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    Liga Republicana das Mulheres Portuguesas [Dicionário Global]

    Sob a divisa “Eu morro onde me prendo”, a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP) consubstanciou uma dinâmica aglutinante em torno de premissas estruturantes como a emancipação – política, económica, social e intelectual – feminina, a defesa do reconhecimento dos direitos cívicos das mulheres e, não menos relevante, a proteção de mulheres e crianças em condições de precaridade. Surgida no espectro político do republicanismo português, em fevereiro de 1909, a LRMP refletia a natureza compósita da mobilização pública protagonizada pelo Partido Republicano Português nas vésperas da Implantação da República.

    Se a temática da condição feminina assomava no espaço público nacional desde o dealbar do século XX, conforme se apreciava nas páginas de Ave Azul – Revista de Arte e Crítica, dirigida por Beatriz Pinheiro de Lemos e Carlos de Lemos, o reconhecimento da valorização integral da mulher caminhou intrinsecamente ligado ao movimento pacifista. Na senda da Liga Portuguesa da Paz, fundada por Alice Pestana e Sebastião de Magalhães Lima, em maio de 1899, a projeção renovada do papel feminino avultava enquanto esteio basilar da sociedade futura, liberta dos horrores da beligerância. Em março de 1906, esse ideário da mulher enquanto artífice privilegiada da paz subjazeu ao surgimento da Secção Feminista da Liga Portuguesa da Paz e do Comité Português da Associação Francesa La Paix et le Desármement par les Femmes, animados pelo núcleo feminino aglutinado em torno da iniciativa de Alice Pestana, ao qual se agremiariam novos elementos.

    No ano seguinte, Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete, Maria Veleda, Carolina Beatriz Ângelo e Sofia Quintino protagonizavam uma nova estrutura associativista de feição assumidamente feminista. Designada Grupo Português de Estudos Feministas, a novel entidade não obliterava os contributos da mulher na construção da paz, porém, reposicionava o âmago dos debates e das atividades para conferir inequívoca centralidade aos anseios prementes de reconhecimento do papel feminino da sociedade portuguesa. A etapa primordial desse intento implicava a mobilização das mulheres, tarefa à qual os membros do Grupo Português de Estudos Feministas se entregaram em 1907 e 1908.

    Preparava-se então o advento de uma novel entidade, a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP). Segundo João Gomes Esteves, a conceção da estrutura de convergência entre o ativismo político republicano e as reivindicações feministas foi delineada em agosto de 1908, fruto dos contactos travados entre António José de Almeida e Ana de Castro Osório. Na perspetiva do líder republicano, tratava-se de delinear um espaço de atuação especialmente devotado às mulheres com o propósito de enquadrar o ativismo das mesmas no âmbito do confronto antimonárquico então em curso. Mais, configurava um contexto propício para o acolhimento de ativistas ligadas por laços familiares aos promotores do republicanismo, uma dimensão desejavelmente acrescida pelo concurso de quantas fossem as interessadas em promover o papel da mulher e lutar pelos respetivos direitos sociais e políticos. Na essência, afigurava-se como a replicação do modelo subjacente à fundação da Loja de adoção Humanidade, em Lisboa, filial da Comércio e Indústria, n.º 194, do rito francês. À revelia dos cânones maçónicos, essa estrutura caracterizava-se pelo pendor eminentemente republicano, um traço igualmente presente na Humanidade. A primeira venerável corroborava a correlação estreita entre as dinâmicas institucionais e as esferas familiares intrínsecas, a saber: Georgina Amélia Pinheiro de Sousa Larcher era casada com Júlio Maria de Sousa Larcher, republicano e membro da Loja Comércio e Indústria (VENTURA, 2016, 127).

    A formação da LRMP consumava-se em fevereiro de 1909, volvido o período de angariação de vontades e inscrição das futuras participantes. De natureza interclassista, a nova agremiação apresentava-se vocacionada para a promoção da mulher segundo uma lógica poliédrica, simultaneamente aferida à sensibilização feminina para a relevância do respetivo papel na sociedade, à educação e instrução das destinatárias da mensagem, ao combate às instituições indutoras da menorização política e social das mulheres e ao esforço pela mudança substantiva do perímetro de atuação feminina, nos domínios político, económico, social e intelectual. Assim, a LRMP preconizava uma conceção holística da respetiva missão, propondo-se a uma intervenção multifacetada para abarcar as valências diferenciadas do desiderato em apreço. À guisa da conjuntura política da época, as integrantes da LRMP tomaram parte ativa na obra de propaganda antimonárquica, fosse esta diretamente patrocinada pelo Partido Republicano Português ou resultasse da atuação dos Centros Escolares Republicanos da Associação do Registo Civil e da Junta Federal do Livre Pensamento.

