Lisa e Renzo. Em meio à linha temporal de sua vida, houve um acontecimento determinante: aos 25 anos, foi preso e deportado para o campo de concentração em Auschwitz – Alemanha, onde permaneceu preso por quase um ano. Testemunha da violência do Campo, ao retornar para sua cidade natal, tornou-se escritor: “Ele conheceu, nas suas consequências, os aspectos mais obscuros, inconfessáveis, desprezíveis do animal homem, mas recorreu à razão, que, se não consegue explicá-los, permite enquadrá-los e distingui-los e ajuda a vencê-los ao menos no plano intelectual” (LEVI, 1988, 7), escreve um de seus principais críticos e estudiosos, Cesare Segre.
Com uma escrita bastante objetiva e clara, traços característicos de sua formação enquanto químico, a literatura primoleviana parte de uma rigorosa e atenta observação dos dias no Campo, que foi sua principal matéria-prima, mas não única. Além disso, como sempre fazia questão de lembrar, seus escritos partem de uma experiência, ou, como prefere o crítico literário Marco Belpoliti, “Levi escritor não é obra das ocasiões, mas ao contrário, as ocasiões são as suas obras” (BELPOLITI, 2015). É como se a sua escrita não fosse somente fruto das experiências que vivenciou, pois, ainda que as tivesse vivido, poderia ter escolhido outro modo de compartilhá-las. No entanto, após a experiência, há a presença de um trabalho escritural, que é feito por ele. Um trabalho cuidadoso com as palavras, com a literatura, que foi seu caminho escolhido.
Assim, quando de seu retorno a Turim, Levi passou a se dividir entre a máquina de escrever e a fábrica de vernizes, Siva, onde trabalhava: “[…] eu vivi por muito tempo em uma curiosa situação de bipartição, de vida alternada: químico nas horas de trabalho e escritor nas horas de não trabalho, à noite e aos domingos” (LEVI, 2018, 458). Assim, após a experiência traumática do Campo, dividiu-se entre as descobertas da linguagem, da qual passou a se aproximar para tentar narrar aquilo que havia passado, e seu trabalho como químico, que o encantava desde jovem.
Publicou seu primeiro livro, É Isto um Homem?, em 1947, pela pequena editora italiana De Silva. Nesta obra escreveu sobre a experiência dos dias como prisioneiro do Lager. No entanto, tal livro só recebeu atenção e reconhecimento da crítica quando reeditado e publicado pela Einaudi, uma das maiores e mais importantes editoras italianas. Foi nessa ocasião, em 1958, que Levi passou a ser reconhecido como escritor, e não apenas uma testemunha da guerra, rótulo que o incomodava.
Se primeiro havia escrito sobre os horrores vivenciados em Auschwitz, agora, pouco tempo depois, se detinha sobre a viagem de retorno para sua cidade natal, publicando A Trégua, em 1963. Após a publicação de suas duas primeiras obras, afirma que “Um germe da escrita tinha entrado em meu sangue” (LEVI, 2016, 171). Pegando gosto pela escrita, seguiu com o ofício literário. Essa continuação, entretanto, foi também um momento de outras percepções, outras reflexões, que o levaram ao seu primeiro livro de contos, agora então uma literatura inventiva, que a priori não partiria de uma experiência real. Com o pseudônimo de Damiano Malabaila, publicou em 1966, pela editora Einaudi, Histórias Naturais. A escolha de um nome diferente do seu para ocupar o espaço da capa do livro, ainda que fosse do conhecimento de todos de que se tratava de Primo Levi, deu-se por receio de um possível mal-entendido, já que era conhecido por sua literatura de testemunho.
Logo após publicou Vício de Forma, em 1971, e em 1975 publicou A Tabela Periódica, obra reconhecida internacionalmente, principalmente nos Estados Unidos, na qual pôde transpor para o papel conhecimentos, reflexões e experiências que o trabalho de uma vida inteira como químico havia lhe proporcionado. Ao comparar esse livro com sua obra de estreia na literatura italiana, Levi afirmou: “[escrevi] É isto um homem? para entender o Lager, as razões do Lager. E A tabela periódica […] para entender o mundo, a mim mesmo” (LEVI, 2018, 452). Há nessa obra um encontro essencial com o seu “eu químico”, que instigou e marcou sua trajetória de forma ampla; foi o cientista Levi que observou a experiência da guerra e conservou-a no papel, para que nunca fosse perdida.
A Tabela Periódica, publicada no ano de sua aposentadoria como químico, é dividida em 21 capítulos, os quais Levi dedicou a elementos químicos presentes na tabela periódica de Mendeleiev. Cada capítulo, portanto, recebe o nome de um elemento, entrelaçando o ofício como químico, os anos de trabalho na fábrica de vernizes Siva e o deslumbramento pela capacidade criadora e destrutiva da ciência.
A capacidade de ser um bom observador permitiu-lhe exercer diferentes atividades. Além disso, com a passagem dos anos, essa mesma potencialidade levou-o a percorrer variados caminhos. À medida que os anos passaram, sua escrita foi se modificando. Em seus primeiros escritos, as questões tratadas giravam em torno da guerra e da condição humana, nas produções do entremeio, entre a efervescência pós-Auschwitz e seus anos finais de vida, outras questões foram se desdobrando.
Em 1981, publica Lilith e outros Contos, que, junto de Histórias Naturais e Vício de Forma, compõem o mosaico de seus livros de contos. Alguns anos depois, em 1984, publica Em Hora Incerta, obra que reúne os poemas escritos entre 1946 e 1987, ou seja, ao longo de toda a sua trajetória como escritor.