    O pendor político da Liga e a respetiva ligação ao Partido Republicano Português eram oficialmente reconhecidos no Congresso de Setúbal, realizado em abril de 1909; outrossim, as integrantes da entidade eram convidadas a participar nos conclaves republicanos antecedentes à Implantação da República: Ana de Castro Osório tomava parte nesse encontro, como na reunião do diretório republicano, ocorrida em janeiro de 1910. De igual modo, a presença de Ana Maria Gonçalves Dias era solicitada no Congresso Republicano, organizado no Porto, em abril de 1910. Por outro lado, algumas das integrantes da Liga alcançavam notoriedade através dos artigos dados à estampa nos periódicos republicanos, em particular A Vanguarda e O Mundo. Tal colaboração não iludia a criação de um órgão oficial de imprensa, um intento consubstanciado em 1909 através da fundação de A Mulher e a Criança, em publicação até maio de 1911, sucedido de A Madrugada, dada à estampa até 1918.

    A consolidação da pertença ao âmago do Partido Republicano Português e a inserção da estratégia de combate dessa estrutura à Monarquia Constitucional não subtraíam valências específicas, fruto de uma implantação territorial disseminada subsidiária do entusiasmo e da capacidade organizativa de ativistas locais. Segundo João Esteves, a expansão da LRMP deveu-se ao trabalho de Adelina da Glória Paleti Berger, em Lagos; de Sara Beirão e Etelvina Dinis de Abreu, em Tábua; de  Inês da Conceição Conde, na Praia da Luz; de Elvira de Jesus Silva Martins, em Alhandra; de Mariana Fausta de Carvalho, de Maria Adelaide Brito, de Maria Francisca de Sousa Dias e de Adelaide Neves de Carvalho, em Benavente; de Tomásia de Moura Carvalho, em Santo Estêvão; de Laura Licínia Ramos, em Cantanhede; de Francisca Romana Pacheco Lino da Silva, de Albertina Aldegundes de Moura Benício e de Maria Ilda da Conceição de Oliveira, em Setúbal; e de Vitória Pais Freire de Andrade Madeira, em Ponte de Sor.

    O empenhamento na salvaguarda da condição feminina na sociedade portuguesa impelia a LRMP a abraçar a defesa da Lei do Divórcio, uma iniciativa preconizada antes da Implantação da República. Então malograda, a referida causa voltava a animar as integrantes da Liga após a mudança de regime – uma pretensão acolhida favoravelmente pelas autoridades empossadas em outubro de 1910. Por extensão, a novel conjuntura afigurava-se promissora ao cumprimento de alguns dos quesitos programáticos esgrimidos pela Liga, como a revalorização do papel da mulher através da revisão do Código Civil, da mudança da lei eleitoral, do reforço da educação e instrução de crianças e jovens do sexo feminino, como, consequentemente, pela alteração do mercado laboral e pela inserção da mulher em carreiras profissionais até então vedadas. Esse pressuposto e aspirações subjacentes refletiam a identificação estrita entre a LRMP e o Partido Republicano Português e eram partilhados por muitas integrantes, porém, não reuniam o consenso. O âmago da controvérsia residia na definição cabal dos propósitos, das metodologias e das finalidades intrínsecos à LRMP. Assim, e sem desprimor pela perfilhação da componente política, importaria o esclarecimento sobre a relevância e prioridade da mesma no âmbito dos objetivos propostos à entidade cuja pertinência transversalmente reconhecida incidia na valorização e defesa da mulher e da criança.

    Surgida ainda no decurso da Monarquia Constitucional, a polémica sobre os fundamentos da LRMP adquiria foros de grandeza renovada no período subsequente à implantação do regime republicano. Decerto, para esse efeito contribuíam grandemente a capacidade aglutinadora exercida pela Liga nos alvores do novel regime, o crescimento exponencial do número de integrantes no início da década de 1910 e a ambiguidade do âmbito operativo da entidade. O esforço de clarificação apreciava-se na revisão estatutária da entidade, ocorrida a 23 de março de 1911 – procurava-se então reverter o espectro da dissidência, do afastamento de militantes ou mesmo da exoneração a pedido de vogais relevantes para a instituição. Tais debilidades não iludiam o dinamismo da LRMP na prossecução de premissas programáticas de amplo reconhecimento entre as integrantes, a saber: as ações de solidariedade em prol das vítimas do sismo de Benavente, em maio de 1909; as medidas de combate à marginalidade e mendicidade infantis e a interação com as autoridades públicas nesse domínio; o ativismo na formação de jovens, através da criação de cursos para a habilitação para guarda-livros, empregadas de contabilidade ou de caixas, mas também do curso de Enfermagem, surgido no decurso das incursões preconizadas por Paiva Couceiro em 1911 e de 1912. O combate ao analfabetismo constituía uma das preocupações da Liga, patente na fundação de cursos noturnos de leitura, de escrita e de contas ou ainda de habilitação para os exames de 1.º e 2.º graus da instrução primária. Nesse esforço, as sócias eram contempladas com formação em língua francesa.

    Decerto, a preparação profissional e intelectual feminina constituía um objetivo específico. No entanto, a mesma inscrevia-se no perímetro reivindicativo político e social alargado da LRMP, observável na contestação da política de contratação praticada pela Junta do Crédito Público ou na correlação entre a independência económica e o reconhecimento do sufrágio – um quesito reiteradamente pugnado pela entidade em 1911 e em 1913. Malogrado esse propósito, a Liga, denodada apoiante do Grupo Parlamentar Democrático desde 1911, ressentia-se profundamente: em junho de 1913, as militantes reuniam-se para refletir acerca do futuro posicionamento da instituição. Nesse conclave, ponderava-se a abdicação de iniciativa política, no contexto estritamente partidário, e o enfoque interventivo exclusivo no processo de emancipação feminina. A assumir-se, esse reposicionamento iria ao encontro de áreas de atuação tradicionais da LRMP, como a Obra Maternal, fundada por Maria Veleda em 1909, dedicada ao acolhimento de crianças e jovens negligenciadas na capital, a proteção de jovens carenciadas através da Caixa de Auxílio a Estudantes Pobres do Sexo Feminino ou dos Recreatórios Pós-Escolares.

    No decurso da sua existência, a LRMP destacou-se pelas sucessivas representações submetidas aos diferentes executivos no sentido de proibir a venda de álcool e tabaco a menores de idade e de exigir a ilegalização da prostituição e o fim do direito de fiança a sedutores e violadores. Salientava-se ainda pelo apoio à lei que previa a concessão de dois meses de descanso às mulheres em final da gravidez e após o parto, sem desatender à instante procura pela cooperação estreita com as autoridades públicas no âmbito da assistência pública. Se o advento da dissidência contribuiu para o gradual enfraquecimento da LRMP, a oposição ao governo de Pimenta de Castro, a eclosão da Grande Guerra e o surgimento de novas entidades de confluência entre a valorização do papel feminino na sociedade e o respetivo contributo na conjuntura dominada pela beligerância favoreciam a fragmentação da entidade criada em 1909. Em agosto de 1918, O Mundo assinalava o ocaso da LRMP, por sucumbir ao sidonismo (ESTEVES, 1991, 322).

    Bibliografia

    ESTEVES, J. G. (1991). A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas – Uma Organização Política e Feminista (1909-1919). Lisboa: Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.

    ESTEVES, J. G. (2014). “Liga Republicana das Mulheres Portuguesas”. In Dicionário de História da I República e do Republicanismo (vol. I) (680-804). Lisboa: Assembleia da República.

    NUNES, T. (2019). “Lima, Sebastião de Magalhães”. In Dicionário das Grandes Figuras Europeias (217-220). Lisboa: Assembleia da República.

    VAQUINHAS, I. (2021). Coquettes, Doutoras e Outras. História das Mulheres em Portugal (Séculos XIX e XX). Lisboa: Edições Colibri.

    VENTURA, A. (2016). Silêncio e Virtude. Uma História da Maçonaria Feminina em Portugal. Lisboa: Temas e Debates.

    Autora: Teresa Nunes

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