Levi, de fato, era um poeta de “horas incertas”, como costumava se definir. Ao contrário de sua prosa, escrita em momentos de dedicação intensa, num ritmo mais contínuo e rigoroso, seus poemas seguem o fluxo desordenado de sua vida, acompanhando o passar dos anos, sendo publicados de forma conjunta somente em 1984, três anos antes de sua morte. Seus versos, brotando inesperadamente, como ele próprio dizia, carregam a dor e o trauma de Auschwitz, sem buscar tanto a precisão e a objetividade que regem a maioria de seus livros. Na poesia, Levi deixa escapar sua preocupação com o mundo por vir, que, apesar de estar presente em sua prosa, desta vez assume posições mais contundentes.
Os primeiros poemas de Levi, escritos entre as décadas de 1940 e 1960, dedicam-se, em sua maioria, a pensar a experiência de Auschwitz. Mas, para além disso, novas figuras passaram a ser incorporadas, como por exemplo as figuras de animais, que aparecem com mais frequência em sua poesia: o caracol, o elefante, a aranha, o dromedário, a mosca, o corvo, entre outras. Enxergando os animais a partir de uma perspectiva menos hierarquizada e, sobretudo, com o olhar da curiosidade, Levi destaca nessas publicações sua admiração e empatia por eles, como evidenciado em um trecho de seu ensaio Romances ditados pelos Grilos: “Se eu pudesse, obedeceria com entusiasmo às recomendações de Huxley e preencheria minha casa com todos os animais possíveis. Faria muito esforço não apenas para observá-los, mas também para me comunicar com eles. Não faria isso com objetivos científicos (não tenho, para tanto, cultura nem competência), mas por simpatia e por ter certeza de que obteria um extraordinário enriquecimento espiritual e uma visão mais completa do mundo” (LEVI, 2016, 74).
Os animais lhe interessavam como fonte de inspiração, como mais uma possibilidade de compreender o mundo por meio de uma outra perspectiva. Interessavam-lhe os seus mecanismos de sobrevivência, de adaptação. Nutria por eles simpatia e empatia, e em seus escritos pensava o homem-animal de Auschwitz, a vida nua e animalesca, imposta aos sujeitos que ali estavam. Anos mais tarde, sobretudo em sua poesia, vem à tona um momento posterior, de reflexão sobre o animal como condição para se pensar o próprio homem, a sua humanidade e animalidade.
Um ano antes de sua morte, Levi retomou a temática da guerra, escrevendo Os Afogados e os Sobreviventes, obra que apresenta um pensamento mais amadurecido e distanciado, debruçando-se sobre questões mais específicas, como a memória, a comunicação e a violência, exploradas em cada um dos capítulos.
Primo Levi foi, de fato, um centauro, figura com a qual gostava de se comparar e personagem de um de seus mais importantes contos: Quaestio de Centauris, publicado em 1966 no volume Storie Naturali. Desdobrando-se em muitos ao longo de sua vida, era um ser híbrido, alpinista na juventude, químico, escritor, poeta e tradutor, e também artesão, habilidade pouco conhecida. Enquanto químico, Levi sempre soubera da importância das mãos para lidar com a matéria. A precisão de cada operação envolvida no processo químico, o movimentar e manipular dos aparelhos laboratoriais, o jogo entre as diferentes substâncias e compostos, tudo cuidadosamente articulado e executado por uma pequena parte do corpo, que, por vezes, não é reconhecida como parte essencial de variados processos, o fez despertar para um criar com as mãos. Assim criou esculturas que passaram a adornar as prateleiras de sua casa, quando não presenteadas a amigos próximos, feitas com fios de cobre, que por muito tempo foram seu principal material de trabalho na fábrica de vernizes. Embora não tenham sido datadas, as esculturas foram produzidas entre 1955 e 1975 e muitas delas representavam figuras de animais.
Seus contos, romances, poemas, artigos, ensaios, entrevistas, conversas, esculturas, de forma direta ou indireta, empenharam-se em (re)pensar a experiência que marcou sua vida: a prisão em Auschwitz. Além de todas essas atividades e da pluralidade de seus afazeres, empenhou-se fortemente em uma reflexão acerca do humano e da humanidade, que não poderiam ser apenas temas centrais de seus livros, mas deveriam ultrapassar o papel escrito.
Sua escrita é como um microscópio, não aquele que ganhou, aos 14 anos, de seu pai, Cesare Levi, mas outro, que existiu por muitas décadas, de 1919 a 1987, o microscópio Primo Levi, que se coloca a ver, ampliar e pensar sobre as questões humanas, sociais e políticas, indagando-se continuamente se isto é um homem e nos repassando seu legado, para que não percamos de vista tal questionamento.
Bibliografia
Impressa
BELPOLITI, M. (2015). Primo Levi di Fronte e di Profilo. Milano: Ugo Guanda.
LEVI, P. (2016). A Assimetria e a Vida: Artigos e Ensaios 1955-1987. Org. M. Belpoliti. Trad. I. Benedetti. São Paulo: Editora Unesp.
LEVI, P. (2018). Opere Complete III: Conversazioni, Interviste, Dichiarazioni. Org. M. Belpoliti. Torino: Einaudi.
LEVI, P. (1988). Opere II: Romanzi e Poesie. Torino: Einaudi.
MENGALDO, P. V. (2019). Per Primo Levi. Torino: Einaudi.
MORI, R. & SCARPA, D. (2017). Album Primo Levi. Torino: Einaudi.
Autores: Helena Bressan Carminati
Celso João Carminati